sábado, 26 de março de 2011

A Morte Anunciada do Último Sebastianista

Ayer fuiste rey de Hespaña,
Oy no tienes un castillo.

Domingos Madeira

David - A Morte de Sócrates (1787)
O filósofo Sócrates (469-399 a.C.) matou-se com cicuta, após condenação pelas autoridades por corromper a juventude. Podendo optar pelo exílio, preferiu o envenenamento com o suco fervido desta planta da família das umbelíferas que tanto pode ser extraído das folhas como dos frutos. Foi um modo singular de assinalar a injustiça da sua condenação, um exemplo de coerência ética. Com a sua douta ignorância, defendia que o seu saber nada valia comparado com a verdadeira sageza, certamente algo incómodo para os poderosos, fortificados nas certezas absolutas das suas decisões. Era por isso um pensador incómodo.
Hoje escasseiam os que procuram no aprofundamento do conhecimento de si, como o fazia o filósofo grego, um fundamento da virtude.
O nosso Sócrates, 1º ministro que entretanto se demitiu, nada tem obviamente de comum com o seu homónimo de há uns milénios atrás. É engenheiro de obras toscas e político. E como é comum nos políticos, nunca olha para dentro de si, afivela a máscara, marca o ritmo da passada, acena às massas e nunca tem hesitações, ou melhor, aparenta não as ter.
Esta minha relação antroponómica nada tem de inocente, não que eu pretendesse um 1º ministro mais preocupado com a auto-análise do que com a governação. Mas a escolha do nome e não do sobrenome por parte da personagem, enquanto etiqueta política, também nada tem de inocente. De seu nome completo José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa, também se poderia ter chamado apenas José, o que daria um bom mote para o poema "José", de Carlos Drummond de Andrade: "E agora, José?/A festa acabou,/a luz apagou,/o povo sumiu,/a noite esfriou,/e agora, José?".
Eis-nos, pois, desconfiados com esta ambivalente aproximação entre o político e o milenário filósofo. Será o político um fervoroso adepto da tradição socrática, ou o seu nome de guerra é um mero acto de marketing político?
Na cabeça confusa do povo um nome pode ser um capital simbólico. Porque apagou Sócrates o apelido?Mistérios da nossa cena política. Se por acaso se chamasse Manuel, não viria à baila o sobrenome? Imaginemos qualquer coisa como o nosso 1º ministro Manuel ou João ou António. Seria de um pirismo inaceitável. Mas Sócrates é outra coisa, até internacionalmente.
Com a reprovação parlamentar do estrategicamente cozinhado PEC IV com os poderosos da União Europeia, lá se demitiu o nosso, salvo seja, ministro-filósofo. Não seria uma tragédia se não vivêssemos há muito em plena catástrofe financeira, na tradição pantanosa de um seu antecessor.
Para uns, Sócrates foi uma vítima da estratégia e da retórica malignas das oposições, para outros, uma fuga hábil e astuta às teias desta conjuntura económico-social
O líder do PSD, Passos Coelho, por seu lado, começa finalmente a manifestar a sua fome de ir ao pote e emerge majestático na sua imagem televisiva. Não aparenta, no entanto, carências alimentares, apenas de medidas concretas para travar o salivar cada vez mais abundante dos mercados financeiros e dos seus “amigos” da UE.
Entre vivas, salvas e apupos, o Zé Povinho lá irá de novo em Junho pôr na urna (palavra inquietante neste naufrágio colectivo) os seus votos para mais um alegre corridinho, tão típico do nosso folclore. Ou então, porque não um ritmado fandango, bem mais viril e empertigado. Antes isso do que um fado, masoquista auto-contemplação da alma nacional.
Ensor - A Intriga (1890)
Preparem-se as máscaras para um carnaval estival. Eu já tenho uma na gaveta, vou mascarado de porreta e outra treta. Voto branco, voto negro, voto a vida e a morte – papelinhos e maçãs podres para atirar aos foliões deste meu país de “três sílabas de plástico”, como dizia o O´Neill.
"Votos e mais votos, a minha mão está cansada e das cruzes nem se fala. É uma dor pela espinhela  abaixo. Já não se aguenta" – diz um eleitor recorrente. "Estás enganado, cidadão. Tudo se aguenta, menos a voracidade do poder financeiro internacional "– é um anti-capitalista a sussurrar.
Mas,  caros políticos,  se em vez de discursos e arruadas fizessem dias de silêncio em homenagem à nossa fúnebre máscara final? Sejam grotescos, mas silenciosos; sejam patéticos, mas silenciosos. Não digam que sim nem que não, mas antes pelo contrário.   Não digam sobretudo, à “economês”, que fizeram o trabalho de casa. Deixem escutar a suave brisa matinal, sem algaraviadas nem corropios.
Enfim! Portugal, nosso destino perdido. Fizeram de ti um pedinte, mas com a mania das grandezas. "Não é de agora, mas de sempre. Impérios na mira, impérios a afundar-se" (voz  de um autodidacta em História). Ou, como diria Jorge de Sena, "terra de heróis a peso de ouro e sangue,/e santos com balcão de secos e molhados/no fundo da virtude..." ("A Portugal").
Mas podemos ainda vender as reservas de ouro, as auto-estradas bem embaladas, o BPN mesmo falido, a nova praia marítima de Mangualde com água salgada e tudo, os submarinos, o Centro Cultural de Belém, as parcerias público-privadas, os hospitais, a Torre de Belém, os Jerónimos, a ilha da Madeira com o Jardim e tudo. Seria um negócio de truz! Quanto ao povinho, mandem metade para o Pará e a outra para o canal do Panamá.
Costa Pinheiro - D. Sebastião (1966)
Na neblina do vazio, seríamos habitados por fantasmas, nesta ocidental praia lusitana desertificada. Finalmente, com todo o esplendor, eis que despontaria D. Sebastião com seu cavalo alazão a ocupar triunfal o deserto dos nossos sonhos e delírios colectivos, acompanhado de anjos barrocos, tangendo as dez mil guitarras de Alcácer-Quibir, numa épica ressurreição, ao ritmo das vagas heróicas wagnerianas (esta uma sugestão da Srª. Merkel ), sobrepondo-se ao som das dolentes guitarras. Mas o pobre do rei sempre desejado, no centro do Terreiro do Paço (exactamente no lugar da estátua de D. José, entretanto vendida em leilão), olha até onde a vista alcança e só vê vazio. Então, angustiado, interroga os anjos:
- Onde está o meu povo?



