segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

A Última Carta

Velhos a apodrecer,
meses, anos, nas casas da solidão.

Minha Filha,

Munch - O Grito
Acabei de matar a tua mãe. Depois de 62 anos de casamento, nada nesta vida tinha já sentido. A medicina e a saúde pública dão-nos anos, mais anos, mas não anos de verdadeira vida. Há uma falha irremediável neste mundo. Valia mais deixarem-nos morrer com a memória intacta dos nossos afectos. A tua mãe já estava morta, antes de morrer sufocada pelas minhas mãos. Já nem sequer circulava, como há uns tempos, sem tino pela casa, do quarto à cozinha, da cozinha à casa de banho. Tudo para ela era um espaço homogéneo, sem memórias de serventia. Um trânsito caótico sem fronteiras.Esse corpo dos meus afectos já nem era bem um corpo, era uma coisa sem alma ou de alma represa, invisível aos meus olhos. Um objecto a diluir-se nos outros objectos do nosso quotidiano: aparador, mesa, sofás, cama, retrete, «bilelots», imagens de Nª Srª de Fátima, colchas bordadas e ela. Imagens do nosso silêncio comungado.Um dia, quando tudo se começou a agravar, descobri estupefacto que ela tinha posto no forno do fogão os seus sapatos de camurça de eleição, como se fossem peixes a assar. Sapatos que comprara com tanto esmero com as suas parcas poupanças. Parecia que a casa ia também morrendo lentamente à nossa volta. Uma espécie de progressiva instalação do caos. Até o seu gato vadio, que com tanta ternura havia protegido, morreria de fome pelo seu esquecimento.
Mas o pior era a morte dos afectos, um processo gradual de alheamento. A tua mãe tornara-se uma estranha, mas ainda com uma vida interior, embora um território definitivavamente enclausurado. Não sei se ainda tinha uma réstea de consciência de si, ou do nosso comum sofrimento. As lágrimas eram interiores, para sempre fechadas ao outro que era eu.
Era um objecto (aos meus olhos e coração), mas com necessidades vitais, ainda que nada fizesse para as garantir. Esquecia-se de comer, de evacuar, de existir. Ali estava exposta perante a minha progressiva impotência. Por vezes, em pleno Inverno, circulava nua pela casa, sem frio nem pudor.
Qual é o limite da dignidade da vida? Da dela e da minha. Foi por amor que a matei, que nos matámos, na réstea do orgulho que me ficara.
Peguei num cinto e asfixiei-a. Era um cinto que a tua mãe outrora adorara. Comprei-lho no dia de um seu aniversário. Nesse momento foi como se se apagassem no seu corpo destroçado as minhas próprias memórias. Naquele momento o cinto tornara-se, para mim, apenas um instrumento que iria encerrar para sempre a sua dor, a nossa dor.
Limitei-me talvez (não sem algum remorso) a matar uma coisa aparentemente sem alma, mas que tinha ainda soltos espasmos de vida, que sofria mas para dentro. Mas mais nada.
As minhas mãos com os nódulos de velho tremeram muito quando a apertei, mas não tive já qualquer vestígio de piedade, como se fosse ela a pedi-lo há muito. Piedade, só a das minhas memórias de 62 anos de convívio fraterno e amoroso. Piedade do que fôramos não no presente. Crueldade era continuarmos a viver neste inferno em vida.
Pintura de Kokoschka
Projectei tudo, com a lucidez possível, quase me tornei num engenheiro da morte. Já que nada mais esperava desta vida de solidão a dois, se é que a isto ainda se pudesse chamar vida.
O esquecimento total é a simulação da morte em vida, sobretudo porque mata mesmo a vivência dos instantes mais próximos. O tempo a passar sem deixar vestígios. Aliás, sem memória já nem sequer se pode falar de tempo, passado, presente ou futuro. A mim, como uma condenação, restavam-me os afectos passados - o enamoramento, o casamento, a sua maternidade e a tua, as negociações do convívio doméstico para vencer o tédio do quotidiano. Um tempo morto na minha cabeça ainda a querer, em tentativas infrutíferas, ressuscitar e acender um pouco de vida na tua mãe.
Desisti de lutar - a cobardia dos vivos-mortos. A doença venceu-nos. A tua mãe era um corpo estranho, apenas humanamente visível nos traços indizíveis do seu sofrimento interior. Comer e defecar, defecar e comer - gestos sem sujeito, apenas actos mecânicos suportados pela minha vigilância constante: meter-lhe a colher de sopa na boca, mudar-lhe as fraldas, dar-lhe banho. Enfim, manter-lhe a dignidade possível.
Chorei  lágrimas até me secarem as raízes da alma. Chorei pelo amor que fomos, pelos gestos ternos da vida e até pelas pequenas desavenças do quotidiano. Nada disto poderia voltar.
Chorei de solidão, porque a tua mãe estava simultaneamente presente no meu passado e ausente no meu presente. De menina e moça, de quem me enamorei, à coisa híbrida de vida e morte. Mais do lado da morte do que da vida.
Já tenho a corda preparada para me enforcar. Fiz cálculos exactos para não falhar. Quando receberes esta carta já estarei morto. Perdoa-me este acto de louca lucidez. Mas nunca esqueças: tudo o que fiz, fi-lo por amor.

