sábado, 20 de fevereiro de 2016

Repovoar os espaços perdidos (a propósito duma fotografia de Ana Maria Pinto)





Ana Maria Pinto, Porto, 2015




Repovoar os espaços perdidos (a propósito duma fotografia de Ana Maria Pinto)


 Repovoar, através do olhar, os espaços perdidos é um acto de afecto e um apelo a uma viagem imaginária através das fissuras do tempo. Na quase obscuridade da sala, emergem, por entre os actuais destroços, antigos sussurros e  gestos dos seus habitantes:  débeis sulcos de pés de crianças em volteios lúdicos; passadas lentas e pesadas de velhos enclausurados nas suas memórias; uma rapariga à janela na expectativa de um aceno do amante clandestino; a irmã mais velha a tricotar com disfarçado enfado; a porta, agora de um azul esmaecido, a abrir-se à chegada de um visitante inesperado; rituais festivos ao ritmo do tempo; amores nascentes e jazentes; juras e traições; nascimentos e mortes.
 Todo um cenário onde perpassa a tensão entre o efémero e o eterno, como é próprio duma poética das ruínas. A luz triangular simula essa fronteira entre o visível e o invisível, entre o real e o virtual. O bolor do tempo (manchas e detritos) corrói a madeira do tecto, o soalho ou as paredes, mas coexiste com as formas perenes, porque a câmara as fixa para sempre.  E o tom róseo-cinza dominante, como convém, remete para o crepuscular, pois a imagem fotográfica tem a capacidade de nos situar na fronteira entre as trevas e a luz. Entre o interior em decomposição e a luz exterior filtrada pelas janelas rectangulares estabelece-se um singular pacto de silêncio sacral. O sublime desta imagem está na arte de o saber ritualizar.






Ana Maria Pinto, Porto, 2015

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Os corpos da minha paisagem (1) - A propósito do pintor Edward Hopper


Edward Hopper (EUA, 1882-1967),  "Eleven A. M.", 1926


 Atraem-me os rostos do silêncio, habitantes urbanos de espaços fechados, na vã procura de um sinal que uma  janela virtualmente pode propiciar, embora esta mulher de Edward Hopper pressinta no seu íntimo que a fronteira é inexpugnável. O seu corpo nu parece aqui acentuar a vulnerabilidade daqueles que se sabem sulcados pela morte do desejo, por isso funciona como uma metáfora da desolação. O rosto está colocado de molde a esconder-se ao nosso olhar e os longos cabelos escuros, a contrastar com o marmóreo da pele, prolongam este indizível sentimento de ausência e clausura. O corpo torna-se então um objecto que faz a transição entre a escuridade dos móveis e a ilusória luz exterior. A postura é de expectativa, mas sem convicção, legível na pose das mãos. Os pés paradoxalmente calçados deixam pressentir uma eventual saída futura, mas em frente o seu olhar depara-se com as paredes dos prédios fronteiros, num significante bloqueamento. Nesta pintura o nu feminino perde qualquer dimensão erótica, pois o corpo coisifica-se nesta espera absurda. Quem poderá esperar? O amante infiel que a esqueceu definitivamente? O inviável anjo libertador? De qualquer modo, tanto a janela como o quadro suspenso na parede são meros simulacros de abertura ao exterior: a solidão é irreversível neste "Eleven A. M.".


Edward Hopper (1882-1967), "Sol numa sala vazia", 1963

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Dramatizar ou desdramatizar: eis a questão




Giorgio de Chirico (1888-1978), "O Enigma dum dia", 1914



Dramatizar ou desdramatizar: eis a questão

O que mais me custa na vitória de Marcelo, não é o facto de ter sido apoiado pelos partidos da direita, nem o seu passado político, nem de ser um rentável produto mediático, mas na sua promessa de desdramatizar a vida político-social ("recriar a desdramatização", disse ele, no seu discurso de vitória). Acho que a vida política sem dramas é uma sensaboria, um mundo cinzento forjado por uma hipotética "cultura do  compromisso", um unanimismo fictício que pretende apagar da cena tensões sociais em função das quais resulta uma tendencial oposição entre diversos modos de olhar e avaliar o mundo.
Claro que esta encenação corresponde ao exercício hábil de Marcelo, visando um táctico apagamento conjuntural das ideologias, para impor majestaticamente a sua ideologia, por onde passa o desejo de reconstituir o bloco central, em linguagem vulgar o "centrão", minado com os anos de governação tanto de Sócrates como de Passos Coelho e com o "perverso", porque anti-natural, pacto à esquerda na sequência das últimas eleições parlamentares. Aliás, a principal consequência destas eleições presidenciais reside, aparentemente, no facto de se ter diluído a acentuada bipolarização entre a esquerda e a direita, com um candidato vitorioso que, embora sendo da direita, se mascarou ora de centro-esquerda ora de centro-direita, ou melhor, se assumiu como o único actor político capaz de gerar um diálogo redentor entre antigos parceiros agora desaguisados. Uma espécie de umbigo do mundo.
Simultaneamente, Marcelo pretende criar as condições para um reconstrução da direita, enfraquecida eleitoralmente pela adopção dum "neo-liberalismo" puro e duro, que se materializou numa extremada política de austeridade e de servilismo relativamente ao poder financeiro internacional, e recentrar o Partido Socialista, equivocamente atraído para uma aproximação aos partidos à sua esquerda. E como as eleições presidenciais fragilizaram sobretudo os partidos de esquerda, com relevo para o Partido Comunista, parece cada vez mais previsível o fim a curto prazo do débil acordo que sustenta este governo. Entre os burocratas "neo-liberais" de Bruxelas e os compromissos com a esquerda, António Costa verá  impotente a corda esticar até partir. E então talvez o filho pródigo regresse ao seu espaço natural, com a bênção de Marcelo, para bem da coesão nacional. Embora os dramas sociais, num mundo de desigualdades cada vez maiores, sejam uma mácula neste idílico cenário "personalista" de apaziguamento e de suposto fim das ideologias.





George Tooker (EUA,1920-2011), "Almoço", 1964 

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Esperar para ver: as artimanhas de Marcelo



  • George Grosz (1893-1959), ST, 1920




Esperar para ver: as artimanhas de Marcelo

Contrariamente à opinião de alguns analistas, segundo a qual Marcelo Rebelo de Sousa seria paradoxalmente o presidente ideal para António Costa, penso que o hábil estratega da direita, ao não atacar o actual governo, sustentado num compromisso parlamentar das esquerdas, por um lado, cria uma ruptura relativamente à explícita estratégia revanchista da direita, um cenário ultrapassado porque corroído pelo tempo político, e, por outro, tenta cativar um número apreciável de votos na área do centro-esquerda.
De facto, Marcelo, com a sua argúcia política, numa postura tacticamente ambígua, nunca assumiu verdadeiramente qualquer apoio à política anti-austeridade deste governo e, portanto, de crítica implícita ao governo de Passos Coelho que, aliás, no fundamental sempre apoiou. Se analisarmos as suas intervenções na campanha eleitoral, notamos que se coloca num aparente intervalo de expectativa relativamente à eficácia das políticas de António Costa. Não diz que concorda com estas, mas que aguarda, com uma cínica esperança, que aquilo que o primeiro-ministro diz sobre o desenvolvimento da economia, sustentado simultaneamente pela aceleração do consumo interno e das exportações, ou sobre o ajustamento entre as despesas com as reformas sociais ou com as reversões de privatizações no sector dos transportes, o núcleo duro da "aliança" com os partidos mais à esquerda, e os compromissos orçamentais com Bruxelas, venha a ser realidade.
 Mas, no seu íntimo, Marcelo tem a absoluta convicção, e aqui assenta a sua estratégia, de que este governo, numa conjuntura de crise internacional, está condenado a ser de curta duração, pois será inviável superar a contradição entre os custos das reformas sociais e políticas, propostas ou já em execução,  e os limites orçamentais impostos pelas regras europeias, com o consequente estilhaçar do frágil acordo parlamentar que suporta o governo. Assim, não faria sentido colocar-se de antemão numa postura expressamente opositiva ao governo de António Costa, como pretenderiam alguns sectores mais radicais e irracionais do seu campo político, mas, numa táctica de ocupação de um território de pseudo-neutralidade face às forças em conflito, esperar, eleito Presidente, pela  derrocada do frágil acordo das esquerdas.
 E, neste cenário de crise, o Presidente Marcelo convocaria então eleições antecipadas, as quais, na sua óptica, dariam, com o sequente desgaste político da esquerda, uma maioria absoluta à direita, ou, na pior das hipóteses, criariam as condições para um governo do bloco central, após o fracasso da deriva esquerdista do Partido Socialista. Tudo isto explica a encenação marcelista nesta corrida eleitoral: o "apagão" ideológico ou partidário e uma quase virgindade política. Simultaneamente candidato, quase invisível, da direita e, numa luminosidade irradiante, de todos os portugueses. E o seu capital simbólico, enquanto catedrático do comentarismo político na televisão, seria, pois, suficiente para obter a vitória apoteótica à primeira volta, tal como as últimas sondagens parecem confirmar. Evitando ser conflitualmente o candidato da direita contra a esquerda, o que o colocaria numa posição de risco eleitoral, Marcelo surge, nesta narrativa, como o árbitro da conflitualidade política e o anjo pacificador da sociedade portuguesa, contrariamente aos seus principais concorrentes, meros joguetes malévolos de facções políticas. Esta novela espera novos capítulos.