quarta-feira, 23 de março de 2011

O Sono, os Sonhos e os Pesadelos

Puvis de Chavannes - O Sonho (1883)
Na mitologia grega, Hipno é a personificação do sono. É um ser alado, ora águia ora borboleta, com parentescos suspeitos – filho da Noite e irmão gémeo de Tânato (a morte). Mas esta má fama não retirou ao objecto personificado uma justa consagração nos nossos dias. Quanto à noite, teremos de referir que hoje os seus verdadeiros filhos são os noctívagos, os ternos amantes da noite, e estes dormem sobretudo de dia, pois como os vampiros não suportam os raios solares. Quanto à morte, nada mais distante, pois não suporta o povoamento dos sonhos tal como acontece na paisagem sonífera, onde  as asas do sono nos permitem viajar sobre os campos e as cidades, vôos sublimes que nos fazem esquecer o peso da culpa dos nossos corpos, embora, por vezes, como Ícaro, nos aproximemos tão incautamente da luz do sol que as asas dos desejos se derretem e caiamos abruptamente nas profundidades do mar.
Apenas os pesadelos nos podem sugerir aquele parentesco letal, como uma tatuagem no nosso inconsciente colectivo. Mas o pesadelo é ainda uma forma de vida, mesmo que a torne insuportável ou temível. É um filão temático bem utilizado pelo cinema de terror, no qual as personagens lutam para não adormecer, único modo de não serem possuídas por esses demónios da noite. E, no ambivalente prazer dos medos, o espectador consome-se nesses devaneios fantásticos como um verdadeiro acto de catarse. Depois, poderá dormir na paz dos anjos até que um demoníaco despertador o arranca de supetão desse paraíso que julgava definitivo.
Há também quem durma acordado, vagabundos do sono,  distraídos dos perigos e adversidades do quotidiano. Nestes o sono é uma doença e não uma virtude. Há ainda a doença do sono, picadelas da africana mosca tsé tsé (nome bélico como convém a tal cenografia)  enviada à terra por Hipno ou pelo seu filho Morfeu, quando entediados se divertem malevolamente com os humanos. Estes actores mitológicos não distinguem o bem do mal, a sua única função é tanto fantasiar a nossa vida, como maltratá-la. Os desígnios destes deuses são insondáveis, ainda que, neste caso, as suas malfeitorias pudessem ser contrariadas, bastava que, nos países ricos, houvesse vontade política para acabar com esta endemia africana.
Van Gogh - A Sesta (1890)
Durante o sono dos mortais, acontece muitas vezes estes deuses disfarçarem-se de seres humanos e provocarem nos dormentes perversas cenas eróticas, aparentemente tão reais que maculam os lençóis brancos com as sombras dos desejos interditos ou insatisfeitos. Estamos na fronteira entre a fantasia onírica e o real.
Há também quem não dispense uma boa sesta, sobretudo nos países mediterrânicos, quando o calor aperta e o estômago pesado, após o almoço, exige uma pausa na labuta diária. Sesta, que vem de sexta hora, era tradicional nos trabalhos agrícolas dos campos do sul, quando se trabalhava do nascer do sol até ao crepúsculo, memória ritualística que Van Gogh tão magistralmente fixou na tela (A sesta, 1890). A moda rural da sesta migrou para os meios urbanos, sobretudo para aqueles que têm tempo e teres para o fazer.
Füssli - O Pesadelo (1790)
Mas a sociedade moderna vive também sob o signo da insónia: novos e velhos, sobressaltados pelas angústias do quotidiano, submetem-se ao império farmacêutico dos dormitivos, uma indústria em florescimento crescente. Os mais velhos temem certamente que, na distracção da dormência, o sempre astuto Tânato se aproveite cobardemente da situação e os transporte para o reino de Hades. Já os mais novos, massacrados pelo inferno em vida (obter emprego, pagar as prestações do carro e da casa, as propinas dos filhos, aturar as impertinências do chefe ou do cônjugue, evitar a falência da empresa, seduzir o homem ou a mulher da sua vida, sair de uma relação erótica apodrecida, etc.), não conseguem pregar olho sem a ajuda de uma erva dormideira que Hipno transporta em abundância para hospitaleiramente servir todos os pedidos. Claro que esta nossa vida sedentária muito colabora para este estado geral de insónia. Se fôssemos nómadas, como os nossos longínquos antepassados, com tanta corrida apressada, chegados ao sol posto, adormecíamos como anjos nos lençóis do paraíso.
Mas, benévolos leitores, agora reparo que, com este longo arrazoado, começais a cair nos braços de Morfeu. Chegou a hora de terminar, vou aproveitar eu próprio para me restabelecer com uma sesta em homenagem ao dia mundial do sono, sem narcóticos de preferência.


segunda-feira, 21 de março de 2011

A Poesia diz o Mundo

Hoje é o Dia da Poesia, da Árvore e também o Dia Internacional contra a Discriminação Racial. As efemérides são o que são e este humilde cronista, obrigado pela natureza das convenções, resolveu celebrar a euforia da Primavera e da Árvore e a sempre pertinente luta contra todas as formas de racismo através das palavras dos nossos poetas. Não podia deixar também de evocar, no Dia da Poesia, Manuel da Fonseca, um poeta a reler urgentemente, no ano do centenário do seu nascimento.

Aldeia

Nove casas,
duas ruas,
ao meio das ruas
um largo,
ao meio do largo
um poço de água fria.