Adeus

Teu Pai

Notícia da Imprensa (22/02/2011) - «Idoso (83 anos) mata mulher (89 anos) por não aguentar vê-la sofrer com Alzheimer. Depois enforcou-se». Antes deste acto escreveu uma carta final à sua filha. A partir deste evento, ficcionei esta última carta.




sábado, 26 de fevereiro de 2011

Gastronomia, Sangue Fresco e Vampiros

No céu cinzento
Sob o astro mudo
Batendo as asas
Pela noite calada
Vêm em bandos
Com pés de veludo
Chupar o sangue
Fresco da manada

Zeca Afonso, Vampiros


Confesso que sempre gostei de arroz de cabidela (ou de molho pardo, como dizem umas amigas da Gândara). De frango, lampreia ou dos miúdos de leitão (à moda da Bairrada). E também de papas de sarrabulho e de sarapatel. Os sangues da nossa gastronomia. Desde criança habituei-me a degustar as morcelas de Trancoso (Beira Alta), que nos chegavam a Lisboa, em Dezembro, num cesto, misturadas com outras iguarias «bárbaras», depois da matança do porco em casa dos meus avós. Heranças familiares. Depois vieram outros hábitos mais cosmopolitas, de novo o sangue nos bifes do lombo mal passados. O sangue a libertar-se da carne e a misturar-se no molho feito de mostarda e café. Ou da picanha, churrasco recentemente importado do Brasil. Hoje, estou quase a tornar-me semi-vegetariano. Tanto sangue também enjoa.
Pintura de Munch - Vampira
Nunca fui adepto de touradas, mas todos convivemos com elas: o sangue do touro esfarpado ou picado para deleite da nossa crueldade ritualística. E em dias mais trágicos- a tourada é um jogo da vida e da morte- o sangue dos toureiros encornados. O sangue, sempre o sangue, a inundar a cartografia do nosso imaginário.
Há também o vinho ritualístico das missas a converter-se, através da transubstanciação eucarística, em sangue de Cristo. Sangue cristológico, embora eufemístico e simbólico, de tanta iconografia ocidental (desde o gótico ao barroco) a preencher muitos lugares do nosso museu imaginário. Sangue como dádiva da nossa redenção. Nos tempos pagãos o sangue derramado pela terra era um rito de fertilidade: a natureza precisava de sangue para renascer. A cada cultura o seu sangue.
Mas as imagens de sangue mudam consoante as metamorfoses ou as novas cenas ritualísticas. Actualmente esse imaginário já não é redentório nem fecundante. Mas será ainda um exorcismo da nossa violência, embora com conteúdos diversos?
Hoje é raro o filme de acção ou de terror, sobretudo made in Holllywood, que não nos masturbe com o sangue dos estropiados, violentados, baleados, trespassados, com planos cinematográficos que eficazmente nos projectam, num misto de prazer e repulsa, para a evidência da espectacularidade das manchas de sangue, pelos corpos, paredes, chão, em implosões contínuas de vermelhidão.
Mas há também o sangue dos mortos-vivos - estes obviamente sob a suspeição da maldição e da perversão da sua hibridez. Os chamados vampiros. Desde há umas décadas estão de novo na moda, no romance, no cinema e até em vários blogues.
Na literatura o tema do vampirismo popularizou-se na Europa com o romance, de B. Stoker, Drácula (1897), inspirado na figura simultaneamente histórica e lendária do Príncipe da Valáquia Vlad Drakul (século XV), conhecido como «O Empalador» da Transilvânia (Roménia). Um sádico guerreiro tão cruel no modo de tratar os seus inimigos, que tal facto estaria na génese da lenda do seu vampirismo. Porém, o mito do vampirismo é um elemento reconhecido em regiões tão diversas como a Europa Central, a Rússia ou a Malásia, entre outras.
No que concerne ao feminino, o arquétipo é já, contudo, reconhecível na mitologia grega: Lâmias e Éstriges. Demónios femininos alados, com garras semelhantes às aves de rapina, que se alimentavam do sangue e das entranhas de crianças e jovens.
Na caça às bruxas no ocidente cristão (séculos XV a XVII) também se acusavam aquelas de, para lá de outras práticas satânicas, sugarem o sangue das crianças. Na crueldade da tortura, todas estas ficções se tornavam confissão. Como vemos, em épocas misóginas, o vampirismo no imaginário colectivo ultrapassava a fronteira do género masculino.
Na literatura europeia, com o romantismo (primeiras décadas do século XIX), desenvolve-se o mito do «homem fatal» que, por vezes, ganhava uma configuração vampírica. Na segunda metade do século XIX, e sobretudo com o «fin-de-siècle» e o seu misoginismo hiperbolizado, cabe ao feminino o principal papel de sugadora, com o advento do tema da «mulher fatal», ou seja, vampírica.
O vampirismo tem assim uma outra dimensão «maléfica»: o erotismo. A partir da década de 30 do século XX, as estrelas de Hollywood ganham a designação de «vamps», ou seja, derivação etimológica de vampiras, verdadeiras sugadoras da virilidade masculina. É toda uma evolução que emerge também na pintura (Munch, Burn-Jones, Klimt, entre outros), entre finais do século XIX e o século XX, com as suas representações da mulher-serpente ou vampírica.
A perfídia da beleza feminina, obra obviamente satânica, assume com o vampirismo uma nebulosa imaginária que assombra o subconsciente masculino: complexo de castração com a emergência da imagem literal ou virtual da «vagina dentata».
Pintura de Klimt - As Serpentes de Água II
Hoje, as fronteiras de género diluiram-se, e tanto homens como mulheres podem ser vampiros, agindo ou não em grupo. Todos podem sugar os nossos desejos e vitalidade para virtualizar a sua vontade de eternidade. No cinema há clássicos do género, de Murnau (Nosferatu, O Vampiro, 1922) a Polanski (O Baile dos Vampiros, 1967). Nestas narrativas ora são os vivos que acabam por vencer os vampiros ora são estes que acabam por dominar o mundo. Por isso, as jugulares masculinas e femininas que se cuidem. Houve mesmo o caso de um célebre actor (Bela Lugosi) que, na década de 30 do século XX, se especializou de tal modo na personagem de vampiro, que passou, na vida real, a habitar uma casa em ruínas, povoada de morcegos, e a dormir num caixão. O vampirismo é verdadeiramente contaminante e, por vezes, confunde-se com o mito do lobisomem.
Nas duas últimas décadas, o vampirismo como tema literário e cinematográfico (romances, filmes, telenovelas) tem vindo a reaparecer em força e com muito êxito. A escritora americana Charlaine Harris, cuja recente tradução portuguesa está em todos os escaparates das livrarias, com a sua Saga do Sangue Fresco, já vai no 8º volume: «Laços de Sangue» (não confundir com a telenovela portuguesa com o mesmo título), antecedido de «Dívida de Sangue», «Clube de Sangue», «Sangue Oculto», «Sangue Furtivo», «Traição de Sangue» e «Sangue Felino». Os  títulos são bem significativos das ondas de sangue que percorrem estas «bestas céleres», como alguém disse. Nova Orleães é, nesta saga, um lugar de eleição para uma visita turística a vampiros: clubes de jazz, de strip, sexo ao vivo, cenas lésbicas, etc.: «Sítios secretos e não tão secretos onde alguém poderá ser mordido e ter um orgasmo sem dificuldade», tal como se diz no romance.
Há vampiros e cruzadas anti-vampiros, como a Irmandade do Sul ou o Movimento Voluntário da Extinção de Vampiros. Mas será que a cruzada tem êxito? Será no futuro o mundo um paraíso de vampiros?
Mesmo entre nós, país sem grande tradição vampiresca, corre uma telenovela designada «Lua Vermelha», uma versão «português suave» do vampirismo e dos seus opositores. Parece-me no entanto que os portugueses não têm grande vocação para tal tema.
Na constante luta entre os que sugam e os que são sugados, a questão, para lá das óbvias perversões eróticas, está, na vocação imaginária dos homens e mulheres, o fantasma da morte e os libidinosos desejos de o vencer, mas para isso tem de haver vítimas sacrificiais - objectos nebulosos dos nossos medos ancestrais.
Bem razão tinha o Zeca Afonso para nos alertar para os perigos de tal praga. Mas aqui a história é já outra.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