Emil Nolde (Alemanha,1867-1956), "Mask still-life III", 1911

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Madrugada, de Maria Almira Medina: as iluminações da voz


Maria Almira Medina, Sala da Folha, Colares, Maio de 2015 (fotografia de Emília Reis)


Maria Almira Medina (1920-2016) foi uma mulher que, ao longo da vida, se realçou por uma intensa intervenção cívica e sociocultural multifacetada (poeta, artista plástica, professora e jornalista sintrense). Na hora da sua morte, aqui deixo este texto sobre a sua poesia, publicado, no Outono de 2012, na Revista Selene - Culturas de Sintra. Para lá das palavras de circunstância, este é meu modo de homenagear esta cidadã exemplar.




Madrugada, de Maria Almira Medina: as iluminações da voz

Nas asas a força
E a possibilidade
Dos pássaros.


Embora a 1ª edição do livro de poesia Madrugada, de Maria Almira Medina, tenha a data de 1956, a maioria dos textos nele incluídos (66) foram produzidos entre 1944 e 1947, sendo apenas 10 posteriores a essa data (1948-1955). Tal facto é pertinente, pois remete-nos para um específico contexto sociocultural de enunciação e de recepção estética com implicações na compreensão da sua obra. Entre 1944 e 1947, são raras as obras de poesia de autoria feminina, sendo de salientar como excepções a publicação por Natércia Freire de Rio Infindável (1947) e as estreias poéticas de Sophia de Mello Breyner Andresen (Poesia de 1944 e Dia do Mar de 1947) e de Natália Correia (Rio de Nuvens de 1947). Ora a poesia de Maria Almira Medina insere-se na temática da condição sociocultural da mulher de origem burguesa, numa sociedade padronizada em função do cliché da mulher como “fada do lar”, com raros direitos de cidadania, num mundo subjugado pela ditadura fascizante de Salazar, onde o policiamento dos actos culturais era uma das componentes nucleares do aparelho repressivo do regime e da reprodução ideológica dos valores que sustentavam e davam continuidade a tal sistema político e económico-social. A artista, nesta hierarquia social, era duplamente silenciada, enquanto criadora e mulher, embora o tema da emancipação feminina tenha conhecido anteriormente com a poesia de Florbela Espanca (1894-1930) um momento de elevada exaltação, ou, mais tarde, com a escrita intimista de Irene Lisboa (1892-1958), fundada numa estética do fragmento, onde as fronteiras entre a poesia e a prosa se atenuam, um segundo momento de afirmação dos anseios e contradições da mulher socialmente enclausurada ou da busca e afirmação da sua identidade, num universo de valores dominantemente “machistas” que silenciavam a voz cultural feminina e a condenavam à solidão. É, pois, neste horizonte sociocultural que podemos ler e interpretar a poesia de Maria Almira Medina.
Por outro lado, entre 1944 e 1947, os anos finais da trágica 2ª Guerra Mundial (1939-1945) e do alentar da esperança no pós-guerra de um mundo novo e democrático por parte das forças progressistas e dos seus artistas, após a derrota do nazi-fascismo, geraram por toda a parte uma vocação estética orientada para a intervenção sociopolítica, ainda que essa “arte social” não fosse monolítica quanto ao modo de a exprimir. Entre nós, esse movimento designou-se como Neo-Realismo, e teve, no domínio da poesia, o seu momento fundador com a Colecção do “Novo Cancioneiro”, editada em Coimbra entre 1941 e 1944. Nela participaram vários escritores (Fernando Namora, Mário Dionísio, João José Cochofel, Joaquim Namorado, Manuel da Fonseca, Carlos de Oliveira, Sidónio Muralha, entre outros) que operaram uma ruptura relativamente ao culto da originalidade intimista do movimento da Presença (1927-1940) e das concepções autotélicas no plano estético das suas figuras mais relevantes: José Régio, João Gaspar Simões e Adolfo Casais Monteiro. Para simplificar, poderíamos dizer que ao “eu individual” da Presença, os neo-realistas opunham o “eu social”, ainda que tenhamos de reconhecer, a esta distância temporal, algumas linhas de continuidade entre uns e outros no plano da linguagem poética, como refere Fernando Guimarães, um arguto estudioso dos movimentos poéticos portugueses no século XX.

