quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024



Exercícios de memória: convívio e cultura em Algés nos anos 60 e 70.

 



        O anti-espectáculo "Nós não estamos algures", no  1.º Acto - Clube de Teatro de Algés. 
Na foto, ensaio com Ernesto de Sousa (encenador de palavras, imagens e gestos) e eu (humilde aprendiz de actor), 1969.



Nunca se pode regressar aos lugares da juventude onde fomos quase felizes, apesar dos dias cinzentos impostos, naquela época, pela ditadura salazarista. No início dos anos 60, com cerca de 17 anos, fui morar para Linda-a-Velha, mas o meu tempo era passado em Algés, onde descobri uma comunidade com intensas afinidades culturais e políticas. Aí coabitavam indivíduos entre os 16 e os 40 anos, com horizontes diversificados no plano da oposição anti-fascista, num convívio e diálogo singulares que tinham como lugar de eleição os cafés ou os espaços de intervenção cultural como a Secção Cultural do Sport Algés e Dafundo, criada, entre outros, por Armando Caldas e Viriato Portugal, apesar de alguma suspeição da direcção relativamente aos ideais subversivos dos seus activistas; a Livraria Espaço do Armando Rodrigues e, mais tarde, o 1º Acto - Clube de Teatro, em 1969. Neste curto exercício de memória, começarei por recordar os cafés de Algés, espaços singulares de convivialidade e aprendizagem, companheirismo e fraternidade.

Segundo George Steiner, «A Europa é feita de cafetarias, de cafés. Estes vão da cafetaria preferida de Pessoa, em Lisboa, aos cafés de Odessa [...]. Vão dos cafés de Copenhaga, onde Kierkegaard passava nos seus passeios concentrados, aos balcões de Palermo. Não há cafés antigos [...] em Moscovo, que é já um subúrbio da Ásia. [...] Nenhuns na América do Norte, para lá do posto avançado galicano de Nova Orleães. Desenhe-se o mapa das cafetarias e obter-se-á um dos marcadores essenciais da 'ideia de Europa'. O café é um local de entrevistas e conspirações, de debates intelectuais e mexericos, para o flâneur e o poeta ou metafísico debruçado sobre o bloco de apontamentos»[1].

Desde a adolescência fui um frequentador assíduo dos cafés de Algés. De manhã, mal saía de casa, o café era o meu espaço privilegiado. Muitas vezes uma "bica" dava para uma manhã inteira. O dinheiro não abundava. Lia, reflectia e conversava com os amigos que iam chegando a esse lar aberto a todos os interessados. Foi por ali que aprendi muito do que sou hoje, mais talvez do que na escola ou na universidade. Naquele tempo, esse espaço mágico atravessava e congregava diferentes gerações e até pessoas com diferente estatuto económico-social. Era frequente os jovens partilharem a mesma mesa com gente na casa dos 40. Os meus cafés desse tempo eram sobretudo o Ribamar e o Tamar. Algés não era, como hoje, apenas um dormitório de Lisboa, mas, para nós, uma “aldeia”, um lugar de sociabilidade e afectos, com vida sociocultural própria, às portas da capital. Houve também um outro café, o velho Pavilhão Cristal, com traços de “Arte Nova”, se a memória não me atraiçoa, com a sua estrutura em ferro e vidro e uma singela escada em caracol que conduzia ao 1º andar. Seria destruído, em inícios da década de 60, para dar lugar a um monstro de betão (o Catavento) que ainda funcionou como café e depois como supermercado.