A Poesia, os Valores e a Crise (2)

Palavras quase desnecessárias para dois poemas de Carlos de Oliveira:

Na infância alternamos a criatividade do jogador de mundos e a escuta tensa de uma voz adulta a anunciar uma qualquer catástrofe final. Mais tarde, há quem opte pela previsão dos astrólogos (sagitário, peixes, gémeos, touro, virgem, etc.). Saturnos e soturnos. Mas há também quem opte, reinventando o jogador da infância, pela criação possível de mundos plurais. A predição dos astrólogos é dogmática e determinista, a dos inventores de jogos virtualiza mundos alternativos, aleatórios.
Depois há fronteiras (janelas, molduras) a enquadrar e condicionar o nosso olhar, e também diferentes posturas do observador. Há, além disso, vidros foscos, riscados, com bolhas, a iludir as nossas convicções. Tenhamos, pois, sempre em conta a orientação do corpo e das janelas da alma, quando analisamos o estado do mundo. Há sempre dúbias transparências no olhar. E é sempre bom reencontrar o jogador da infância obviamente impreciso na moldura já nublada pelo tempo. Mas cuidado, as tempestades de luz podem cegar os mais incautos. Os desenhos da criança já exprimiam simultaneamente os medos e os deslumbramentos.



Pintura de Paul Klee

ESTRELAS
O azul do céu precipitou-se na janela. Uma vertigem, com certeza. As estrelas, agora, são focos compactos de luz que a transparência variável das vidraças acumula ou dilata. Não cintilam, porém.
Chamo um astrólogo amigo:
«Então?»
«O céu parou. É o fim do mundo».
Mas outro amigo, o inventor de jogos, diz-me:
 «Deixe-o falar. Incline a cabeça para o lado, altere o ângulo de visão».
Sigo o conselho: e as estrelas rebentam num grande fulgor, os revérberos embatem nos caixilhos que lembram a moldura dum desenho infantil.


Pintura de Paul Klee
TARDE

A tarde trabalhava
sem rumor
no âmbito feliz das suas nuvens,
conjugava
cintilações e frémitos,
rimava
as ténues vibrações
do mundo,
quando vi
o poema organizado nas alturas
reflectir-se aqui,
em ritmos, desenhos, estruturas
duma sintaxe que produz
coisas aéreas como o vento e a luz.