Neste aspecto, Madrugada estabelece a ponte entre o intimismo da geração da Presença, ou mesmo da subjectividade labiríntica e dilacerada de um Mário de Sá-Carneiro, e a apetência por um metafórico canto da redenção humanitarista vizinho da poética neo-realista, sobretudo reconhecível a partir dos poemas 51 a 76. Aliás, embora não atribua títulos aos seus poemas e não os insira por ordem cronológica, o modo de sequenciar no livro os textos revela uma intencionalidade de traçar um caminho entre a busca ensimesmada e abissal de uma identidade feminina, no quadro de uma clausura burguesa hiperbolizada, e a revelação de um eu que se complementa pela sua projecção numa voz coral, simultaneamente superadora das contradições intimistas e de uma sociedade iníqua na qual não havia lugar para a fraternidade. O eu participaria então de uma vocação comunitária que passaria a dar um novo sentido à sua existência enquanto mulher e cidadã. Logo no primeiro poema da obra, datado de 1947, projecta-se uma espécie de autobiografia imaginária que tem como interlocutora virtual a mãe e que atravessa diferentes fases da sua vida (a infância, a adolescência, a juventude com a sua rebeldia e o período da maturidade). Há como que um tom confessional depurado, onde sobressai um tempo dominado pela solidão, pela clausura e pela ausência de diálogo com os pais. Ou,então, uma ferida fundadora neste percurso retrospectivo, resultante da incomunicabilidade entre o eu e os outros: os pais, os amantes e o mundo. 
Realçam-se  aqui os interditos e os mitos (a espera do príncipe encantado) a que estava sujeita uma jovem numa sociedade dominada pelos valores masculinos: “Nunca quis ser um homem, / Mas chorava a minha injusta condição de menina bonita que/ pede licença para viver,/ Enquanto o meu irmão entrava na vida sem grades e algemas./ Eu era livre como um pássaro, mãe, e amava a vida!/ Eu queria correr mundo como o ar, ó mãe!” (p. 11) 1. Daí a rebeldia que cresce com a juventude e é um antídoto para a solidão e a activadora da possível e desejável expansão de uma força vitalista que se desenvolve no desejo da aventura ou de mudar o mundo em nome da verdade da vida. Este vitalismo exacerbado não andará longe de alguma poesia de Adolfo Casais Monteiro ou de Manuel da Fonseca. Contra o tédio e a rotina do quotidiano, a viagem surge como a metáfora da libertação do desejo. Aparentemente a síntese entre as razões íntimas e o clamor contra as injustiças sociais parece abrir as portas a uma nova mulher num novo mundo, porém o poema retorna ao desassossego e ao desencontro inicial, sobressaindo o malogro da sua luta ao lado dos pobres de pedir e dos povos humilhados contra o poder das pessoas respeitáveis, ou seja, do mundo burguês.
O tema da clausura da jovem burguesa é, aliás, reiterado ao longo de todos os poemas dominados pela desesperança, tendo na janela da casa, um espaço de fronteira, um símbolo paradigmático. Há como que um muro inexpugnável entre o corpo de desejo e a voz juvenil feminina, pois esta está, ao mesmo tempo, presa à casa e aos seus mitos familiares, em suma, a uma ficção castradora, e fascinada pelo mundo real da rua e dos caminhos do mundo. Daí que a sua voz se extinga na solidão sem destinatário, uma compulsão narcísica entre dois espelhos. Aí a vida torna-se algo de residual perdido no labirinto do tempo interior – um corpo ausente. É um mundo sem pontes entre o eu e os outros, de sonhos ausentes de finalidade e de vozes silenciadas: “Ninguém ouvirá os sinos,/ Ninguém sabe que eu vivi./ Os sinos semeiam estrelas/ Que eu deixei em testamento. / […] Semeiam estrelas os sinos,/ Que ninguém virá colher.” (p. 13). Entre o corpo ausente que recusa a dor de pensar-se e a dissolução do eu ante a aridez do mundo, recortam-se as imagens simbólicas do lago calado (água enclausurada) ou da entediante janela, “o estúpido quadrilátero”, da chuva e da noite, ou, num grau mais hiperbolizado, do imaginário do abismo. A opositividade entre a noite e o dia banaliza-se e só o clima mágico das histórias infantis (o dragão, a bruxa, o príncipe encantado) de pasmar parecem atenuar o cansaço ou a dor de ser. Daí o pairar da pulsão de morte ou do sono, uma sua imagem gémea.
No poema 11, o sujeito enunciador apela ao fim dos símbolos de encantamento (jardins, flores, pássaros),  numa convergência entre o fim do objecto que o enfeitiçou, enquanto terapêutica ilusória, e a morte do eu. Mas esta dor narcisicamente indefinida projecta-se numa quase amnésia da identidade que tem na metáfora do Mar Morto ou das almas dos navios naufragados essa saudade de vir a ser aquilo que nunca pôde ser. Daí o desejo pontual de “ser a serenidade inconsciente dum pôr-do-sol”, embora saiba, numa dinâmica imaginária decadentista, que “o poente é uma nevralgia”. A viagem parece ser um acto permanentemente diferido, pois o sujeito é mais objecto da viagem imaginária do mundo do que sujeito da viagem. Esta descida à noite do ser é, no entanto, a condição para a aprendizagem da luz, pois como afirmaria Adolfo Casais Monteiro: “Ah! só quem vem das trevas e das noites escuras/ pode amar assim o imenso mundo do sol!”.2
A libertação desse vitalismo solar passa então pela catarse da descida aos infernos do tempo infanto-juvenil, onde até a terra-berço, o jardim edénico de Byron e do turismo (Sintra), é rejeitada porque associada à metáfora da prisão (família, parentes, amigos), em nome dos símbolos da viagem adiada porque reprimida: “Só amo os voos de ave ou os mastros dos navios a apontar o/ desconhecido./ Só amo a distância e esse mar onde mora tudo o que me rouba-/ram em menina,/ Esse mar que sepultou meus sonhos de perspectivas verdes, infin-/ dáveis, e minhas possibilidades malogradas” (p. 25).Como se a libertação do eu só fosse possível através da desconstrução da própria mitografia juvenil, ou seja, de um absoluto fantasmagórico que fica sempre aquém das suas expectativas, como esse simbólico argonauta em busca do velo de ouro sepultado para sempre por esse amistoso “mar raivoso”. Há então uma reiteração das imagens do malogro do partir ou da perda do sentido de ser (“Perdi-me no alto-mar/ Malogrou-se o meu partir”, p. 27), sendo progressivamente o eu identificado com a própria vertigem do abismo: “Vim dos abismos do mar/ Numa barca à vela/ Sem vela e sem vento./ Vim de madrugada,/ Entre o sol e o luar./ […] Ai, minha boca/ Era o abismo donde vim.” (p. 28). Ou então uma suspensão eternizada num definitivo “porto inabordável”. É o mundo do cansaço e do corpo ausente, embora a figuração de um tu possa ser o leito do esquecimento.
Já o erotismo perpassa sobretudo nos poemas 23, 24 e 25, onde o outro pode acordar os desejos até então interditos (“Vem, meu amor, vem acordar a eternidade no meu corpo”, p. 36) ou mesmo fundir numa mesma unidade a carne e o espírito, superando o dualismo da tradição platónico-cristã, como se pode observar no quiasmo: “A minha carne é toda alma,/ A minh´alma é toda carne!” (p. 38). O corpo erótico parece assim ser uma superação das metáforas do eu perdido no labirinto interior. Embora sem rota, o corpo espraia-se passivamente como objecto apetecido de um tu. O erotismo parece ser um outro modo de esquecimento das turbulências da viagem a haver. Entre a abstracção das quimeras, opta-se pelo corpo do real. Algo que é realçado no poema 30, onde à verdade da ficção (“terra de veludo e estrelas”; “a lua de vidro”; “os génios”; a espera do «Desejado») se opõe o mundo das “coisas reais”.
A partir do poema 32, e sobretudo do poema 45, as imagens nauseantes do mundo burguês dominam, num universo povoado de donzelinhas enclausuradas nos seus quartos, olhando através das janelas um mundo simultaneamente próximo e distante: são os pássaros engaiolados, leitoras de Max du Veuzit (1876-1952) e da Colecção Azul, leitura bem armadilhada para uso e educação das assexuadas jovens burguesas, preparando-as para a espera do Príncipe Encantado à esquina da rua. Para elas vai o apelo do enunciador no sentido de se libertarem dessas ficções alienantes e virem, de coração aberto, para “o livro matizado da vida”. Neste tédio dos dias cinzentos, as meninas burguesas consomem o quotidiano entre os enfadonhos bordados e o tricot ou o piano e ficam num paradoxal gesto de olhos fechados “a ver a rua a passar”. É pois já o seu mundo social criticamente visualizado a partir do exterior. É também o mundo fechado dos meninos burgueses que apenas podem brincar ,através do olhar, com os miúdos pés-descalços que compensam a miséria com a capacidade lúdica de transfigurar o espaço da rua. São dias tristes, de uma tristeza reiteradamente assinalada pela sua referencialidade sociocultural, como se, através destes seres entediados e a quem se interditou a aventura, a autora se reconhecesse na distância que a separava deste universo e a conduzisse a uma relação simpática com o outro social. É contra este mundo de interdições que também nos fala o poema 32, onde os verbos “fechar”, “tapar” e “proibir” conotam um mundo de repressão que começa na infância, se prolonga nos interditos da sexualidade feminina e acaba no silenciamento da voz dos poetas. Mas o poema, aliás, acaba com o apelativo a um nós no sentido da acção colectiva transformadora do mundo.
Neste quadro de rebeldia, é de sobrelevar também o poema 46, no qual a ruptura com os rituais católicos é complementada pela assunção de uma fraternidade laica, um contraponto do formalismo ritualístico da missa de domingo. O espaço laico sacraliza-se e o tradicional espaço sagrado laiciza-se: “Hoje é domingo./ Não vou à missa. Não é costume./ […] No espaço livre da rua./ Domingo absoluto!” (p. 59).
Sobretudo a partir do poema 51, no âmbito da crítica rebelde ao universo sociocultural burguês e à iniquidade e à opressão da sociedade vigente, convergindo num conjunto de interditos relativamente à pujança vital dos seres, algo comum à temática da poesia de Manuel da Fonseca, surgem os textos que denunciam a violência do belicismo entre povos, defraudados por ideologias e lideranças políticas contrárias aos seus interesses, num desejo de redenção humanitarista, uma oposição reiterada entre a mácula das ideologias guerreiras e anti-humanistas e a necessidade de purificar a terra, onde cabe também, à maneira anteriana, a sombra de um Cristo traído. No poema 53, o apelo à revolta inclui a provável sacrificialidade do enunciador e de todos aqueles que o vierem a acompanhar na sua luta. Mas todo este cenário de mentira e violência é pela poeta articulado com uma educação quotidiana castradora: “Mães perversas inventaram papões atrás das portas/ E os chefes de família inventaram a moral/ E o silêncio às refeições” (p. 67).
Este redentorismo humanista, talvez mais próximo do expressionismo alemão do que do neo-realismo, não deixa, no entanto, de funcionar como aquilo que Joaquim Namorado designava, relativamente às palavras poéticas, como “máquinas de produzir entusiasmo”. Contra o fatalismo da miséria e da clausura, urge criar cânticos novos que hão-de conduzir ao renascimento da Humanidade. Em alguns poemas, simboliza-se mesmo a situação prisional, como é o caso dos poemas 63, 69 e 71, nos quais, face ao inferno da clausura, a imagem libertária do pássaro roubado se abre num cântico de esperança apesar da violência de todas as torturas. É a ressurreição das asas. Nesta “noite tenebrosa” a voz poética é a inscrição branca simultaneamente da denúncia e da rebeldia e para que surja um mundo novo a libertação inclui também o fim dos interditos relativamente aos mitos do hímen intacto: “Hão-de voltar a ser poetas, as mulheres:/ virgens escravizadas hão-de quebrar correntes e soltar cânticos […]/ às virgens serão rotos os seus hímens, à nascença, sem soleni-/ dade e sem mistério, como se abre/ um botão e desabrocha sem mistério” (p. 79).
No último poema, a voz branda e pura a acender fraternidades é o rasto de luz que ilumina o caminho da utopia, num gesto similar ao das aves e dos ventos: “Mas tua voz não pára, não tem foz:/ Veio de longe, Poeta, irmã das aves e dos ventos,/ E esvoaça, branca, na noite pavorosa,/ Cumprindo sua missão de asa/ Ou luz/ Até ao fim das trevas.” (p. 94).