Por esses cafés paravam algumas figuras ilustres da nossa cultura. Lembro, por exemplo, no Ribamar, Manuel Ferreira, Mário Castrim e Augusto Abelaira que ora liam, ora escreviam fragmentos das suas obras. Também Vasco Graça Moura, então estudante de Direito, se embrenhava nos calhamaços do seu curso – não sei se terá escrito aí alguns poemas dessa época. Havia ainda os conspiradores sempre desconfiados dos ouvidos atentos da mesa ao lado, possíveis pides ou meros informadores. No fundo éramos quase todos conspiradores, uns menos outros mais, naquele tempo ditatorial que ia corroendo os nossos desejos e sonhos juvenis. Mas os nossos projectos eram muitas vezes mais teóricos do que práticos. A queda do regime era, para muitos, mais uma ansiosa espera do que motivadora de actividade prática. Nem para todos obviamente, pois, nos cafés também se passavam de mão em mão panfletos ou livros clandestinos. E alguns conheceriam mesmo as agruras da prisão. Fumava-se muito nos cafés, pois apesar das muitas proibições do regime, contrariamente à actualidade, podia-se fumar em espaços fechados (a saúde pública não era ainda uma prioridade). Havia apenas um inconveniente para aqueles que se arriscavam a trocar os fósforos pelos isqueiros, ao poderem ser surpreendidos pelos fiscais que controlavam as licenças para seu uso. Caso não as tivessem eram multados. Um modo bizarro, dizia-se, de Salazar proteger a indústria fosforeira nacional.

Também se namorava. Às vezes tudo começava com um ligeiro encosto de joelho com joelho sob a mesa, uma involuntária voluntariedade. Claro que os gestos amorosos tinham os seus limites. A moral sexual era muito rígida e serôdia, sobretudo no que dizia respeito à sua exibição pública.

Os proprietários de alguns cafés é que não apreciavam muito estes consumidores de "bica" por uma manhã ou uma tarde. E começaram a afixar uma tabuleta onde se dizia expressamente: "É proibido estudar". Isto num país com tantos analfabetos! Mas negócio é negócio, e eles lá tinham de sobreviver.

Discutia-se filosofia, arte e política. Discutia-se muito. Embora por vezes os diálogos fossem substituídos por monólogos a três ou quatro vozes. Nem todos sabiam o mesmo. Havia gente de leituras várias, outros nem tanto. Mas acabávamos todos por aprender alguma coisa.

O café era um lugar de espera, de meditação e de boatos. Aliás, não se poderá escrever uma história da nossa cultura moderna ou uma sociologia da cultura sem uma geografia dos cafés das principais cidades e vilas do país. As tertúlias nos cafés iam surgindo ao sabor dos tempos culturais e políticos, algumas com vida efémera, outras com vida mais longa. Românticos, simbolistas, modernistas, neo-realistas ou surrealistas sacralizaram, cada grupo à sua maneira, esses espaços de comunhão e polémicas.

O café, na década de 60, era, pois, um espaço de convívio lúdico e de confronto de ideias. Mas de tristeza e tédio também, quando a espera interminável do tempo novo nos exasperava. E nada se passava. A "ociosidade" expectante alternava com a vontade de agir para mudar a vida e o mundo.

Em Algés, durante o dia, escolhíamos sobretudo o Ribamar, pois as suas paredes envidraçadas deixavam passar a luz com abundância, mesmo em dias soturnos, e permitiam-nos prolongar o olhar sobre o rio, numa cumplicidade entre o mundo interior e a paisagem. Mas à noite era o Tamar o nosso preferido. Ou melhor, o seu longo corredor, uma extensão que separava os consumidores da "bica" nocturna e o salão de chá destinado aos "burgueses" mais acomodados. Nesse corredor, mesas de um lado e do outro, misturavam-se estudantes, aprendizes de poetas e funcionários de serviços, todos identificados com a oposição ao regime. Era um mundo simultaneamente aberto e fechado. Um espaço rectangular mais ou menos controlado e reservado a dialogantes contestatários. Recordo que, nas catastróficas inundações de 67, esperámos, à luz da vela, sentados nas mesas, já que a água subira cerca de meio metro, até a catástrofe amainar, o que aconteceria já de madrugada.

Depois as longas noites, sobretudo no Verão, dispersavam-nos por tascas e cervejarias (o “Relento” fechava às 4 da manhã), ou em deambulações boémias  sem nexo pela marginal de Algés. E aqui recordo o mítico Caletas, muito mais velho do que nós, um condutor das nossas aventuras nocturnas. Naquele tempo éramos felizes? Talvez não. Por isso havia os que partiam, quando se conseguia passaporte, algo problemático a partir do início da guerra colonial, sobretudo para Paris, a cidade-quimera da nossa geração, onde a liberdade possibilitaria a actualização dos nossos desejos. Hoje a maioria dos cafés foi desaparecendo ou foram-se transformando em híbridos e bizarros snacks. Entretanto muita coisa mudou. Os livros sobre as mesas dos cafés vão sendo substituídos por computadores e telemóveis. Outras formas de ver, de ler e de ser. Os modos de convívio alteraram-se, os escritores fecham-se em casa e os poucos leitores (aliás, em Portugal nunca foram muitos) também.