Tudo isto tão parado
e o céu tão baixo
que quando alguém grita para longe
um nome familiar
se assustam pombos bravos
e acordam ecos no descampado.

Manuel da Fonseca (1911-1993)


A uma Árvore
Árvore,
Quando eu morrer hás-de ficar.
Théodore Rousseau
Hás-de ver o passar doutras Estações.
Hás-de ouvir as canções
De uns outros ninhos, noutras Primaveras.
Junto de ti, meu filho há-de sonhar
Minhas antigas, fúlgidas quimeras.

Árvore,
Quando eu morrer, hás-de falar
De mim, que te plantei.
E, em cada ramo novo que brotar,
Serás um gesto meu a perdurar:
- Por ti, não morrerei...

Francisco Bugalho (1905-1949)


Lágrima de preta

Encontrei uma preta
Gauguin
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.

Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.

Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.

Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.

Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:

Nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.

António Gedeão (1906-1997)

sábado, 19 de março de 2011

Como a Crise me vem afectando...

 Carel Willink, (Holanda,1900-1983), Paisagem com estátua caída, 1942.



A palavra crise está, entre nós, de tal modo inflacionada que corre o risco de se esvaziar semanticamente. O país está em crise (financeira, política, social e moral ), o mundo também, embora menos, e cada um de nós o está por arrastamento. A crise vem coabitando connosco diariamente através das vozes da rádio, da televisão, da imprensa e da internet: uma verdadeira obsessão hiperbolizada com os contornos sociopolíticos desta conjuntura.
Quando acordo já estou em crise e os meus sonhos tornaram-se pesadelos crisológicos. De dia nem vale a pena falar, tornou-se tão insuportável que até experimentei pôr uns tampões nos ouvidos e umas vendas nos olhos por causa das legendas. Não resultou, pois a crise já se tinha instalado subrepticiamente nos meandros do meu cérebro. Não sei mesmo se não me transformei já numa crisálida da crise. Por isso evito os espelhos e mesmo o olhar dos outros. Tudo isto envolvido em remorso, pois a responsabilidade é simultaneamente individual e colectiva, para uns mais do que para outros, obviamente.
Mas quando a crise, a literal, implodir já ninguém dará por isso, tal o hábito interiorizado de com ela convivermos – cogita a parte ainda lúcida do meu ser.
A crise é um sobressalto, não pode ser um habitante permanente do nosso quotidiano, a não ser que estejamos já a navegar na nave dos loucos. Ou estejamos já a viver em pleno apocalipse.
Segundo alguns “sábios” – é uma hipótese a considerar -, crise seria o intervalo, sempre expectante, angustiante e doloroso, entre algo que está a depauperar-se ou a morrer e o que está ainda por nascer. Ou, como diriam os românticos, o intervalo entre o já-não e o ainda-não.
Crise, por outro lado, não é o mesmo que catástrofe, embora a nível do senso comum os conceitos se confundam. As crises podem, no entanto, ser premonitórias das catástrofes, por ex. em economia, sinais da iminência da bancarrota de um Estado. Deste ponto de vista, a catástrofe pode ser uma actualização das latências implícitas nas crises.
Mas há outro tipo de catástrofes, sobretudo as chamadas naturais, que possuem algo de aleatório e imprevisível, tal o caso do recente sismo no Japão, e portanto o sentido da tragédia, pois podemos atenuar os seus efeitos a posteriori mas não evitá-las. É por isso um fatalismo.
Em sentido lato, entramos em crise quando o nosso sistema de segurança ontológico está em declínio, algo que nos pode aproximar da imagem do caos, e ainda não encontrámos um novo sistema de valores que nos reabra o sentido da vida. Mas o caos também pode conter uma dimensão criativa: à desordem do mundo envelhecido (o caos) sucede uma ordem renovada. É este o sentido expresso pelas antigas  cosmologias.
Deste modo, uma crise pode não ser negativa, se analisada como um momento necessário à mudança e à renovação.
É, num outro plano, o caso das chamadas crises de adolescência que são crises implícitas e necessárias ao processo de crescimento juvenil.
Depois destas tergiversações um pouco caóticas, já me sinto a escapar ao estado de crisálida e a esvoaçar toscamente para outros mundos possíveis, alternativos ao mundo iníquo em que vivemos. Como terapêutica para a depressão nada melhor do que acabar esta história com um happy end

quarta-feira, 16 de março de 2011

As Novas Cruzadas de Cavaco Silva

João Abel Manta
 "Importa que os jovens deste tempo se empenhem em missões e causas essenciais ao futuro do País, com a mesma coragem, o mesmo desprendimento e a mesma determinação com que os jovens de há 50 anos assumiram a sua participação na guerra do Ultramar."
Discurso de Cavaco na Comemoração do 50º Aniversário do início da guerra colonial  (15/3/011)