1 - Maria Almira Medina, Madrugada, 2ª edição, Sintra, Edições da Casa das Cenas, 200

2 - "Desfloramento" ("Sempre e sem fim", 1937), Antologia de poemas de Adolfo Casais Monteiro, (selecção de poemas por João Rui de Sousa), Documenta Poética 1, Lisboa, Assírio & Alvim, 1973. 

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Paisagem com figuras: notas breves a propósito das presidenciais

Segundo a narrativa hegemónica publicitada pelo poder mediático (jornais e televisões), Marcelo Rebelo de Sousa seria um virtual "super-poder", porque voa acima das telúricas ideologias, contrariamente aos seus principais concorrentes maculados pelo pecado ideológico. Mas estas asas de anjo, moldadas pela ficção da normativa desertificação ideológica, enquanto atributo maior de um Presidente da República, apenas nos conduzirão a um imperativo olhar único sobre o mundo. A suprema das ideologias (ou das ironias) consiste, pois, na encenação retórica  de um vazio ideológico. E nisso Marcelo é, justiça lhe seja feita, um actor de gabarito. 

Nas carnavalescas arruadas presidenciais, como um anjo benigno que descesse à terra, ei-lo farsante maior a conviver com o povo e a partilhar  os rituais humildes do quotidiano. Os céus televisivos obviamente deram e continuam a dar uma ajuda providencial a este talentoso histrião, de tal modo que o hábil comentador, ao longo de décadas, de tricas políticas, emerge, aos olhos do vulgo, como o demiurgo da democracia. E, ali, nas ruas, de corpo pleno palpável, oferto aos lábios e aos braços da multidão, e de sorriso incontido, adquire mesmo uma dimensão messiânica - a apoteose de uma farsa trágica. 



George Tooker (1922-2011), "Paisagem com Figuras", 1965-66


Esta pintura do americano George Tooker (1920-2011), conotado ora com o realismo social, ora com o realismo mágico, é uma metáfora da sociedade totalitária. A imposição/interiorização de uma perspectiva única sobre o mundo conduz a indivíduos enclausurados e diluídos numa homogeneidade massificada. Estão aparentemente juntos,  mas sem comunicação entre eles. A solidão absoluta apaga qualquer hipótese de elo solidário. A distopia está no lugar da utopia: a morte definitiva do desejo. O pesadelo geometrizado no lugar do sonho. A coisificação dos seres é o império da morte sobre a vida. As cabeças de corpos ocultados estão, por isso, condenadas por um poder inominável a olhar e a pensar numa única direcção. É um bom motivo para reflectir sobre a actual situação portuguesa e a do mundo.

quinta-feira, 3 de julho de 2014

As aventuras e desventuras dum cibernauta

Andre de Dienes (1913-1985) - Marilyn Monroe

Há umas duas semanas, antes de um jogo de Portugal para o Mundial, publiquei no Facebook uma fotografia de Andre de Dienes - fotógrafo americano de origem húngara (1913-1985) que se celebrizou pelas suas fotos de Marilyn Monroe, entre outras estrelas cinematográficas, e pelos nus artísticos - com uma jovem nua na praia em ginasticada posição acrobática como quem dá um pontapé no ar. Com pretensão humorística, acrescentei o seguinte comentário: “Com este ponta de lança a nossa equipa seria outra coisa”. Cerca de 10 dias depois recebi uma intimação do Facebook para retirar essa foto, caso contrário o meu acesso seria bloqueado, pois uma alma generosa e protectora dos bons costumes tinha denunciado a natureza obscena de tal imagem.



Andre de Dienes (1913-1985) - Nu (1940)


Convém referir que, numa 1ª fase, o “gestor” e “guardião da pureza” informou-me da queixa e da intenção de analisar previamente a diabólica imagem e assim agir em conformidade. Numa primeira reacção de indignação, publicitei no meu portal a arbitrária ameaça e, para provar a minha “inocência”, republiquei a foto e o respectivo comentário. Para meu espanto (santa ingenuidade!), alguns segundos depois o meu acesso fora bloqueado. Deste modo, fui compelido a retirar imediatamente a imagem “satânica”. Houve mesmo quem me sugerisse que a denúncia dever-se-ia provavelmente mais ao comentário, considerado corrosivo pelo patrioteiro denunciante, mordido pela miserável prestação da equipa nacional do que pelo simbolismo da imagem. Para o caso tanto faz!
Sei que este tipo de interdições, embora aleatoriamente, constitui uma prática dos gestores do Facebook, mas naquele momento senti-me na pele dos acusados da Santa Inquisição, pois era castigado sem a possibilidade de defender a minha posição ou conhecer a identidade do denunciante. Como era comum naqueles malfadados tempos, bastava alguém embirrar com o nariz do parceiro do lado para o denunciar por práticas heréticas. Também durante a nossa ditadura a “bufaria” fazia parte do quotidiano dos cidadãos. Denunciar alguém era para muitos um prazer “mórbido” ou um acto do qual esperavam uma compensação do poder totalitário vigente.



Felice Casorati (1883-1963) - Midday (1923)


Agora temos de novo em cima de nós um Olho Vigilante, sempre que pisamos o risco. O problema está no facto de não sabermos exactamente onde passa esse “risco”, embora, convenhamos, os códigos do Facebook coloquem as razões do falso pudor acima dos valores estéticos. Estamos de novo no reino do absurdo.

Lição: limita-te a publicitar flores, gatinhos e outros animais de estimação, desde que obviamente não sejam predadores, paisagens tipo carta-postal, fotos de ti em jeitos diversos mas com pudor, inocentes aforismos e outros produtos do universo “kitsch”. Desse modo, poderás ter a ilusão de que intervéns neste mundo globalizado, gerido pelos nossos estimáveis “Big Brothers”, sem sobressaltos. Quanto à distinção entre Arte e Pornografia, isso é apenas conversa fiada de pseudo-intelectuais. Aqui deixo, segundo espero, o objecto do meu crime. Espero no entanto a absolvição depois da minha morte! Lastimo perder o meu tempo e o daqueles que tiverem paciência de ler este arrazoado, mas tinha de desabafar. É o que nos resta!