Na, acima referida, Secção Cultural do Algés e Dafundo, no início da década de 60, levámos à cena a tragicomédia de Raul Brandão, O Doido e a Morte, com encenação de Viriato Portugal, onde sobressaiu o desempenho de Carlos Vieira, posteriormente emigrante na Dinamarca, no papel do Sr. Milhões. Mal sabia eu naquela altura, ao desempenhar o papel de mero figurante na peça, a importância que o Raul Brandão viria a ter na minha futura vida de investigador da literatura portuguesa. E, entre outras realizações, lembro, em 1962, um ano antes da sua morte, a notável palestra de Aquilino Ribeiro, que então morava na Cruz-Quebrada, convite que não foi do inteiro agrado da direcção do clube. A vigilância sobre a actividade cultural era muita.

 Depois duma estadia de cerca de um ano em Paris, do serviço militar e duma passagem breve por Setúbal, onde me estreei como actor amador, na peça A Raposa e as Uvas, do dramaturgo brasileiro Guilherme de Figueiredo, tendo contracenado com Odete Santos, que viria, após a revolução de Abril, a ser uma carismática e dinâmica deputada comunista, e Teresa Pacheco Pereira, com quem casara entretanto, regressei definitivamente a Algés, em 1967.

Foi no ano seguinte que surgiu a ideia de criar, nesta localidade, uma associação cultural (o 1ª Acto Clube de Teatro), por iniciativa de Armando Caldas, Eduardo Pedroso, Jorge Ferreira da Silva e Viriato Portugal, entre outros, cuja data oficial de fundação seria a de 9 de Janeiro de 1969. Aproveitando a cave dum prédio em construção, com poucos meios financeiros, este núcleo fundador teve a capacidade, numa conjuntura política hostil, apesar da chamada Primavera marcelista, de concretizar esse sonho. Com renda mensal de 6 contos e cerca de 800 sócios, a aventura de criar um espaço cultural alternativo iniciava-se, apesar dos condicionalismos económicos e censórios. Com algum apoio "mecenático", embora insuficiente, e a intervenção de um grupo de arquitectos, onde sobressaía Nuno Teotónio Pereira, o espaço foi transformado num anfiteatro em betão com 150 lugares sentados.

Este teatro viria a ser, entre a fundação e o 25 de Abril de 1974, um local de liberdade possível, de coabitação de práticas estéticas heterogéneas, dos espectáculos mais “convencionais” aos experimentalismos vanguardistas; de confronto de ideias artísticas (mesas-redondas, debates e colóquios); de sessões com cantores de intervenção (Carlos, um cantor sul-americano, Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Samuel); de música coral (Academia dos Amadores de Música, de Fernando Lopes-Graça, e A Juventude Musical Portuguesa, com direcção de Francisco d´Orey); de recitais de poesia por Ary dos Santos ou Mário Viegas; ou de divulgação cinematográfica, com relevo para os filmes de natureza etnológica, e, sobretudo, de convivialidade cultural, o que pressupunha o diálogo entre os operadores estéticos e o público. Convém evocar também a actividade, embora intermitente, dirigida para o público infantil (cursos de iniciação musical, de artes plásticas e exibição de teatro para crianças).

 Antígona, de Jean Anouilh, encenado por Armando Caldas, seria, em 1969, o primeiro espectáculo de teatro, com recepção elogiosa da crítica, dos actores Fernando Gusmão ou Costa Ferreira ou dos escritores Alves Redol (um dos primeiros sócios do clube), José Cardoso Pires, Manuel Ferreira ou Bernardo Santareno, apoiantes convictos deste projecto cultural. Antígona, interpretada pela notável Madalena Pestana, com apenas 19 anos, simbolizava o grito de recusa e da revolta juvenil contra todas as formas de prepotência. De notar, a colaboração musical de Jorge Peixinho que musica um poema de Mário Castrim, canção final do espectáculo: “Levanta-te e vai. Expulsa a crueldade/Faz a cidade. Faz a Felicidade”.