Carlos de Oliveira (1921-1981)
Trabalho Poético (1976)

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

A Poesia, os Valores e a Crise (1)

Como afirmou Nietzsche, "tudo o que tem um preço não tem valor". Ora as palavras dos poetas são sempre uma reserva imaginária de valores. Em épocas de crise, são sinalizadoras das nossas desesperanças e esperanças, num mundo dominado pela economia e o quantitativo. As suas palavras, no seu modo diverso de interpretar as representações colectivas ou o sentido mais íntimo das nossas vidas, ajudam-nos, no plano dos valores, a situarmo-nos no mundo em que vivemos. E lembremos, a propósito, que ler um poema é também um modo de o reescrever na finita infinitude das nossas vidas.


INSCRIÇÃO

Eu vi a luz em um país perdido.
A minha alma é lânguida e inerme.

Oh! Quem pudesse deslizar sem ruído!
No chão sumir-se, como faz um verme...

Camilo Pessanha (1867-1926)
Clepsidra (1920)


Pintura de Dali - A Persistência da Memória

PERFILADOS DE MEDO

Perfilados de medo, agradecemos
o medo que nos salva da loucura.
Decisão e coragem valem menos
e a vida sem viver é mais segura.

Aventureiros já sem aventura,
perfilados de medo combatemos
irónicos fantasmas à procura
do que não fomos, do que não seremos.

Perfilados de medo, sem mais voz,
o coração nos dentes oprimido,
os loucos, os fantasmas somos nós.

Rebanho pelo medo perseguido,
já vivemos tão juntos e tão sós
que da vida perdemos o sentido...

Alexandre O´Neill (1924-1986)
Poemas com Endereço (1962)

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Os Cegos, a Fome e o Pote

Deixai-os: são cegos a conduzir outros cegos!
Ora, se um cego guiar outro cego, ambos cairão na cova.