Andre de Dienes - Nu (o objecto do crime)







terça-feira, 27 de maio de 2014

Peripécias dum Velho Eleitor Camponês

Ivan Kramskoi (1837-1887) - Cabeça de um velho camponês (1872)


Acomodado no meu velho sofá, com rasgões que dão para afundar as minhas  memórias, olho para o ecrã da televisão doada por um vizinho benevolente, cuja cegueira recente (cataratas, segundo disse) já não lhe permitia sequer entrar nesse mundo de reais ilusões, imaginadas e fabricadas a preceito, ou seja, com a eficácia necessária para manter a atracção do olhar nesse mundo distante que magicamente se tornara uma espécie de nossa segunda casa. O problema eram as constantes faltas de luz na aldeia, e candeia acesa não ilumina ecrãs.
Algumas imagens e vozes fugazes deram-me então a perceber que proximamente deveria ir votar para as eleições europeias, embora eu da Europa só conhecesse o que as televisões episodicamente me mostravam e eu era capaz de entender, ou aquilo que um companheiro rural, ex-emigrante em França, me contara desses mundos fabulosos, donde segundo percebera tinha vindo dinheiro a rodos para encher a pança dos portugueses, ou, na versão avermelhada, por isso suspeita, de outro velho resistente da aldeia, de alguns portugueses, os privilegiados do costume. Na minha aldeia, último refúgio de reformado viúvo com poucas posses, viviam já apenas 6 habitantes tão enferrujados como eu. O que sabia dos partidos limitava-se à algaraviada televisiva, isto é, um modo de dizer, pois,  homem do Norte, pouco sei dessas expressões sulistas, talvez memórias escolares me suscitem tal expressão. Sabia que havia o Passos e o Portas, o Seguro e os comunas e pouco mais.
Embora com as pernas entorpecidas, tomei nota do dia do voto e decidi cumprir o meu dever cívico, como o meu filho me ensinou a dizer. O problema estava em quem votar, ou ainda pior como poderia chegar ao local de voto,  a uns bons 10 quilómetros de distância. Fiz das tripas coração e aventurei-me à caminhada árdua com a ajuda da sempre amistosa bengala. E pensei que talvez durante o sinuoso (palavra lida no Borda d'Água)  percurso me surgisse a iluminação de uma escolha sensata. Por experiência recente, apenas sabia que o partido do Passos no poleiro me reduzira a parca reforma de feitor, com 70 anos de labuta no campo. Por isso, contrariando o conselho do padre, que mensalmente visitava a aldeia (actualmente nem isso, porque o rebanho era demasiado reduzido para tão longa viagem), decidi secretamente, não fosse o diabo tecê-las, mudar o sentido do meu costumeiro voto laranja.
Mas que teria tudo isto a ver com a Europa? Dizem os do poleiro que nos endividámos com tantos velhos e velhas (sobretudo velhas que teimosamente duram eternidades), calões e estropiados a esmolas do Estado e estradas a perder de vista. e que a santa Europa usurária, palavra douta ouvida a um adepto da oposição, logo se prestou a emprestar o carcanhol. Pouco mais sabia. Mas desta vez, contas feitas, a reforma mal dava para a boroa, ora bolas para os laranjas que assim  me pagavam décadas de fidelidade, pensei com os meus botões coçados. Não pedi conselhos ao meu filho, a viver em Lisboa, pois sabia das suas tendências demasiado comunistóides para meu gosto, efeitos certamente de más companhias, e, além do mais, o meu rendimento não dava para fazer telefonemas a despropósito.
No dia aprazado, cheguei exausto, palavra desnecessária tendo em conta a lonjura e a idade, à vila onde estava recenseado. Pediram-me o bilhete de identidade e deram-me um papel com as siglas dos partidos. Aí começaram as minhas aflições, pois tantos eram os emblemas em presença. Eu bem procurei o rosa, incitado à última hora  por um conterrâneo partidário do Seguro. Mas nada. Seria dos meus olhos turbados? Pensei então em fechar os olhos e atirar a cruz, Deus me perdoe, ao acaso para o bafejado quadrado. Ou então, como em miúdo,  entoar uma cantilena para esvoaçar o voto ao sabor da sorte. Com tanta hesitação, o tempo foi-se prolongando demasiado no "escondidinho" do voto, e não me livrei, pensei eu, da suspeição de sabotagem aos olhos dos senhores da mesa. Nos tempos que correm, nunca se sabe! Atirei às cegas, embora com o risco de acertar no tal Passos que me encolhia o tempo da sobrevivência ou nalgum partido vermelho. Pior a emenda que o soneto! Mas, quando abri os olhos, verifiquei com terror que a cruz estava fora dos quadrados, fora dos quadrados de todos os quadrantes. Com suores frios ou quentes, já nem me lembro, coloquei então velozmente uma cruz em todos os quadrados, não fosse o meu atraso ter terríveis consequências europeias. Dobrei o papel conforme a Lei e coloquei-o na respectiva urna, palavra de mau gosto para tal cerimónia, diga-se em abono da verdade. Lá regressei a casa, mancando cada vez mais, mas feliz porque tinha cumprido o meu dever cívico. A Europa iria certamente agradecer-me pelo acto, só espero ainda estar vivo para receber a justa recompensa.


Ivan Kramskoi (1837-1887) - Retrato de um velho camponês com muleta (1872)




domingo, 6 de abril de 2014

Para não falar de política!

Carel Willink  (1900-83) - Paisagem com Estátua Caída (1942)

De que é feita uma vida? Hoje com setenta anos ainda não sei responder. Cada caso é um caso, diríamos carregados de bom-senso, embora todos estejamos condenados ao mesmo desenlace. Por vezes penso que uma aparente fugaz imagem pode ser o cerne da questão. Uma imagem que de certo nada vale ante as peripécias narradas por uma comunicação social (a famigerada agenda noticiosa) que inexoravelmente ritma os dias do nosso quotidiano: atentados, guerras, especulações bolsistas e outras, naufrágios, bizarrias meteorológicas, pequenas e grandes catástrofes - por vezes tão longínquas, apesar de mediaticamente próximas, que depressa se apagam da memória -, traições e anedotário político, delitos,corrupções e necrologias dos afamados. E, quando os grandes entusiasmos das paixões ideológicas ou outras passaram no tempo curto da nossa história, fica então esta sensação de vazio que nada pode preencher. A voracidade do tempo é desmesurada e na caminhada vão ficando as máscaras destroçadas que nos couberam em sorte ou desnorte.


Giorgio de Chirico (1888-1978) - O Enigma da Hora (1911)


Depois, quando despojado de tanta ficção, o nosso corpo enrugado continua apenas aberto aos sinais da natureza,  enquanto os sentidos não vão obviamente embotando completamente: rumores, aromas, paisagens, gestos paralisados no tempo. Então descobrimos que a felicidade é uma ficção que os deuses inventaram para nos iludir, seja na terra ou no céu. A vida é um litoral branco, onde podemos imaginar palavras ou imagens que possam dar algum sentido à caminhada. Mas, para lá disso, o que fica é um corpo com as suas necessidades básicas a que por vezes chamamos desejos, desnudado já das pequenas e grandes verdades que motivaram a rota de tantas vidas. As convicções persistem, mas descolaram-se do corpo, como um hábito ou uma rotina já sem a capacidade sequer de sulcar a pele dos nossos dias.


Giorgio de Chirico (1888-1978) - Melancolia de uma Bela Jornada (1913)


E hoje, 6 de Abril de 2014, dia em que escrevo esta sensaboria desconexa e vagamente pessimista, a Primavera aí está com todo o seu esplendor apolíneo. E este lugar-comum que habita as conversas quotidianas, ao sabor dos códigos sociais, se não me euforiza, pelo menos desperta-me agonicamente os sentidos para o voo das árvores, das flores e das aves, entes que nunca tiveram a necessidade de se interrogar sobre o sentido da vida ou da felicidade. Deixemo-nos então esvoaçar aos ritmos das asas deste cenário que não se deixa enredar nas teias da infinita busca de sentido. Hoje é um bom dia para apenas existirmos, se é que dizê-lo tem paradoxalmente algum sentido.  