Com A Cantora Careca, de Ionesco, com encenação de Carlos Nery, penetrámos no teatro do absurdo, investindo na desconstrução do diálogo quotidiano pequeno-burguês, reflexo do vazio em que estes seres estão mergulhados. Posteriormente, Carlos Nery desenvolveu um interessante trabalho cénico a partir da peça Woyzeck, de Georg Büchner, com a colaboração da coreógrafa Inês Palma, porém no ensaio final para a vistoria da  Censura, o espectáculo viria a ser proibido. Naquela época, para lá da censura prévia aos textos dramatúrgicos, havia ainda a submissão da encenação ao olhar inquisidor do poder totalitário.

No campo das experiências vanguardistas, destacamos o exercício sobre comunicação poética, dirigido por José Ernesto de Sousa, denominado “Nós não estamos algures”, frase retirada dum poema do livro Invenção do Dia Claro, de Almada Negreiros, aliás activamente presente numa das exibições – recordo como fez girar eufórico a sua boina no dedo da mão –, um experimental acto de plural circulação poética. Tratava-se da performance dum trabalho coral, utilizando diversos meios de expressão (cartazes, projecção de diapositivos e filmes, improvisação musical de Jorge Peixinho), apelando à participação activa do público, com a estrutura dum happening [2], de molde a quebrar-se a fronteira entre os operadores estéticos e os espectadores. Enfim, uma festa colectiva das palavras (poemas de Almada, Herberto Helder, Luísa Neto Jorge e Mário Cesariny) ritmadas pelas várias formas de expressão estética: “convidamos-te a viver totalmente, a fazer da tua vida um espectáculo total”, lê-se num dos cartazes. De notar que a comunicação audiovisual esteve a cargo de Carlos Gentil-Homem e a as soluções plásticas e luminosas foram da responsabilidade do artista Fernando Calhau. Além dos elementos do colectivo acima mencionados, gostaria de lembrar alguns companheiros dessa época de combate cultural e político:  Carlos Morais, Madeira Luís, António Borga, João Luís Gomes, Madalena Pestana, Maria Virgínia, José e Manuel Torres, Geada, Valdez, Teresa Pacheco Pereira, Guilherme Lemos, Bicha, Filomena Fernandes, Rui Martins, Tucha e Henrique Videira e Melo. 

Na mesma linha de orientação vanguardista, destacamos também, os happenings de Manuel Granjeio Crespo, autor de tradição surrealista, que, segundo Eduardo Pedroso, teria dirigido “uma companhia de teatro underground, em Nova Iorque”. Apresentou uma leitura encenada do seu livro No princípio será a carne, onde no fim, como numa catarse colectiva, se queimavam dezenas de exemplares desta  obra. Posteriormente, apresentou um projecto os Jogos Dramáticos onde, na última sessão, ainda segundo testemunho de Eduardo Pedroso, uma personagem que representava a Igreja, “abençoava uma aliança entre o General e o Capitalista”. Uma cena final “provocatória” que levou a direcção da altura a interditar posteriores intervenções de Granjeio Crespo, pois podiam levar ao fecho do 1º Acto. Estas acções, de tendencial autoria colectiva, procuravam simultaneamente desmistificar os códigos do teatro convencional e das engrenagens opressivas da sociedade capitalista. Nesta órbita de experimentalismo comunicacional, convém também recordar o Celeiro do Império, dirigido por Jorge Listopad, uma criação colectiva, que foi, aliás, o último espectáculo, realizado no 1º Acto (Janeiro de 1974); a performance ritualística do poeta Melo e Castro, “Silêncio”, ou “Kelahiran” (renascer), do artista plástico Victor Belém, a partir da sua exposição de objectos na Galeria Buchholz, com coreografia e direcção de ensaios da bailarina Inês Palma, que também dirigiu cursos de expressão corporal durante cerca de dois anos no 1º Acto.

No campo da música, a guitarra de Carlos Paredes ou as baladas de protesto coexistiram com a música vanguardista de Jorge Peixinho ou José Alberto Gil, ou, no campo do jazz, com as improvisações vanguardistas de Jorge Lima Barreto (o jazz conceptual).