 S. Mateus


Depois de décadas de dislates da nossa elite política, eis-nos à beira do abismo. Sócrates, com a sua máscara de convicto optimismo, olha para o lado, pisca o olho matreiro, e sorri para as câmaras. Já não é capaz de olhar em frente. Olhar é uma maneira de dizer, pois certamente contaminado pelo Ensaio sobre a Cegueira de Saramago, numa escuta - não muito atenta, diga-se em abono da verdade - da leitura de um seu assessor, perito em matérias literárias, finge que vê, pois na realidade vê apenas com a cegueira do olhar, porque à frente, meu bom povo, está o bíblico barranco.
Pintura de Bruegel
O povo, já quase cego como o líder, pressente apesar de tudo, com a sabedoria dos cegos, que estamos a avançar para o abismo. Porém, já não vê o que quer, mas o que o deixam ver. Contudo, em democracia, há sempre vozes discordantes: "Sr. Primeiro-Ministro, o problema português é simultaneamente estrutural e conjuntural. Não há tecnologia de vanguarda (nem mesmo o seu afamado milagre Magalhães) que, por si mesma, nos liberte de décadas de analfabetismo ou, numa versão moderna, de iliteracia. A cultura é, em Portugal, a determinante em última instância" - vê-se que o arguente foi leitor de Marx, apenas trocou a economia pela cultura. E continua: "Um analfabeto com um computador ou uma esferográfica será sempre um analfabeto. Os instrumentos apenas ajudam, como é de bom-senso, a resolver os problemas de base: saber ler e escrever decentemente, aprender a matemática básica e ter uma razoável cultura geral. Fomentar hábitos de produção e consumo culturais, eis a solução a médio prazo". "E no intervalo, morre-se de fome?" - interrompe um desempregado de longa duração.
Sócrates riposta: "Fiz o que pude, senhores oposicionistas de má índole, chamei a mim as crianças e disse-lhes «Computai!». Construí auto-estradas e ordenei «Circulai!» Aí está o futuro" - fala como um vidente. "E no intervalo, morre-se de fome?", insiste o desempregado. "Além disso, aí temos - toda a gente honesta o sabe - o capital internacional, esse especulador sem escrúpulos, a apertar-nos o gargalo"- justifica-se Sócrates.
Um outro cidadão aproveita a deixa e interpela o governante: "E os gastos de ostentação?". País pobre com vícios de rico - esta já é antiga. "Por exemplo, os estádios de futebol do Euro, na época do nosso deslumbramento, o do Algarve, o de Leiria e o de Aveiro, condenados ao abandono e ruína, porque nem os clubes ou câmaras têm capacidade financeira ou interesse desportivo para os manter. E tanta auto-estrada para Deus ver. Nisso somos vanguarda na Europa e no mundo. Tanto betão a acontecer para nosso padecer!" (voz de aprendiz de poeta). "E os bons carros pelas ruas do país, a fazer inveja aos países ricos da Europa?".  Voz de um coro de invejosos: "Tudo tem uma explicação. Economia paralela, tráfico de droga e de seres humanos, nepotismo e corrupção, e centenas de gestores de empresas públicas com ordenados de fazer espanto por esse mundo fora."
E outro diz: "Agricultura e pescas (tanta terra a ver o mar) quase desapareceram. Milhões de fundos europeus, ora para cultivar beterraba e amendoins, ora para destruir vinhas e vinhedos ou barcos de pesca artesanais, ou para arrancar amendoins e beterraba. Pior que os planos quinquenais da antiga URSS. Da indústria, que nunca foi famosa, pouco ficou - dizem que os culpados foram os chineses, os indianos, os tailandeses, e as multinacionais que exploram a mão-de-obra infantil nos ditos países do subdesenvolvimento".
Mas temos dos maiores centros comerciais do mundo, quanto à ilusão consumista estamos ditos. Foi uma "barataria" que começou a fraquejar.
Depois os partidos do "centrão" têm muitos apetites - centenas de militantes com fome de promoção -, mas o bolo está quase todo roído, foram os ratos do porão com o navio a afundar-se.
Portugal é um deserto de ideias, ou melhor, de boas ideias, pois cabeças há muitas; há-as de eleição, boas para entrevistas televisivas e o para os prós e contras da drª Campos Ferreira, mas a arengada é sempre a mesma: no fundo, no fundo, com uma «ditadura» moderna (palavra interdita mas presente no subconsciente "economês"), ou melhor, pós-moderna, tudo se resolvia. Senão aí vem o FMI, o papão de serviço a dar bengaladas na parasitagem lusitana. Há sempre um virtual polícia à nossa espera.
Os desempregados são mais de 600 mil. "Solução: pô-los a soprar 24 horas por dia, para aumentar a produção eólica. Não seria a salvação? Deixávamos de importar petróleo e tornávamo-nos o primeiro exportador de vento". Esta é a proposta de um visionário consultor governamental, perito simultaneamente em problemas de desemprego e energias alternativas: "Serão os novos filhos do Céu e da Terra, mulheres e homens desaforados, com asas, eles barbudos e elas de longos cabelos. Superiores às divindades ventosas do Olimpo, Bóreas (vento norte), Noto (sul), Zéfiro (oeste) e Euro (leste) e mesmo ao seu comandante e pai Éolo (o veloz). Uma voz colectiva como a dos deuses a anunciar Eos (a deusa da aurora) da Pátria. Falta apenas a ordem de Zeus (Sócrates na versão actual)".
Pintura de Morandi
Mas sejamos justos, os nossos dirigentes políticos até nem ficam mal ao lado dos berlusconis, sarkozis e outros mais. São todos produtos do marketing mediático, todos filhos da mesma mãe, salvo seja. Os chineses é que são diferentes, põem-nos os olhos em bico.
Não seria o momento de os responsáveis pela imagem dos nossos políticos pensarem no assunto? Dar-lhes um toque mais achinesado, mais moderno. Mesmo que não vissem melhor, criavam-nos a ilusão de ver ao longe, ou seja, em direcção ao oriente.
Quanto à provável sucessão de Sócrates - uma fusão de heróico resistente e pícaro -, temos o dr. Passos Coelho, o produto de uma formatação de líderes «made in» JSD, que, na sua última entrevista a Judite de Sousa, manifestou, para decepção dos «roedores» do partido, "ainda não ter fome para ir ao pote". Frase que certamente ficará nos anais da História. Pote, na sua configuração simbólica, remete para útero ou matriz. Então, para salvar Portugal, a solução estaria - será assim, dr. Passos Coelho? - em regressarmos ao útero materno, quando a sua fome chegar, e, aí acomodados, adormecermos até ao dia da ressurreição.
Estávamos perdidos, vieram as especiarias do Oriente; de novo perdidos, o ouro do Brasil; perdidos de novo, o império colonial africano; de novo perdidos, as remessas dos emigrantes; perdidos ainda, os milhões da Comunidade Europeia. Há sempre um milagre à espera em cada ressurreição nacional.
"Mas alternativas político-económicas ao governo PS, dr. Passos Coelho?", insiste Judite de Sousa. "Já lhe disse, ainda não tenho fome, depois se verá."- responde já agreste Passos Coelho. "Mas tenho eu!"- intromissão de um desempregado de longa duração.
Mas cuidado, Dr., o pote pode estar quase vazio, ou então ser mesmo uma caixa de Pandora. Também há outra hipótese: ser o vaso do Graal ou mesmo o Velo d´Oiro. Neste caso, saía-lhe a sorte grande.
E aqui vamos nós de derrota em derrota, a caminho do barranco final. A não ser que o Mourinho rompa com Castela, regresse e salve Portugal. Sempre fomos, a nível do inconsciente colectivo, expectantes «sebastianistas». Cegos mas quanto a delírios ninguém nos bate. O mundo que se cuide!

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Amanhã é o Dia dos Namorados

o teu nome é como perfume derramado

                               Cânticos dos Cânticos

 