Cavaco Silva, no melhor do seu estilo retórico e ideológico, sugere, como narrativa exemplar para a juventude de hoje, a acção «patriótica» de 1 milhão de jovens que, entre 1961 e 1974, sacrificaram as suas vidas em prol da «Pátria», na guerra do Ultramar. Nunca usa o adjectivo colonial, pois, para este distinto estadista, as colónias eram certamente províncias ultramarinas, à boa maneira salazarista. A linguagem nunca é inocente do ponto de vista ideológico. Aliás, convém analisar, no seu discurso, como os valores do esforço e da abnegação dos jovens de então são convenientemente descontextualizados historicamente. Naquela época, os jovens, quer estivessem ou não com a  política bélica do "fascismo" (conceito hoje quase em desuso junto de certos intelectuais, porque demasiado ofensivo para o chamado Estado Novo), eram forçados a combater numa cruzada anacrónica ou então condenados a sofrer as consequências da deserção, caso tivessem a coragem de resistir às concepções totalitárias do regime.
Segundo as estatísticas, teriam morrido nessa louca aventura 8.500 militares (caso confiemos neste balanço), fora as centenas de milhares de estropiados física ou psicologicamente.
A pátria é uma construção da vontade democrática de um povo, tal não era o caso do "antigo regime". Como sabemos, qualquer resistência à vontade imperial do "dinossauro", reinante nessa época, era violentamente reprimida. Não podemos apagar o clima de medo dos nossos "anos de chumbo", nem o policiamento quotidiano do corpo e do espírito.
Ora, regressando ao discurso do nossa Chefe Supremo das Forças Armadas, a descontextualização sociopolítica e histórica da guerra colonial produz um efeito ideológico de apagamento da nossa memória colectiva, de cariz eminentemente reaccionário. Aliás, numa gaffe célebre, foi a mesma personalidade que designou o 10 de Junho como o "Dia da Raça", uma simbologia comum à usada pelo Estado Novo.
Cavaco parece ser um misto de tecnocrata das finanças e um nostálgico dos tempos "heróicos" da luta, contra o rumo da História e a opinião maioritária do mundo, pela manutenção de um grandioso império colonial.
O tempo das "cruzadas" contra os "turras" ficará certamente na nossa História como uma mácula na narrativa colectiva, já com 900 anos de existência. Nunca poderá servir por isso de exemplo para o empenhamento da actual juventude na construção do futuro do País. Isso seria um verdadeiro contrasenso. A coragem, o desprendimento e a determinação dos nossos soldados na guerra colonial são uma mera ideologização fictícia que distorce o próprio sentido da nossa história recente. Nada destes valores se pode conceber em abstracto. A coragem ou a determinação para liquidar o "inimigo" numa guerra injusta e absurda não poderão ser as mesmas que hoje se exigem ao nossos jovens. Os sacrifícios por que passa a nossa juventude actual nada têm a ver com aqueles que eram prepotentemente exigidos pela ditadura da época.
A coragem torna-se um vazio semântico se a excluirmos do contexto concreto em que se exerceu. Os soldados que combateram nos exércitos nazis, durante a 2ª Guerra Mundial, também eram à sua maneira corajosos. Mas não é dessa coragem que precisamos para edificar um mundo mais justo e democrático, onde exista espaço para um pacífico diálogo entre as civilizações.
Cavaco parece querer reescrever a nossa História, ao eliminar da nossa memória colectiva as atrocidades cometidas em nome de uma pátria que para muitos não passava de uma ficção.
Esperemos que não esteja, na sua alucinação discursiva, a pensar numa nova "cruzada patriótica", como solução para a crise em que nos encontramos e da qual também é responsável. E como já não há territórios a conquistar, nem mouros ou negros a abater, aquela só poderá ser a cruzada de um onirismo grotesco gerado pelos pesadelos do nosso presidente.

domingo, 13 de março de 2011

O "Day After" - A Manifestação do País à Rasca

Pintura de Ensor
O povo saiu de novo à rua. Com pandeiretas, gaitas de foles, tubas, trombetas, guitarras, violas, concertinas, vozes desafinadas e afinadas; novos, menos novos, maduros e velhos, todos ali de corpo e alma na mesma vontade de gritar a sua revolta. Era uma multidão caótica como é próprio das multidões. Cartazes e folhetos artesanais, palavras de ordem sem ordem, frases à deriva, passadas ao ritmo de cada fôlego, lamentos esparsos, gargalhadas, gritos convictos, risos provocatórios, máscaras e mascarados, formas plurais de encenação de um auto carnavalesco contra os desvarios e prepotências do poder político.
Um corpo colectivo sem lideranças a exibir a festa do protesto, a mostrar aos senhores mandantes e seus capangas que o povo (palavra abstracta que desagrada à snobeira de muitos comentadores políticos) ainda sabe, quando quer, usar politicamente a liberdade conquistada.
Os peritos do comentário político na televisão ou na imprensa, cuja função é com a sua sabedoria pensar por nós, acharam que é mais um sinal dos tempos de crise, não disseram muito mais, certamente porque ainda estavam a digerir os efeitos do evento. No Público (13-3-2011), a Drª Maria Filomena Mónica, com a sua pose habitual, desenvolve um pouco mais a matéria. Para esta atenta socióloga, “É mentira que mais ensino conduza necessariamente a uma economia mais dinâmica”. E divide meticulosamente os jovens contestatários diplomados em 3 categorias: os mitras, os boys e os betos. Cada grupo com os seus tutores diferenciados: os dos pais pobres; os dos pais das classes médias com boas relações políticas; e os dos pais ricos há muitas gerações. Há, por outro lado, uma inflação de diplomas para o mercado de trabalho existente, pois, segundo a articulista, “Portugal teve a percentagem mais elevada de estudantes pós-graduados do mundo”, entre 2000 e 2007. O fim feliz desta história estará para os betos e os boys. Quanto aos mitras, bem podem protestar, já que nada pode alterar o fatalismo histórico: “acabarão em empregos mal remunerados e no desemprego”.
Fim trágico para os pais destes que gastaram as parcas reservas para dar um futuro digno aos filhos, defraudados até ao tutano das suas vidas.
Esta narrativa exemplar da Drª Filomena aponta frontalmente para dois grandes responsáveis: os governos que incitaram os jovens, contra ventos e marés, à obtenção de diplomas como garantia de emprego certo, e as Instituições Universitárias que venderam gato por lebre, ou seja, cursos sem qualquer mérito reconhecível.
Não se pense, no entanto, que a Drª tenha uma visão anti-democrática do ensino: “É verdade que filhos de sapateiros deixaram de ser sapateiros e as filhas das criadas de servir de ser empregadas domésticas, uma realidade positiva. Mas a qualidade da educação não deveria ter sido, como foi, sacrificada”. Ora supõe-se, então, que foram os filhos dos sapateiros e as filhas das criadas de servir que literalmente arruinaram a qualidade do nosso ensino universitário. Mas a bondade social de F. Mónica esquece, aliás, uma perversão da democracia ocidental, pois, como acentua Paul Krugman, relativamente à diferença de oportunidades entre os filhos dos ricos e os dos pobres, no que concerne à mobilidade no ensino americano, um jovem inteligente oriundo de uma família pobre tem muito menos hipóteses de aceder ao ensino superior, do que um jovem muito menos dotado de uma família rica. A isto chama-se reprodução social através do ensino.
Mas, voltando à manifestação do dia 12, a articulista, com a qual aliás estou de acordo em relação à denúncia da má qualidade de muitos cursos superiores em Portugal (públicos e privados), acaba por revelar o seu desprezo por tal evento, ao desvalorizar os méritos académicos dos seus promotores: “são todos licenciados em Relações Internacionais. Isto habilita-os a quê? Alguém se deu ao trabalho de olhar o conteúdo destes cursos? Os docentes que os regem sabem do que falam? Duvido.”
Para lá do seu desprezo por tais matérias, não estará a pensar neles como prováveis filhos de sapateiros ou de criadas de servir? A sequência do seu discurso torna pertinente tal interrogação: filhos de sapateiros e filhas de criadas de servir; a deficiente qualidade da educação; todos licenciados em Relações Internacionais
Mas, cara Drª, o protesto foi um exemplo de educado civismo e quanto à sua componente carnavalesca, ela foi sempre uma arma espectacular e discursiva dos povos contra a prepotência dos poderosos, por isso foi, pelo menos desde a Idade Média, reprimida por estes.