Para concluir este rudimentar relato da actividade do 1º Acto, diria que foi sempre um espaço aberto a várias formas de expressão estética, rumando contra a cultura estadonovista e o seu aparelho censório, embora a nossa vontade de alargar a actividade às camadas populares de Algés tenha ficado aquém das expectativas. De notar, aliás, que todos os eventos culturais eram seguidos de debates finais que, por vezes, apesar da presença dos informadores da Pide (os "bufos" de serviço), se arrastavam até altas horas da madrugada, o que muito incomodava a Direcção Geral dos Espectáculos, de tal modo que o Director, em 1973, me solicitou, enquanto presidente do 1º Acto nessa altura, uma entrevista, prometendo, em tom intimidante e chantageante, apoios financeiros a todos os espectáculos teatrais, desde que abandonássemos os debates finais. Obviamente não nos vergámos a tal chantagem punitiva.

Agradeço a todo o colectivo do 1º Acto, a oportunidade de intervir num projecto cívico, enquanto espectador interveniente, actor e dirigente, que, apesar de algumas contradições e saudáveis polémicas internas, contribuiu definitivamente para a transformação da minha vida. Bem hajam!





 Almada Negreiros, Auto-retrato em grupo, 1925


[1] A Ideia de Europa, Lisboa, Gradiva, 2006, p.26 (trad. de Maria de Fátima St. Aubyn).

[2] Estávamos numa época em que a cultura libertária do Maio de 68 parisiense ou a prática anarquista do Living Theatre, de Julian Beck e Judith Malina, que promoviam a criação colectiva, a improvisação, o jogo com o aleatório ou a participação criativa do público, influenciaram a prática teatral, em Portugal, de grupos vanguardistas, para quem o teatro era um acto político, tentando derrubar a fronteira entre os actores e o público, a arte e a vida.

terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Na hora dos balanços finais

Na hora dos balanços finais, como qualquer merceeiro bem organizado, procuro ser criterioso com os eventos que me envolveram ao longo da viagem, embora pressinta a ambivalência implícita no acto de me avaliar, como se fosse simultaneamente eu e um outro que me escapa furtivamente nos estratos da memória. Dizer-me é, pois, de certa forma, dizer o outro/os outros que me foram habitando no percurso da vida. A memória é um labirinto onde busco em vão o fio de Ariadne, onde o princípio é nebuloso e o fim é algo que, apenas como antecipação fictícia, posso registar. Ou melhor, os outros registarão, caso haja interessados. E, entre o princípio e o fim, os factos baralham-se, perdem sequência cronológica e aparente significação selectiva.

sábado, 20 de fevereiro de 2016

Repovoar os espaços perdidos (a propósito duma fotografia de Ana Maria Pinto)





Ana Maria Pinto, Porto, 2015




Repovoar os espaços perdidos (a propósito duma fotografia de Ana Maria Pinto)


 Repovoar, através do olhar, os espaços perdidos é um acto de afecto e um apelo a uma viagem imaginária através das fissuras do tempo. Na quase obscuridade da sala, emergem, por entre os actuais destroços, antigos sussurros e  gestos dos seus habitantes:  débeis sulcos de pés de crianças em volteios lúdicos; passadas lentas e pesadas de velhos enclausurados nas suas memórias; uma rapariga à janela na expectativa de um aceno do amante clandestino; a irmã mais velha a tricotar com disfarçado enfado; a porta, agora de um azul esmaecido, a abrir-se à chegada de um visitante inesperado; rituais festivos ao ritmo do tempo; amores nascentes e jazentes; juras e traições; nascimentos e mortes.
 Todo um cenário onde perpassa a tensão entre o efémero e o eterno, como é próprio duma poética das ruínas. A luz triangular simula essa fronteira entre o visível e o invisível, entre o real e o virtual. O bolor do tempo (manchas e detritos) corrói a madeira do tecto, o soalho ou as paredes, mas coexiste com as formas perenes, porque a câmara as fixa para sempre.  E o tom róseo-cinza dominante, como convém, remete para o crepuscular, pois a imagem fotográfica tem a capacidade de nos situar na fronteira entre as trevas e a luz. Entre o interior em decomposição e a luz exterior filtrada pelas janelas rectangulares estabelece-se um singular pacto de silêncio sacral. O sublime desta imagem está na arte de o saber ritualizar.