Pintura de Marc Chagall
Convenções são convenções. O calendário ordena e a gente respeita. E o marketing agradece a benção cronológica. Amanhã é o Dia dos Namorados e, como em todas as celebrações, um dia devia ser o tempo de um ano, muitos anos ou de uma vida. O santo patrono (S. Valentim) até foi um mártir pois, contra as ordens do imperador de Roma, casou muitos cristãos e pagou a afronta ao poder com a própria vida (14/2/271). Há ainda uma outra lenda segundo a qual o mártir, encarcerado por ordem do imperador, se viria a apaixonar pela filha do carcereiro.Versão muito mais pitoresca. Segundo parece, a celebração começou nos países anglo-saxónicos e propagou-se a outros países do ocidente. Namoro (ou enamoramento) e martírio, conjugação da festa dos corpos e da dor é um paradoxo. Mas já como Camões dizia, com o seu jeito peculiar, o amor é "um contentamento descontente". Para uns mera ilusão, tal o caso de Schopenhauer (o individual submetido à lógica reprodutora da espécie), para outros uma festa da vida. Paradoxos à parte, namorar é bom até na velhice.
Com a mudança dos tempos, mudam os modos de namorar - a cada tempo a sua narrativa. Há-as doces, melodramáticas e trágicas. Almeida Garrett que, nestas coisas de enamoramento era perito, preferia o anglicismo «flirtar» a namorar (verbo um pouco pelintra): «To flirt é um verbo inocente que se conjuga ali [Inglaterra] entre os dois sexos, e não significa namorar - palavra grossa e absurda que eu [Carlos das Viagens] detesto [...] Eu flartava, nós flartávamos, elas flartavam». Seria sincero ao pôr tal palavra na boca de Carlos? Ou seria um mero registo de cosmopolitismo tão ao gosto do nosso nacionalista romântico? Mas deixemo-nos de cogitações linguísticas e vamos ao assunto - aliás, na língua portuguesa o verbo namorar tem já mais de 4 séculos.
Há namoros que têm o tempo da saison (os amores de praia ou de montanha, de preferência com muita neve), há outros que duram tanto (cada vez mais raros neste consumismo de corpos e desejos) que resistem mesmo ao bolor e às cãs. Hoje há rituais para todos os gostos. Até para aqueles que descobrem, nesse mesmo dia de celebração, que sempre foram ou se tornaram irremediavelmente estranhos, um equívoco a esquecer para a posteridade. Eu sou tu, tu és eu. Nunca dei por isso. Tu já?
Há os que passam o dia a fazer amor, há os que em vez de um beijo dão mil, tão alheados das outras necessidades do corpo que até esquecem a vontade de comer. Outros, pelo contrário, gostam de namorar com o estômago bem cheio de iguarias e bons vinhos. Namoros de peso.
Há também os órfãos do enamoramento, os excluídos, que gastam o dia a invejar os pássaros acasalados nos bancos dos jardins, à beira-mar, nas discotecas, ou em casa ao abrigo do borralho da lareira. Há os loucos que amam tão loucamente que se chegam a matar de amor - esta é para os mais românticos. Há os narcisistas que fazem sempre amor consigo próprios. Há quem se masturbe toda a vida para nunca ser atraiçoado. Há os castradores que gostam sobretudo de chatear os outros. Há os que namoram ídolos (estrelas do firmamento aureoladas pela fama, mesmo que efémera: actores, modelos, futebolistas, ases dos «reality shows»), na TV, na internet, ou nas páginas de uma revista para matar tédios sem esforço.
Há os namoros da 3ª idade (imagens de ternura), agora assim chamados, em lares da antevéspera da sepultura. Há também os que namoram com ninguém, sempre em busca do absoluto de si mesmos. Cada um escolhe as ilusões que pode nestes reinos de liberdade.
Hoje já ninguém namora de janela, como em tempos de antigas censuras. As janelas, quando muito, enquadram cenas de filmes pornográficos. A janela de Joaninha há muito se decompôs. Há ainda quem nunca tenha tempo para namorar - «time is money» -, o sucesso assim o exige, e gaste o pouco tempo que lhe resta em meras relações mercantis com mulheres de ocasião.
Pintura de Marc Chagall
Há quem namore paisagens: o mar, os campos, as ruelas da cidade, ou até auto-estradas. São os contemplativos. Há ainda as amizades coloridas, umas vezes a preto e branco, outras de cromatismos variados. Fazem do namoro um acto de libertinagem, amorosos sem compromissos ou apenas um gosto por eufemismos. Há os que namoram em grupo, numa promiscuidade «amoral». Mas nestas coisas de rituais o importante é cada um saber no que se mete ou onde mete ou é metido.  Há os que namoram a heroína, a própria ou a da telenovela. Há os que preferem uma praia deserta ou os fundos do mar (beijos entre sereias e tubarões). Há os que escolhem o deserto, e dizem que é a máxima plenitude orgástica. Chegam a provocar tempestades de areia. Cuidemo-nos desses excessos, pois um pequeno sopro de areia pode causar cataclismos imprevisíveis (o efeito borboleta).
Há os «voyeurs» que namoram às escondidas os outros a namorar - gozam e não se comprometem. Há ainda o namoro «gay», outrora submerso nos tempos sombrios dos interditos. Agora já podem pôr o corpo ao léu, mesmo nas fileiras dos exércitos da nossa segurança. Há também os nudistas, uma forma natural de amar, dizem, tenha-se em conta no entanto os condicionalismos do entusiasmo viril. Dá muito nas vistas.
Dantes davam-se rosas, mas estas duram o tempo efémero do prazer, por isso o que está mesmo a dar é a oferta de «lingerie sexy» pois, segundo a publicidade do ramo, «Dura mais e garante horas de prazer muito depois das pétalas das rosas já terem murchado».
Mas não estraguemos a solenidade com patacoadas de dúbio gosto: vamos todos namorar até ao Dia do Juízo Final, que é, aliás, um dia sem juízo nenhum, como de resto deve ser o acto de namorar.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