sábado, 12 de março de 2011

Encontros e Desencontros de duas Gerações à Rasca

Júlio Pomar - O Almoço do Trolha
Uma farsa trágica em um acto,
de pendor neo-realista

O diálogo desenrola-se na estação do metropolitano de Entrecampos.
Personagens:
João - desempregado de longa duração, com 60 anos
Francisco - desempregado recém-licenciado em Ciências Sociais, com 24 anos


João – Ó amigo, não se arranja um cigarrito?
Francisco – Não vê que estou com pressa!
João – Mas para onde vais tão apressado, que nem tempo tens para dar uma passa a este viciado de longa duração?
Francisco – Vou à manifestação dos “quinhentoseuristas”!
João – À dos quê? Isso tem a ver com os protestos dos benfiquistas contra o roubo das arbitragens?
Francisco – Claro que não! Você não lê jornais, nem vê televisão? Nunca ouviu falar do protesto colectivo da geração à rasca, dos seiscentos mil desempregados, dos alugados a recibo verde, uma nova forma de escravatura?
João – Desculpe se o ofendi com a minha ignorância. Como vi algumas bandeiras vermelhas, pensei que se tratava da revolta benfiquista.
Francisco – Na nossa manifestação há bandeiras de todas as cores. Você, além de ignorante parece-me daltónico. Mas em que mundo vive você? O povo desempregado está na rua e você fala-me de futebol!
João – Na rua vivo eu há já uns anos. Não me venha dar lições de rua, que eu nisso sou mestre. Conheço-a como as palmas das minhas mãos. É uma espécie de segunda pele. A rua para mim foi uma espécie de destino. Trabalhava com a minha mulher numa multinacional. Fomos ambos despedidos vai aí para uns dez anos. Os gajos foram para o Vietname e deixaram-nos de estômago vazio. Parece que os vietnamitas quase não comem. Trabalham a troco de uma bacia de arroz por mês. Ainda recebemos umas massas da Segurança Social, depois sem cheta já não pudemos pagar as prestações da casita. E agora a nossa nova casa é a rua. Eu por aqui, a minha mulher por acolá. Nunca mais lhe pus a vista em cima. E com 60 anos já ninguém me dá trabalho.
Francisco – Tente no Pingo Doce. O dono, um dos duzentos mais ricos do mundo, diz que não consegue arranjar talhantes, para ele o pessoal não quer é trabalhar.
João – Talhante, eu? Já não tenho idade para aprender a cortar carne. Aliás odeio ver o sangue de bichos mortos. Sou mecânico e disso fiz a minha vida, até os filhos da puta me despedirem.
Francisco – Então porque não vens connosco à manifestação?
João – Para quê?
Francisco – Para darmos uma solução à crise. Mudar esta vida de merda. Acabar com o desemprego. Somos já muitos milhares. Unidos retomaremos a nossa dignidade. Agora até há aí uns senhores que, no âmbito da salvação nacional, propõem privatizar tudo, até mesmo o ar.
João – Então quem não tiver cacau, já nem poderá respirar? Bem fez o meu cunhado que se pirou para França nos anos 60. Dizem que nessa altura um milhão e meio de portugas fizeram o mesmo. A mesma sorte não teve o meu irmão mais velho que veio da guerra de África sem as pernas. Sobrevive com uma pensão de merda e a mulher vai muitas vezes à sopa dos pobres.
Francisco – O que lá vai, lá vai. Outros tempos, outros problemas, outras soluções. Temos de lutar por um Portugal renovado, que não deite para o lixo a geração com mais nível de formação na história do país.
João – Mas isso é uma geração de doutores! Eu cá só tenho a 4ª classe. Era o normal quando era miúdo. E muitos nem disso se podiam gabar, nem o cu sentavam nas cadeiras da escola. Só os remediados e os ricos podiam ir mais além. Passei fome de criar bicho, trabalhei anos como ajudante de marçano, mas o meu sonho era vir a ser mecânico. Comecei a trabalhar como ajudante numa oficina de automóveis, fiz das tripas coração, até que um dia consegui emprego na multinacional. Os vietnamitas é que bem me lixaram.
Francisco – Mas agora há liberdade para protestarmos. E, além disso, somos mais cultos.
João – E para morrer de fome também. Sabes, deixei de acreditar em lutas colectivas. Tento safar-me no dia a dia. Uns biscates de vez em quando. Às vezes vou ao lixo dos restaurantes, quando o estômago aperta.
Francisco – Se actuarmos em conjunto, imporemos uma alteração rápida desta realidade.
João – Não me digas que conseguem trazer de volta a minha fábrica de componentes de automóveis. O Vietname é lá tão longe!...
Francisco – Quem te lixou não foram os vietnamitas, mas a gula infindável do lucro.
João – Não me digas que és comuna?
Francisco – Nalgumas coisas sim, noutras não. Sabes, hoje as ideologias já não são o que eram. Hoje somos  talvez mais pragmáticos e menos idealistas. Somos mais desconfiados relativamente aos rumos do mundo, muitos de nós perderam as convicções quase religiosas de certas ideologias de esquerda. Falo apenas em meu nome, é claro. Sou apenas um dos porta-vozes da urgência do protesto colectivo. Trabalhadores, políticos e empresários têm de colaborar em conjunto na renovação da sociedade portuguesa. Mas nem todos pensam assim. E embora os partidos sejam uma componente fundamental desta democracia, penso que é o momento de dar voz  àqueles que neles não se reconhecem. E estes são hoje a maioria da população portuguesa.
João – Também já não acredito nos partidos nem em Nossa Senhora de Fátima. Mas falas demasiado caro para o meu entendimento. Mas tu, com todo esse saber universitário, achas mesmo que é possível mudar isto sem os partidos e os sindicatos metidos ao barulho? Bem, já chega de politiquices. Não tarda muito, tenho é de ir tratar da minha vidinha. Arranjar os cartões  e um cantinho para a soneca nocturna, a concorrência é cada vez maior e não nos podemos distrair, com este frio nem todos os buracos são confortáveis. Ah! É verdade, não tens aí uns trocos para matar o ratinho que tenho no bucho?
Francisco – Também sou um teso! Mas para que fique claro, nós não somos contra os partidos, aliás nem todos têm a mesma responsabilidade no descalabro a que chegámos, mas chegou a hora  de a sociedade civil se fazer ouvir. O poder popular está de novo na rua.
João – Com o teu saber universitário bem me confundes, dás uma no cravo e outra na ferradura. Não sei se o teu poder popular  se aproxima daquele que há 30 e tal anos animou as hostes trabalhadoras. Nesse tempo as minhas esperanças assemelhavam-se às tuas. Era novo e combativo. Mas vê lá na merda que isto deu. Euros e mais euros para nada. Ou melhor, para encher a pança dos já pançudos e das suas clientelas. E eu para aqui lixado a viver na rua. Da minha Joana já nem sei por onde anda. Se calhar pela estrada a fazer pela vida, se é que a idade ainda lho permite. A minha única preocupação é sacar umas coroas para a comidinha. Custa-me muito pedir esmola. O pessoal olha para nós como se fôssemos parte da lixeira. Têm-nos nojo. Nem para nós olham a direito. Somos os nómadas da noite, como alguém me leu num livro .
Otto Griebel - A Internacional (1930
Francisco – Sabes, muitos de nós são diplomados. Mas, para ser sincero, como tu o foste comigo, confesso-te que, apesar do nosso saber académico, também ainda não entendemos como foi possível termos chegado a isto. Nem tudo foi negativo obviamente nestes 30 anos, mas o descalabro financeiro e a corrupção são sintomas de uma sociedade doente. E a crise internacional não justifica, senão parcialmente, este descalabro. Para já  queremos um futuro mais digno. Vamos mostrar na rua a nossa força, embora pouco saibamos do que virá a seguir. Chamas-te João, e aprendi muito contigo, e poderás ser mais um nome entre a multidão em revolta. Esquece por agora os teus cartões de dormir e vem connosco à manifestação. Mesmo que não tenha efeitos práticos, ficará para a memória do futuro.
João – Está bem, ó doutor. Convenceste-me. Vamos ver no que dá. Espero não levar nenhuma bordoada da polícia. Talvez tenhas razão, é preciso dizer basta.  