Ana Maria Pinto, Porto, 2015

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Os corpos da minha paisagem (1) - A propósito do pintor Edward Hopper


Edward Hopper (EUA, 1882-1967),  "Eleven A. M.", 1926


 Atraem-me os rostos do silêncio, habitantes urbanos de espaços fechados, na vã procura de um sinal que uma  janela virtualmente pode propiciar, embora esta mulher de Edward Hopper pressinta no seu íntimo que a fronteira é inexpugnável. O seu corpo nu parece aqui acentuar a vulnerabilidade daqueles que se sabem sulcados pela morte do desejo, por isso funciona como uma metáfora da desolação. O rosto está colocado de molde a esconder-se ao nosso olhar e os longos cabelos escuros, a contrastar com o marmóreo da pele, prolongam este indizível sentimento de ausência e clausura. O corpo torna-se então um objecto que faz a transição entre a escuridade dos móveis e a ilusória luz exterior. A postura é de expectativa, mas sem convicção, legível na pose das mãos. Os pés paradoxalmente calçados deixam pressentir uma eventual saída futura, mas em frente o seu olhar depara-se com as paredes dos prédios fronteiros, num significante bloqueamento. Nesta pintura o nu feminino perde qualquer dimensão erótica, pois o corpo coisifica-se nesta espera absurda. Quem poderá esperar? O amante infiel que a esqueceu definitivamente? O inviável anjo libertador? De qualquer modo, tanto a janela como o quadro suspenso na parede são meros simulacros de abertura ao exterior: a solidão é irreversível neste "Eleven A. M.".


Edward Hopper (1882-1967), "Sol numa sala vazia", 1963

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Dramatizar ou desdramatizar: eis a questão




Giorgio de Chirico (1888-1978), "O Enigma dum dia", 1914



Dramatizar ou desdramatizar: eis a questão

O que mais me custa na vitória de Marcelo, não é o facto de ter sido apoiado pelos partidos da direita, nem o seu passado político, nem de ser um rentável produto mediático, mas na sua promessa de desdramatizar a vida político-social ("recriar a desdramatização", disse ele, no seu discurso de vitória). Acho que a vida política sem dramas é uma sensaboria, um mundo cinzento forjado por uma hipotética "cultura do  compromisso", um unanimismo fictício que pretende apagar da cena tensões sociais em função das quais resulta uma tendencial oposição entre diversos modos de olhar e avaliar o mundo.
Claro que esta encenação corresponde ao exercício hábil de Marcelo, visando um táctico apagamento conjuntural das ideologias, para impor majestaticamente a sua ideologia, por onde passa o desejo de reconstituir o bloco central, em linguagem vulgar o "centrão", minado com os anos de governação tanto de Sócrates como de Passos Coelho e com o "perverso", porque anti-natural, pacto à esquerda na sequência das últimas eleições parlamentares. Aliás, a principal consequência destas eleições presidenciais reside, aparentemente, no facto de se ter diluído a acentuada bipolarização entre a esquerda e a direita, com um candidato vitorioso que, embora sendo da direita, se mascarou ora de centro-esquerda ora de centro-direita, ou melhor, se assumiu como o único actor político capaz de gerar um diálogo redentor entre antigos parceiros agora desaguisados. Uma espécie de umbigo do mundo.
Simultaneamente, Marcelo pretende criar as condições para um reconstrução da direita, enfraquecida eleitoralmente pela adopção dum "neo-liberalismo" puro e duro, que se materializou numa extremada política de austeridade e de servilismo relativamente ao poder financeiro internacional, e recentrar o Partido Socialista, equivocamente atraído para uma aproximação aos partidos à sua esquerda. E como as eleições presidenciais fragilizaram sobretudo os partidos de esquerda, com relevo para o Partido Comunista, parece cada vez mais previsível o fim a curto prazo do débil acordo que sustenta este governo. Entre os burocratas "neo-liberais" de Bruxelas e os compromissos com a esquerda, António Costa verá  impotente a corda esticar até partir. E então talvez o filho pródigo regresse ao seu espaço natural, com a bênção de Marcelo, para bem da coesão nacional. Embora os dramas sociais, num mundo de desigualdades cada vez maiores, sejam uma mácula neste idílico cenário "personalista" de apaziguamento e de suposto fim das ideologias.