Giorgio de Chirico (1888-1978) -  A Jornada Ansiosa (1913)

sábado, 22 de fevereiro de 2014

Corpos e Números


Abraham Harriton (1893-1986) - 6th Avenue Unemployement Agengy (1937


O que é preciso é criar quanto antes novas elites […] Não elites que nos subjuguem – mas elites que nos conduzam para a beleza e para a justiça...”

Raul Brandão, Memórias, v. III (ed. Póstuma,1933)


Rudolf  Dischinger (1904-1988) - Ameaça (1935)


Embora numa linguagem datada, esta aspiração brandoniana tem hoje toda a sua pertinência tanto no plano nacional como no europeu. A falência de ideais coloca-nos sob o jugo absoluto do poder financeiro e dos seus servis executores políticos, habilitados com uma retórica contabilística e de endeusamento dos mercados. Mas, paradoxalmente, estes nem sequer fizeram ou fazem do país ao menos uma mercearia bem organizada. A cultura é tratada como luxo parasitário, o supérfluo que apenas alguns pretensos intelectuais se atrevem a defender. O circo mediático cumpre a sua nobre função de aniquilamento do que resta do espírito crítico dos portugueses. Mas há outros luxos a combater, tal o caso do democrático direito à Saúde e à Educação. Tudo em nome da nobre missão dos actuais governantes de salvar o país da bancarrota. Eles têm a bandeira na lapela, um sinal para ocultar a imperativa acção de resguardar os interesses usurários dos nossos credores, nobre cruzada nesta mascarada trágico-cómica de venda de Portugal a retalho. E, numa Europa, feita nau à deriva, de ajustamento em ajustamento, lá vamos disciplinadamente ao fundo.


José Viana Dionísio (1922-2003) - Ordem (1946)

Não são apenas os jovens qualificados a emigrar, mas também gente desesperada com mais de 50 anos. Basta andar na rua para perceber o estado calamitoso a que chegámos: lojas e fábricas fechadas, conversas fortuitas sobre profundas carências, gente desempregada ou explorada até ao tutano que vai desistindo de viver. Corpos dilacerados que os burocratas de serviço não querem ou não sabem contabilizar. Quanto ao redentório “milagre económico” proclamado pelo arguto Pires de Lima, vem o FMI com o seu relatório imperial a proclamar mais austeridade até ao dia do Juízo Final.


Joe Jones (1909-19363) - Descarregadores (1934)

Entretanto, o fascismo, nas suas diversas variantes, vem paulatinamente ocupando em vários países europeus o lugar vazio destas fictícias democracias. O cenário condiz com as palavras, pois, como afirma o douto dirigente do PSD Luís Montenegro, “a vida das pessoas não está melhor, mas o país está muito melhor”. O odor fascizante deste comentário não deixa dúvidas. O país já não são as pessoas, mas uma mirífica abstracção ideologizada típica dum poder totalitário. O país é certamente, nesta óptica, um deserto apenas ocupado por números manipulados ao sabor da estratégia desta “elite” simultaneamente apatetada e desumana que nos coube em sorte, ou melhor, em desgraça. Os corpos destroçados deste país terão ainda capacidade para mandar estes bonifrates para o definitivo deserto de onde por lapso dos deuses nunca deveriam ter saído? Cabe a este povo sem rumo reencontrar-se e dar a conveniente resposta.


Dorothea Lange (1895-1965) - White Angel Breadline (A Sopa dos Pobres), S. Francisco, 1933



Dominguez Alvarez (1906-1942) - Enterro Pobre (1929)


Renato Guttuso (1911-1987) - A Morte de um Herói (1953)


segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

O Regresso às Crónicas e aos Mitos

Gustave Courbet (1819-1877) - Auto-Retrato, O Desesperado (c. 1843-45)

Depois de uma longa ausência, por motivos alheios à minha vontade, retomo com mais rugas da idade e do desalento as despretenciosas crónicas sobre o espectáculo deste mundo. Não me apetece falar de recalibragens nem do despudor retórico destes abutres, os daqui e os da estranja, que nos “governam”, nem da sonolência que parece afectar este e outros povos igualmente desditosos. Talvez porque está tudo dito e redito ou talvez porque me faltem as palavras para me reencontrar com a fúria lúcida necessária nestes dias de cinza. Basta de trovadores da desgraça, embora este mundo esteja amputado de graça, basta de lamentações e outros ecos da perdição. Os bonifrates do poder, numa surdez calculada, repetem os gestos habilmente orientados pelo grande manipulador, actor coberto pela neblina do anonimato. A engrenagem funciona e aparentemente nada a pode deter. Os cenários montados por servis agentes, nos meios de comunicação social, completam a eficácia do sistema, ou seja, a retórica imaginária do poder absoluto. Os mercados, esse sujeito sem contornos e sem alma, um vazio imperativo, ditam o nosso destino. Estamos armadilhados na teia destes símbolos habilmente forjados para nos submeter. Não é sequer uma conspiração dos grandes financeiros para dominar o mundo, pois eles já o dominam. A novidade está nesta estratégia de imposição de uma única visão do mundo como algo natural ou decorrente da genética humana, assente na credibilização da iniquidade através das máscaras da equidade do dito mercado. Chamar ao lobo cordeiro e ao cordeiro lobo. Ou convencer-nos que em cada vítima há um coração de carrasco, em cada carrasco um coração de vítima. A coisificação das relações humanas produz cegueira. É um mundo sem avesso e por isso naturalmente sem horizontes alternativos. Estamos condenados a ser os nossos próprios carcereiros. E aqui está como um cronista bem intencionado, contra sua vontade, se foi transformando num trovador da desgraça.



Paula Rego - O Jardim do Interrogador (2000)


Então eis que, neste patriótico interregno de silêncio e quase apatia, a morte dum homem de seu nome Eusébio – originário de um bairro pobre de negros da então colonial Lourenço Marques e que se tornaria um fabuloso artista da bola, reconhecido mundialmente e por isso manipulável, no quadro da cruzada salazarista, em torno do mítico multirracial ecumenismo lusíada, na década de 60 – vem, em plena crise, reconfigurar a nossa cenografia mitológica. Como afirmou solene Luís Filipe Vieira, “Eusébio já tinha ganho em vida a condição de mito” e a sua morte, digo eu, eleva-o à condição de super-mito, ou seja, numa identificação hiperbolizada “Eusébio é Portugal”, como nota José Mourinho. É então urgente reescrever a Mensagem de Fernando Pessoa, pois, segundo os escribas de serviço, este grande artista da bola teria sido a primeira figura do português global. E o discurso mitológico amplia-se: imortal símbolo de Portugal; Rei-Ídolo ou King, para dar um tom mais universal e eternizado.



Henri Rousseau (1844-1910) - Os jogadores de futebol (1908)


Realmente, para além de Ronaldo, próximo Comendador por iniciativa presidencial, onde encontrar hoje alguém que pudesse preencher o actual vazio de heróis lusos? O Barroso, presidente da Comissão Europeia, palavroso executor dos senhores do nosso destino? O Cavaco destes tempos tormentosos, actor menor para os desafios desta farsa trágica? O Coelho, salvador da pátria, que retoricamente identifica a sua missão de destruir o que resta deste país com o próprio Portugal? O Seguro, o mais inseguro líder do exército “socialista”?
Certamente Eusébio, conforme cruzada em curso, merece a máxima consagração nacional: o seu corpo deverá vir a ocupar um lugar ao lado de outros imortais do Panteão Nacional, aliás bem heterogéneos e tensos, para não dizer pior, nessa coexistência forçada (escritores liberais e democratas como Almeida Garrett, Guerra Junqueiro, João de Deus ou Aquilino Ribeiro; políticos da 1ª República como Teófilo Braga e Manuel de Arriaga; Sidónio Pais, um precursor da ditadura; Óscar Carmona,um eminente representante do Estado Novo; Humberto Delgado, um digno opositor da ditadura e finalmente a popular fadista Amália Rodrigues).