A Estranha Morte de D. Augusta Martinho

D. Augusta Martinho
Praceta das Amoreiras, nº6-4º dto
Rinchoa- Rio de Mouro


D. Augusta,

Pintura de Alberto Giacometti
O teu caso teve honras noticiosas na imprensa e nas televisões. Se não tivesses apodrecido durante 9 anos na cozinha da tua casa, sem que alguém disso se tivesse apercebido, terias morrido no silêncio mediático como qualquer anónima cidadã de 82 anos. Foi o teu corpo morto (peles ressequidas e ossos) que te deu fama. Não a tua vida, igual a milhares de outras na mesma condição de solidão e isolamento suburbanos. Nada sabemos do teu percurso de vida, quantas alegrias ou lágrimas, quantos tormentos ou alentos. Sabemos apenas que tinhas sobrinhos. Talvez até a solidão tenha sido uma escolha tua. Serias de pequena estatura (certamente para não dares nas vistas), um pouco soberba e de poucas falas, dizem na zona. Por isso, excepção para uma vizinha ainda com algum sentido comunitário, ninguém deu pela tua falta. Mas o esforço daquela foi em vão, as autoridades responsáveis (GNR, Serviços Sociais, etc.) não teriam capacidade para arrombar a tua porta e descobrir o mistério do teu desaparecimento súbito (Agosto de 2002). Só passados 9 anos, tendo a tua casa ido a leilão num processo de penhora, por não teres pago os teus impostos às Finanças, a Lei resolveu finalmente arrombar a porta , para dar acesso a um novo proprietário. As razões do dinheiro movem montanhas, neste caso uma porta da casa de uma humilde velhota. Na tua varanda, o teu solidário cão morto, rodeado também de pássaros mortos, acompanhou-te na fama. Teria sido talvez o teu último elo solidário com a vida.
Claro que a morte é, em última instância, um acto solitário, mesmo no anonimato do espaço hospitalar ou outro. Mas o teu corpo putrefacto ficou, sem tua vontade ou responsabilidade, como um símbolo ou uma sinédoque do abandono a que a grande cidade sujeita milhares de velhos, os eufemisticamente idosos. Mas não só, tu és também um símbolo do horror "urbanístico" que as sucessivas autoridades autárquicas foram permitindo no concelho de Sintra e em todo o país. Estes subúrbios da capital tornaram-se um verdadeiro inferno-dormitório - basta uma viagem de comboio entre Sintra e Lisboa para nos elucidar parcialmente do horror deste caos de betão.
És o dedo apontado, sem o saberes ou quereres, a uma sociedade que substituiu o sentido da comunidade por um dito "individualismo" corruptor dos valores da cidadania, isto é, dos valores inerentes a uma verdadeira cidade. E a tua casa nem sequer estava num ermo. Vivias a 50m da estação de comboios, num prédio de 5 andares, com 3 apartamentos por piso, e na tua praceta até havia um café. De facto, andamos todos muito distraídos com a crise financeira e quando chegamos a casa, já tardiamente, apetece-nos apenas olhar para o ecrã mágico e adormecer. Não temos tempo para os outros. Por isso, nesses blocos de cimento dos subúrbios, cada "vizinho" é um estranho quando não alguém potencialmente hostil. Os outros são o inferno, como diria Sartre. A acrescentar a isto há que assinalar o profundo corte no convívio entre as várias gerações. À convivialidade dos velhos bairros sucedeu este mundo suburbano de alheamentos e isolamentos. O outro é uma entidade inimiga a não ser que seja marchetado a ouro, o antigo bezerro d´oiro. E se não fossem as janelas abertas da tua casa (estávamos no mês quente de Agosto), com a invasão de moscas e sequentes larvas, o que teria acelerado a tua decomposição, julgar-se-ia um milagre o teu corpo não emanar o odor da putrefacção e da morte. Por isso, as pituitárias dos concidadãos não foram minimamente incomodadas. Aparentemente tudo decorria na normalidade do quotidiano suburbano. Se vivesses numa aldeia do cada vez mais desertificado mundo rural, o teu corpo não teria tal destino, pois alguém teria dado de imediato pela tua falta. O teu caso é tão exemplar que, num lugar-comum, poderíamos dizer que a tua realidade ultrapassa de longe a ficção.

Pintura de Arnold Böcklin

Ao menos que o teu caso (um "case study", diriam os americanos) sirva para que os líderes autárquicos, os políticos, os urbanistas, os arquitectos, os sociólogos, com os empresários da construção a reboque, comecem a pensar na urgente humanização da vida urbana. Sei que isto é mais um desejo meu do que uma futura realidade imediatamente concretizável, mas sabe sempre bem dizê-lo. Façam cidades onde a sociabilidade seja possível e contribuam para a criação de estruturas sociais onde a única solidão admissível seja aquela que decorre da própria opção dos cidadãos. E sobretudo não deitem para o lixo os velhos (perdão, os idosos). Reformas decentes, assistência médico-social normalizada e espaços urbanos, onde apeteça estar e conviver, não serão uma panaceia para os dramas do envelhecimento e da morte, mas contribuirão de facto para uma maior dignidade de todos.
Certamente estarás de acordo comigo, D. Augusta.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Ascese e totalidade: a "Arte Poética" de Sophia