sexta-feira, 11 de março de 2011

Um Lugar de Eleição em Sintra: o Café Saudade

O sentimento chamado saudade caracteriza-se pela
sua duplicidade contraditória: é uma dor da ausência
e um comprazimento da presença, pela memória.
                                    António José Saraiva

Em Sintra, como noutras vilas e cidades do país, com gloriosas excepções, já  não há cafés que combinem a estética, a comodidade e um atendimento simpático. Ora, o Café Saudade, situado entre o velho edifício da Presidência da Câmara e a estação dos Caminhos de Ferro, é uma dessas honrosas excepções. É de facto um reencontro saudoso com esses antigos espaços que convidavam à formação de tertúlias, às cavaqueiras com os amigos ou à confortável leitura de um jornal ou de um livro, em convivência amena com uma chávena de café ou de chá. Com os seus recantos confortáveis, é um lugar simultaneamente íntimo e público. Bom para devaneios imaginários ou simplesmente para nos recolhermos do bulício das ruas, ou para lermos em sossego os jornais e revistas que diariamente os seus proprietários gentilmente colocam à nossa disposição. Como refere George Steiner, os cafés definem as fronteiras da Europa. E num mundo de solidões multiplicadas, é importante que se mantenha viva esta tradição europeia dos cafés
O espaço começou por ser uma pequena fábrica das célebres queijadas de Sintra (Fábrica de Queijadas Finas Mathilde), que durou entre 1890 e 1975, e  da qual mantém ainda hoje alguns vestígios. Depois transformou-se numa livraria. Mas, possivelmente, porque o público era escasso, acabou por fechar. Aliás hoje não há uma livraria em Sintra ou nos seus arredores. Sinais dos tempos.
Entre 2000 e 2007, o espaço foi ocupado por uma agência de viagens. Finalmente, em 2009, por iniciativa dos seus actuais proprietários, Mary e Luís, foi criado este belo lugar, chamado Café Saudade, numa recuperação feliz, pois combina equilibradamente uma estrutura adequada às suas novas funções e elementos arquitectónicos e decorativos a evocar a história do lugar. Daí a sua configuração um pouco labiríntica, com recantos “barrocos” a convidar à intimidade, articulados com espaços mais amplos, onde a luz penetra em ondas de suavidade, abertos a uma sociabilidade confortável.
Na sala principal, que ocupa a zona da frente do edifício, notamos a conservação do tecto com elementos decorativos Arte Nova, e no chão belos mosaicos de pedra de Cabriz, com vários matizes cromáticos.
Numa sala interior, podemos observar as antigas cubas de pedra e alguidares de barro, onde se colocavam os queijos para o fabrico das queijadas. É aí que se realizam exposições de pintura, artesanato ou fotografia, numa comunhão feliz entre a actividade da cafetaria e a exposição de objectos artísticos. Para além disso, realizaram-se algumas sessões nocturnas com músicos de jazz, actividade entretanto provisoriamente suspensa devido a problemas de gestão.
Se a saudade é uma palavra nuclear do modo de ser português, o Café Saudade é bem um símbolo desse virtual encontro entre o passado e o presente, de uma nostalgia que coabita com a alegria de viver. Ainda bem que, entre nós, há empresários,  como a Mary e o Luís, com a capacidade de criar um lugar e não um mero espaço inóspito de consumismo. Que o seu exemplo tenha seguidores para bem da histórica e bela vila de Sintra!