Dorothea Lange (1895-1965) - Neto de fazendeiro (1939)


Claro que os excessos retóricos ditirâmbicos, repetidos à exaustão nas televisões e na Imprensa, correm o risco de se desgastar prematuramente. Aliás, eles sabem lá o que é um mito ou um símbolo, e assim banalizam o que, na sua óptica, não devia ser banalizado. Sem disso ter consciência, estes discursos consumidos e a consumirem-nos à saciedade tornam-se aceleradamente lugares vazios, a não ser que uma estranha nostalgia bolorenta dos tempos imperiais do chamado Estado Novo os reanimem. De qualquer modo o quase unanimismo perturba-me e assusta-me. Mas sejamos claros, Eusébio merece ser um símbolo do nosso futebol, nas suas virtudes e nos seus defeitos, o problema está em transportarem o símbolo para o domínio da nação. Calem-se as Musas que outro feito se alteia, sussurrará estranhamente Camões nos Campos Elísios. Mas de facto que importância tem altear a bota e desvalorizar a pena neste mundo de computadores? Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades!

Porém convém, no meio da algazarra, sobretudo não esquecer o menino negro que pôde realizar o sonho de se tornar numa estrela futebolística. É esse jeito de sonhar que deve ficar como imagem de Eusébio. Os mitos são as ficções dos que vão ficando, por enquanto. Nada mais.





 





sexta-feira, 7 de junho de 2013

Os Governantes e a Mitologia Lusitana


Vieira da Silva - História Trágico-Marítima ou Naufrágio (1944)


Em 2 de Fevereiro de 2012, li num jornal que o nosso insigne ministro das Finanças de nome Gaspar, numa entrevista ao Financial Times, numa retórica e patriótica comparação, declarava que os abissais desafios com que actualmente nos confrontávamos eram insignificantes para um povo que historicamente tinha já superado obstáculos bem mais gigantescos: “quando os nossos navegantes se fizeram ao mar […] não tinham controlo absoluto sobre como seria o seu desempenho perante as tempestades”. Mas, inspirado no poema épico de Camões e assumindo a tradição dos Bartolomeus, Eanes e Gamas, acrescentaria: ”Temos tradição de ser bons marinheiros e de nos prepararmos para todas as tempestades”. Na noite anterior à entrevista pedira aliás a um dos seus devotados adjuntos que lhe lesse um resumo d’Os Lusíadas, pois o tempo era escasso para tão árdua leitura. Precisava de se inspirar nas Musas da Pátria, as Tágides da sua memória escolar, bastante desgastada com a sua longa ausência da terra natal, devido aos apelos dos Bezerros de Oiro que na estranja há muito reconheciam os talentos deste sábio do numerário.


Otto Griebel  (1895-1972) - Um Desempregado dos Anos 20

Mas, para infelicidade nossa e do Gaspar, este teve de mudar o rumo das histórias, já que tudo o que previra para superar os Adamastores da nossa crise financeira havia naufragado, com tantas trombas de água e enjoos a bordo face a tal turbulência. Em Maio de 2013, o nosso Primeiro, o astuto Coelho, face ao naufrágio anunciado do seu guru financeiro, entretanto regressado de uma ilha deserta para onde o cataclismo o lançara com outros destroços, resolveu aconselhá-lo delicadamente a mudar a rota das metáforas. Talvez o Fado, essa genuína toada da alma nacional, sugeriu o notável Gaspar. Dolorosamente pensativo o nosso Primeiro teve então um clarão súbito, melhor do que o Fado, demasiado abstracto para os ouvidos da populaça, talvez a recente história trágica do Benfica, essa glória asada dos anos 60 e com cem milhões de adeptos pelo mundo, nos pusesse a navegar à bolina do imaginário nacional. Mas eu sempre fui do Sporting, ripostou apreensivo o notável Gaspar. Não te preocupes, com uns telefonemas arranjo-te um cartão de sócio até com a data do teu nascimento. E assim foi. Em 30 de Maio de 2013, durante um almoço de empreendedores, organizado pela Câmara de Comércio e Indústria Luso-Espanhola, o insigne Gaspar foi convidado a proferir uma douta conferência sobre o estado da Nação. E quando a ilustre assistência se preparava para ouvir uma sábia lição sobre o presente e o futuro desta depauperada nação (empresas falidas, um milhão e meio de desempregados, as trombetas do Apocalipse a troar no céu lusitano), eis que da voz simultaneamente sibilina e humorada do conferencista saíram estas palavras inesperadas: “Queria pedir a vossa simpatia pelas semanas que tenho vivido como adepto do Benfica. Esta questão de perder sucessivamente 2 – 1, em alguns casos depois do tempo regulamentar, é de facto uma provação que merece toda a simpatia”. E assim se deu a volta ao texto, melhor ele deu uma prova da sua identificação com o genuíno trajecto da gesta nacional: derrotados mas eufóricos por mais estas vitórias morais.


Frederic Watts - Esperança (1886)

E para aqueles que pensam que o tempo dos três efes (Fado, Fátima e Futebol) passou à História, desenganem-se, pois para esta tragicomédia acabar em apoteose, o nosso Presidente Cavaco agradeceu a Nossa Senhora de Fátima pela aprovação da 7ª Avaliação daTroika. Será que o nosso D. Sebastião estará prestes a regressar do nevoeiro?


Salvador Dali - Construção Mole com Feijões Cozidos (1935-36)


PS – E para os mais distraídos que pensam que esta história se passou no Reino da Barataria, é meu dever de cronista informá-los de que todos estes factos são verdadeiros e se passaram nesta infortunada nação chamada Portugal que, segundo o Poeta, é o rosto da Europa que “Fita, com olhar esfíngico e fatal,/ O Ocidente, futuro do passado”.


Gustave Courbet - Tromba de Água (1869-70)

Albrecht Dürer - Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse (1497-98)


James Ensor - Os Sábios Juízes (1891)


James Ensor - A Raia (1892)


Hendrik Mesdag - Regresso dos Barcos de Pesca (1895)



Bonaventura Peeters  (1614-1652) - Tempête dans le Grand Nord (2º quartel séc. XVII)



Pieter Bruegel - O País da Abundância (1567)


terça-feira, 30 de abril de 2013

A Crise da Democracia e os Nostálgicos da Ditadura


Jacob Burk (1904-1982), The Lord Provides, litografia,1934


 Nasci em 1943 (11/12) e vivi até aos 30 anos sob o domínio da ditadura “fascista” de Salazar e do seu sucessor, na fase crepuscular do regime, Marcelo Caetano (1968-1974). Em 1958, com a farsa eleitoral que opôs o General Humberto Delgado ao totalitarismo da direita reinante, tive o primeiro sobressalto na minha consciência política. Para lá do reconhecimento abstracto do terrorismo oficial, um familiar fora preso e enviado para Caxias, pelo único pecado de ter colaborado na candidatura do General.


George Grosz - Sem título (1920)



Os dias cinzentos, na magnífica expressão de Mário Dionísio, toldavam-nos o olhar e enclausuravam-nos o corpo, por isso a luta contra o absurdo da mais longa ditadura europeia - que sobreviveu, contra muitas expectativas, à derrota nazi-fascista na 2ª Guerra Mundial e pôde até integrar-se com a cumplicidade das potências ocidentais democráticas na NATO, em 1949, em função da nova conjuntura (a chamada Guerra Fria) – foi um processo complexo, no quadro de uma repressão política e sociocultural com projecções em todos os actos quotidianos. Só, na década de 60, com a eclosão da guerra colonial, na qual a minha geração foi forçada a dar o corpo ao manifesto, o regime começou a ser isolado internacionalmente. O fantasma de Salazar, que morreu em 27 de Julho de 1970, acompanhou-nos pelo menos até ao 25 de Abril de 1974.


George Grosz - Os Pilares da Sociedade (1926) 

Mas o exorcismo desencadeado pela Revolução de 25 de Abril, com toda a euforia colectiva, sobretudo nos meios urbanos, não impediria, para espanto dos que sofreram no corpo e na alma os malefícios desses anos de chumbo, que a sombra do ditador abandonasse definitivamente a cena do nosso imaginário colectivo e pudesse ressurgir mais ou menos santificado, em momentos de crise do nosso sistema democrático, tal como acontece com a actual conjuntura.