Pintura de William Turner
Tudo começa com o olhar e o fascínio da luz sobre as coisas: formas e cromatismos. Jogos de luz e sombras escassas: "O sol é pesado e a luz leve". A sombra pode também ser água. As formas das coisas estruturam-se em função de arquitecturas imaginárias onde os sentidos se projectam e respiram. O poeta caminhante deixa-se impregnar por imagens matriciais onde ecoa a dimensão apolínea de Creta. A ânfora, forma imemorial, transporta consigo um antiquíssimo saber artesanal, isomorfo do fazer artesanal do poeta. O barro trabalhado pelas mãos é uma fusão da terra, da água e da luz. Um sinal da criação, liberto do tempo corruptor.
A poesia é ("Arte Poética I"), primeiro que tudo, uma arte do olhar e, purificados os olhos, talvez pela aprendizagem de uma poética moderna da ascese, transforma-se em algo capaz de apreender a iluminação das coisas, como se as disséssemos na evidência quase insuportável da sua beleza encantatória. As imagens, os sons, os odores e o tacto da terra são a matéria-prima de onde emana a palavra poética - cal, mar, pedras polidas, oregãos, tílias... Daí que o poema não fale "duma vida ideal mas sim duma vida concreta" ("Arte Poética II"), tão concreta como a cal ou a ânfora, um símbolo exemplar. A poesia é também, por outro lado, um modo especial de religião, uma aspiração a uma ordem euforizante (religião no seu sentido etimológico: religio, religare).
Como a ânfora, sol e terra divinizados (Ísis e Deméter), funde o material e o espiritual. Aqui conjugam-se o olhar, o gesto escultural e a dicção do desejo de unidade. O poema, num primeiro momento, captação de um fragmento, constrói-se posteriormente em função da unidade, da aliança e do reino: unir o que está separado, numa síntese entre o objectivo e o subjectivo. As fronteiras diluem-se entre o exterior e o interior, o descendente e o ascendente, o que olha e o que é olhado, o que diz e o que é dito. Reino imaginário e real onde se capta, ora em zonas de luz ora de penumbra, a magia do universo. É a antítese do "habitat", território da fragmentação, corpo de Orfeu despedaçado pelas "fúrias" - o espaço da divisão.

Pintura de William Turner

Cada palavra de um poema contém, simultaneamente, o peso do sol e a leveza da luz; uma descida e uma ascese. O compromisso do poeta com as coisas implica, para lá da artesania das palavras, a projecção do seu ser total. Na cal da página, outra forma de sol, inscrevem-se os signos como uma fértil penumbra. Uma túnica contra o tempo corruptor.
A poesia em prosa ("Arte Poética I/V") de Sophia de Mello Breyner Andresen "diz-se" a pensar-se, o que parece excluir ou, pelo menos, menorizar uma teoria literária enquanto metalinguagem do discurso poético. Nestes textos, a reflexão sobre a génese do acto poético é inseparável da própria criação. Como num espelho, a poesia vê-se a criar e esta distância é a condição da possibilidade de apreensão da essência do gesto poético. Neste aspecto, todo o discurso sobre a poesia será ainda poesia ou, dito de outro modo, só através da poesia podemos falar da poesia. Com a poesia aprendemos a conviver com o universo e a participar no real com toda a pureza ("inteireza") do ser. De novo, a ambição da totalidade.
Há, nos seus textos, a expressão de uma sede de real, sob a configuração de um círculo mágico. Há, por isso, uma justiça imanente às coisas e ao poema, ou melhor, às coisas ditas pelo poema, que participa da sua estrutural harmonia. A ética das formas é também uma ética social: uma homologia entre o desejo de perfeição formal e a expectativa de uma perfeição social. Não há, no entanto, imposições possíveis vindas do exterior. A moral do poema é apenas induzida pela sua própria dicção. E aí pode desenvolver-se o sentido da revolta (Antígona) ou o da utopia. O poeta está do mesmo modo contra a desordem das formas e a desordem (injustiça) social. O artista não é uma "ilha". Estabelece inevitavelmente laços com as coisas e os homens, mesmo quando o isolamento é a postura mais apropriada para o acto criativo. A busca da dignidade da forma implica a procura da dignidade do ser, ou seja, de uma sociedade mais justa, mais adequada também ao exercício público da actividade estética.

Pintura de Júlio Pomar

O poeta é um "escutador" ("Sei que o poema aparece, emerge e é escutado..."), para além de vidente e artesão. Enquanto "escutador", numa cadência óbvia, ao poeta exige-se "atenção, tensão e concentração". Fazer poesia é lutar com as palavras de molde a centrar as que mais rigorosamente exprimam a nossa relação com as coisas; é fazer delas uma música interior que, no entanto, parece estar para além do sujeito. E aí, este parece anular-se ante a teia que está na génese do texto. Agente e objecto, o poeta é um arquitecto que procura atingir a ordem intrínseca a partir "duma sucessão incoerente de versos e imagens". De qualquer modo, é sempre um acto de paixão.
O poema diz-se então como uma respiração do universo. Mas, por vezes, a página branca, um palco metaforicamente vazio, exige a plenitude do gesto da bailarina. Ou então, há uma história antes do poema, um "leitmotiv". O gesto poético não se resume, pois, a uma escrita passiva, a uma evidência, já que a escrita implica dar ordem ao caos das vozes interiores. No fundo, a questão está em saber quem fala e quem escuta ou saber qual a fonte do desejo do poeta "escutador". O poema seria, paradoxalmente, a voz do outro que nele fala ou, dito de outro modo, a sua própria voz sentida ou escutada como alteridade. Daí o vazio e a despersonalização que a cenografia poética pode comportar ou a tensão permanente com a voz que simultaneamente está nele e dele se afastou definitivamente. A poesia é, em suma, uma doação plena do ser para um diálogo com o universo.