terça-feira, 8 de março de 2011

Dia da Mulher - Evocando Luísa Neto Jorge

Luísa Neto Jorge
Os dias de qualquer coisa fazem parte das ritualísticas convenções do nosso tempo, como se ritmassem as pulsões da nossa memória em trânsito permanente. O dia 8 de Março é o Dia da Mulher. Na origem as manifestações das oprimidas operárias têxteis em Nova Iorque (1857). Hoje mediaticamente mais pretexto para o consumo do que para evocar o simbolismo da luta daquelas mulheres.
Cronologias institucionais à parte, a efeméride serve-me para dar a palavra à poeta Luísa Neto Jorge, uma companheira longínqua do meu curto exílio parisiense na década de 60. Rosto a diluir-se nos fumos do tempo, resta-me a tua voz poética para te reconfigurar aqui e agora.

Pintura de Magritte
objecto propagado ao mar

A mulher de areia
conduziu no vento
os grãos do corpo

rios a fazem e trazem

garfos a possuem
escorrem nos dentes
seus olhos de lâmpada

Mulher íntima
máquina mão detida
objecto propagado ao mar







Detalhe de mural de Klimt
metamorfose

Quando a mulher
se transformou cabra
marés anuíram
ao ciclo recente
das águas
ah
as bombas
desceram em paraquedas
antes dos homens

Esta é a revolta
a metamorfose
onde
equinócios mecânicos
abortam os filhos

Cabra só cabra
espeta
nas pernas dos pagens
os cornos alucinantes
como para ergueres dos mortos
a necessidade da vida
antes

A mulher se transformou cabra
ritual de emigração
em resposta à raiz constante
das árvores
ao grande silêncio empastado
nas letras de imprensa

Foi quando a mulher
se fez cabra
no compasso de fúria
contra a batuta
dos chefes de orquestra
que escorrem gritos
das notas de música

Fez-se cabra
desatenta de origens
cabra com fardo de cio
no peso das tetas
Cabra bem cabra
adoçando a fome
na flor dos cardos

(Quando a cabra
voltar mulher
- ressurreição)

Poemas de Terra Imóvel (1964)