Júlio Pomar - Gadanheiro (1945)

A festa revolucionária foi intensa mas de curta duração, a democracia paralisou-se no gesto pragmático de “meter o socialismo no bolso”, depois veio o Eldorado da CEE, fundos e fundos a sumirem-se nas areias de Portugal, mas pagos com a destruição do nosso já débil aparelho produtivo, ou nesse delirante mar de betão onde nos afundámos. O poder político e a Banca empenharam-se e empenharam-nos, durante esse período glorioso, na ilusória felicidade do “consumismo”.



Hanson Duane - Senhora do Supermercado (1969)


Basta ver que entre os mais ricos de Portugal contam-se os proprietários das novas catedrais de consumo. Mas com a crise financeira internacional, espoletada pelos bem embrulhados “produtos tóxicos”, o reinado das ilusões desabou subitamente. Somos hoje o país da EU com mais desigualdade social e mais de um milhão de desempregados. Durante a ditadura, de 1960 a 1974, um milhão e meio de portugueses, rurais e analfabetos na sua maioria, partiram “a salto” para França. Hoje é o benemérito governo que aconselha os portugueses a emigrarem. A casa está em ruínas!


Frank Holl - Partida de Emigrantes (1877)


Numa recente sondagem, mais de metade dos inquiridos admite mesmo que a economia  (56,7%) e a justiça (49,1%) funcionavam melhor antes do 25 de Abril. Claro que nunca ouviram falar dos Tribunais Plenários, onde os opositores ao regime eram expostos às arbitrariedades do poder, em julgamentos que eram verdadeiras farsas-trágicas, para não falar da prorrogabilidade das medidas de segurança por períodos indefinidos que permitiam ao poder manter na prisão os “subversivos” muito para além do tempo das penas atribuídas em tribunal. Não ouviram falar ou trata-se de um caso de amnésia colectiva.


Álvaro Cunhal - Projecto 4

Quanto à economia, Salazar ficou famoso por ter sido capaz de restaurar o nosso equilíbrio financeiro, mas à custa de um povo brutalmente empobrecido e controlado policialmente nas suas reivindicações. A imagem dos “pobretes mas alegretes” tinha muita força. Apenas um exemplo: em 1974, éramos a sociedade ocidental com o índice mais elevado de mortalidade infantil (em 1960, em cada 1000 habitantes, 77,5; em 1975, 38,9). Hoje, temos uma das mais baixas taxas no mundo desse flagelo social. Nem tudo correu mal nas 3 últimas décadas no que concerne à estruturação do Estado Social - aliás, um conceito de formulação duvidosa, pois se o Estado hipoteticamente não estivesse ao serviço do bem-estar dos cidadãos, para que serviria? Para reprimir os recalcitrantes, cobrar impostos e garantir os lucros fáceis do poder económico-financeiro?


José Dias Coelho - Morte de Catarina Eufémia (c. 1954)

João Abel Manta - Preso Político Ladeado por um Pide e um Guarda


Mocidade Portuguesa (1936-1974)

Mas, actualmente, com o “neo-liberalismo” imposto por este governo e seus mandantes internacionais, em nome da austeridade, está-se a destruir o nosso chamado Estado Social. A democracia portuguesa vai-se desintegrando, pois deixou de corresponder às necessidades vitais da sobrevivência da nação como estado independente. O povo oscila entre a resignação e a revolta, o fatalismo e a procura de alternativas que começam a superar as fronteiras dos partidos que até aqui têm monopolizado a vida política. Há um divórcio cada vez maior entre os cidadãos e os partidos, tal como noutros países do sul da Europa. Entre nós, estão então criadas as condições para o regresso em força dos velhos fantasmas, sobretudo a nível da população mais despolitizada ou amputada de memória colectiva.

George Grosz - Desempregado (1934)


Claro que o actual tecnocrata ministro Gaspar não parece ser tão bom em números como o fora Salazar, aliás, um precursor da austeridade como medida salvífica dos povos. Mas no tempo da outra Senhora não havia Estado Social, apenas um arremedo, nem sindicatos livres, nem oposição legal. Gaspar é, de resto, um cosmopolita agente do capitalismo financeiro internacional, disfarçado de ministro das Finanças de um governo à deriva e na situação de bancarrota.


Salazar (décadas de 30-40)

Salazar era, em contrapartida, um austero “provinciano” que, no entanto, bem serviu os donos tradicionais de Portugal: “O meu isolamento tem essa vantagem: permite-me estar ao lado de todos os portugueses, permite-me não viver, aqui ou além, para viver simplesmente em Portugal!” (Entrevistas de António Ferro a Salazar, 1932-38). Estar ao lado de todos os portugueses, isto é, numa versão maligna, estar sorrateiramente de múltiplos olhos vigilantes como Argos, não fosse a “besta democrática” fazer das suas. A isso chamou-se primeiro PVDE e depois PIDE (a polícia política e um exército de informadores, sempre à escuta das eventuais palavras da subversão). Depois o olhar aterrorizador da Censura lá estava para completar esta devassa à alma dos portugueses. Silenciados, a maioria dos portugueses vivia a sua videirinha. Não te metas em trabalhos de galé, isto é, falar de política, era conselho de pais para filhos. Por isso os portugueses, na sua maioria, são ainda hoje peritos no monólogo e inábeis no diálogo. Os gestos mentais são lentos na mudança, demoram gerações. Depois há a memória mais antiga dos tempos inquisitoriais. É muito peso para um povo dito semiperiférico. Nunca ninguém se lembrou de fazer uma antropologia do modo de andar dos portugueses. Um campo semiótico a explorar. Cada corpo transporta consigo espessas camadas seculares de monólogos, queixumes e sussurros como uma expiação. Ao menos habituem-se a gritar, se não os salva pelo menos alivia. É um peso a menos no andar.

Rogério Ribeiro

Hoje estão, no entanto, criadas as condições, com a progressiva decomposição desta democracia, numa União Europeia sem rumo ou subjugada pelos interesses hegemónicos do especulativo capitalismo financeiro, para uma beatificação do camponês-doutor de Santa Comba Dão, que “morreu com as solas rotas”, e viveu gloriosamente para o bem-estar da grei, como já li em algumas mensagens das redes sociais. Com a novidade de ser referido o seu longo reinado como a negação do nepotismo e da corrupção. Nesse Portugal mítico omite-se obviamente que durante a ditadura se hiperbolizou a “cunha”, essa sagrada instituição nacional. Claro que o espectáculo grotesco, que a nossa actual classe política vem desenvolvendo, cria as condições ideais para uma ressurgência de uma mitologia messiânica encarnada num reinventado Salazar. Quem serão os candidatos à reencarnação?


Mocidade Portuguesa (1936-74)

É de facto urgente fazer um balanço destes 39 anos de democracia, tanto nos seus aspectos positivos como nos negativos (sobretudo a tortuosa conivência entre o Estado e os poderosos grupos económicos ou a corrupção de alto coturno tipo BPN), e reinventar a democracia, que não é uma fórmula fixa, mas o resultado de uma permanente luta colectiva e de uma capacidade inerente de ser questionada, de nos questionarmos, para lá dos formatados partidos políticos, em geral pouco inclinados à reflexão. Obviamente a solução não está em regredir para modelos conservadores, mas investir na busca de mundos alternativos que devolvam a dignidade aos cidadãos. Como é possível que na Grécia, em Itália, em Espanha e Portugal haja dezenas de milhões de desempregados? A situação é explosiva e implosiva. Do caos passemos então a um novo paradigma democrático. É tempo de acabar com os fantasmas! Quem diria que, quatro décadas após o 25 de Abril, ainda perco tempo a terçar armas com os nostálgicos do ditador.


João Abel Manta - As Idades de Salazar 1

João Abel Manta - As Idades de Salazar 2

João Abel Manta - As Idades de Salazar 3



João Abel Manta - As Idades de Salazar 4



João Abel Manta - As Idades de Salazar 5