sexta-feira, 4 de março de 2011

A Crise das Democracias e as Rebeliões no Mundo Islâmico

Pintura de Célia Pena
Fui militantemente contra a guerra no Iraque, com todos aqueles que desde logo perceberam os embustes toscos do Sr. Bush. Primeiro, para justificar a invasão, as armas de destruição massiva em território iraquiano (uma invenção da “diplomacia” americana). Depois, demonstrada no terreno a inexistência de tal armamento, para justificar as centenas de milhares de mortos e de dólares com tal cruzada, despontou a necessidade estratégica de destruir a feroz ditadura de Hussein e dos seus presumíveis comparsas da Al-Qaeda.
A ditadura caiu, mas o terrorismo islâmico não esmoreceu com tal empresa, pelo contrário, parece ter-se revitalizado. Quanto à democracia iraquiana é por enquanto apenas uma farsa trágica. O Sr. Bush, certamente iluminado pela tradição do western, de Bom da fita passou irremediavelmente a Vilão, atraiçoado pelo guião do argumentista. O Iraque foi, para a administração americana, um bode expiatório relativamente aos atentados terroristas do 11 de Setembro, um exorcismo mediaticamente espectacular.
A democracia é historicamente, nas suas várias versões, uma conquista da luta dos povos, não se impõe com invasões. Aliás, o logro imbecil de certos iluminados ocidentais está na convicção de que é possível exportar o modelo sociopolítico euro-americano, sem ter sequer em conta a diversidade cultural e histórica dos povos. Houve até entre nós uma narrativa patética, exemplar desse “humanismo” autista, da autoria de um afamado director de um jornal diário, segundo a qual as imagens televisivas do derrube das estátuas do ditador iraquiano por umas dezenas de opositores, bem resguardados pelos tanques americanos, comungaram, nesse instante, em lágrimas sinceras com as da memória do nosso 25 de Abril.
Otto Griebel - A Internacional (1930)
Ora as nossas democracias com as suas especificidades nacionais têm uma longa história e muitos sobressaltos na sua caminhada, e uma matriz comum, estruturada pelos novos valores que, desde finais do séc. XVIII, emergiram com  a Revolução Americana e com a Revolução Francesa, e, durante os séculos XIX e XX, com os movimentos laborais de natureza política e sindical, ou, num outro plano, com as movimentações reivindicativas das mulheres.
As recentes rebeliões de massas que, com uma turbulência inesperada, têm eclodido nos países árabes, desde o Magrebe ao Médio Oriente, contra as autocracias dominantes, criam muitas expectativas no mundo ocidental. Para alguns “fazedores de opinião”, essa movimentação popular irá convictamente em direcção a uma formatação democrática à maneira ocidental, nos planos económico-social  e político. Para outros, os habituais defensores de uma ordem mundial baseada na aliança entre o ocidente e poderes estáveis no mundo árabe, mesmo sendo ditaduras com décadas de existência, pragmáticos para quem os valores do petróleo estão muito acima dos valores das ideologias, estas alterações poderão  apenas conduzir ao caos ou à formação de regimes fundamentalistas de pendor “teocrático”, adversários confessos dos valores e interesses geo-estratégicos ocidentais.
Por outro lado, convém lembrar que as diferentes matrizes religiosas  (cristianismo e islamismo) estruturam diversamente o universo das representações colectivas, com implicações óbvias nas vivências quotidianas e nas relações sociopolíticas tanto no ocidente como no mundo islâmico. À secularização da vida política, na esfera ocidental, cuja  génese está no campo teórico do Século das Luzes (séc. XVIII), opõe-se, no mundo islâmico, embora com algumas excepções, uma simbiose entre a prática política e os rituais religiosos. Diríamos, por outro lado, que enquanto no ocidente os valores individuais, pelo menos no plano teórico, são dominantes relativamente aos da comunidade, pelo contrário,  nos países árabes o sentido da comunidade sobrepõe-se aos direitos individuais. Mas num mundo globalizado não se tenderá para uma homogeneização dos regimes políticos, apesar das diversidades socioculturais dos povos e das nações? Se tal vier a acontecer, tanto o fundamentalismo islâmico como o cristão seriam fragilizados, em função de uma ainda utópica democracia universal, fundada no desejável diálogo entre civilizações.
Mas, neste interregno de desejos, o que poderá acontecer nos países islâmicos? Países demograficamente jovens, em oposição ao crescente envelhecimento da população ocidental, tal facto constituirá certamente uma vantagem para o futuro dessas comunidades. Mas para acentuar as contradições, sabemos que entre as causas da explosão social, nas nações árabes do Magrebe, para lá da revolta contra ditaduras de décadas, está o desemprego massivo de jovens que se vêem compelidos a uma migração clandestina para países mediterrânicos como a Espanha ou a Itália, em busca do Eldorado.
Neste desconcerto do mundo, estarão as nossas democracias de boa saúde? Serão um modelo a adoptar pelas sociedades “subdesenvolvidas”?
No que diz respeito à experiência nacional de vida democrática, sobressai um óbvio défice de cidadania: fraca participação dos cidadãos na vida política; desprestígio dos Partidos; uma Justiça morosa e ineficaz; o maior índice de desigualdade económico-social a nível da União Europeia; consumo cultural elitista; ausência de uma estratégia consistente e dialogada de crescimento económico, uma taxa galopante de desemprego, etc. Enfim, uma democracia à deriva que, por isso, se tornou presa fácil dos centros financeiros internacionais, ou seja, de muitos dos especuladores que estiveram na génese da crise económica de 2008-2009. Mas,  numa outra escala, notemos este olhar singular sobre a actual estrutura da democracia americana. 
No Jornal i (25-2-2011), o cronista do New York Times Paul Krugman, a propósito da crise americana, tece as seguintes reflexões sobre o estado da democracia do seu país: «Em teoria, somos um país em que uma pessoa conta um voto; na realidade, somos uma espécie de oligarquia dominada por meia dúzia de pessoas muito ricas. Dada esta realidade, é importante que haja instituições que possam agir como contrapeso do grande poder financeiro. Os sindicatos estão entre as principais destas instituições.»
Ora, também em Portugal, os sindicatos, apesar de algum conservadorismo estratégico, têm sido uma poderosa oposição às crescentes investidas “neo-liberais” (o rosto ideológico do capital financeiro), contra o Estado Social e a legislação laboral, protectora dos direitos dos trabalhadores. Os nossos “neo-liberais”, certamente leitores atentos dos manifestos do movimento americano Tea Party (a mais conservadora oposição à liderança Obama, que em nome da liberdade endeusa o mercado como um sagrado valor patriótico, contra as medidas “socialistas” do presidente americano), sustentam as suas teses no quadro terapêutico da nossa crise financeira. Mas sigamos de novo Paul Krugman: «De facto, ao longo dos últimos 30 anos os Estados Unidos caminham claramente num sentido favorável à oligarquia e contrário à democracia, e uma das principais razões é precisamente o declínio dos sindicatos do sector privado.»
Ora, na história da democracia ocidental, os sindicatos funcionaram quase sempre como um contra-poder. Foram um factor indispensável da plurivocalidade democrática, sem a qual este modelo político se transforma num embuste. E quanto à crise financeira, lembra ainda o articulista: «Afinal foram os ultra-ricos, e não os cidadãos comuns, que estiveram por trás da desregulação financeira, e portanto foram eles que montaram o cenário em que decorreu a crise económica de 2008-2009».
O mundo está a mudar. No islâmico, o futuro é ainda uma incógnita, e além disso os negócios do petróleo podem baralhar as estratégias. De uma coisa estamos certos, os ditadores derrubados pela vontade dos povos não deixarão saudades, a não ser aos políticos ocidentais que, durante décadas, com eles foram coniventes. Quanto às democracias ocidentais, é urgente reformá-las.
Sem cidadãos não há democracia, e o mercado não gera uma ética. Cabe aos estados democráticos regulá-lo de acordo com os interesses globais das comunidades. E, entre nós, estejamos atentos aos arautos da versão portuguesa do «Partido do Chá» (o nosso Tea Party).
Desempregados do nosso país, juntai-vos e lutai, mas não vos deixeis embalar pelas toadas daqueles que querem destruir o Estado Social que, apesar das suas fragilidades, foi o que de mais significativo, a par da liberdade, se construiu no plano democrático, durante os 37 anos sequentes ao 25 de Abril. Por outro lado, o laxismo a nível da legislação laboral, como modo imediato de criar mais empregos, como alguns defendem, não será mais do que uma regressão no que concerne aos direitos elementares dos trabalhadores. A nossa democracia está em crise. É preciso e urgente refundá-la, mas para isso precisamos de cidadãos e não de escravos.