George Tooker (EUA,1920-2011), "Almoço", 1964 

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Esperar para ver: as artimanhas de Marcelo



  • George Grosz (1893-1959), ST, 1920




Esperar para ver: as artimanhas de Marcelo

Contrariamente à opinião de alguns analistas, segundo a qual Marcelo Rebelo de Sousa seria paradoxalmente o presidente ideal para António Costa, penso que o hábil estratega da direita, ao não atacar o actual governo, sustentado num compromisso parlamentar das esquerdas, por um lado, cria uma ruptura relativamente à explícita estratégia revanchista da direita, um cenário ultrapassado porque corroído pelo tempo político, e, por outro, tenta cativar um número apreciável de votos na área do centro-esquerda.
De facto, Marcelo, com a sua argúcia política, numa postura tacticamente ambígua, nunca assumiu verdadeiramente qualquer apoio à política anti-austeridade deste governo e, portanto, de crítica implícita ao governo de Passos Coelho que, aliás, no fundamental sempre apoiou. Se analisarmos as suas intervenções na campanha eleitoral, notamos que se coloca num aparente intervalo de expectativa relativamente à eficácia das políticas de António Costa. Não diz que concorda com estas, mas que aguarda, com uma cínica esperança, que aquilo que o primeiro-ministro diz sobre o desenvolvimento da economia, sustentado simultaneamente pela aceleração do consumo interno e das exportações, ou sobre o ajustamento entre as despesas com as reformas sociais ou com as reversões de privatizações no sector dos transportes, o núcleo duro da "aliança" com os partidos mais à esquerda, e os compromissos orçamentais com Bruxelas, venha a ser realidade.
 Mas, no seu íntimo, Marcelo tem a absoluta convicção, e aqui assenta a sua estratégia, de que este governo, numa conjuntura de crise internacional, está condenado a ser de curta duração, pois será inviável superar a contradição entre os custos das reformas sociais e políticas, propostas ou já em execução,  e os limites orçamentais impostos pelas regras europeias, com o consequente estilhaçar do frágil acordo parlamentar que suporta o governo. Assim, não faria sentido colocar-se de antemão numa postura expressamente opositiva ao governo de António Costa, como pretenderiam alguns sectores mais radicais e irracionais do seu campo político, mas, numa táctica de ocupação de um território de pseudo-neutralidade face às forças em conflito, esperar, eleito Presidente, pela  derrocada do frágil acordo das esquerdas.
 E, neste cenário de crise, o Presidente Marcelo convocaria então eleições antecipadas, as quais, na sua óptica, dariam, com o sequente desgaste político da esquerda, uma maioria absoluta à direita, ou, na pior das hipóteses, criariam as condições para um governo do bloco central, após o fracasso da deriva esquerdista do Partido Socialista. Tudo isto explica a encenação marcelista nesta corrida eleitoral: o "apagão" ideológico ou partidário e uma quase virgindade política. Simultaneamente candidato, quase invisível, da direita e, numa luminosidade irradiante, de todos os portugueses. E o seu capital simbólico, enquanto catedrático do comentarismo político na televisão, seria, pois, suficiente para obter a vitória apoteótica à primeira volta, tal como as últimas sondagens parecem confirmar. Evitando ser conflitualmente o candidato da direita contra a esquerda, o que o colocaria numa posição de risco eleitoral, Marcelo surge, nesta narrativa, como o árbitro da conflitualidade política e o anjo pacificador da sociedade portuguesa, contrariamente aos seus principais concorrentes, meros joguetes malévolos de facções políticas. Esta novela espera novos capítulos.






Emil Nolde (Alemanha,1867-1956), "Mask still-life III", 1911

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Madrugada, de Maria Almira Medina: as iluminações da voz


Maria Almira Medina, Sala da Folha, Colares, Maio de 2015 (fotografia de Emília Reis)


Maria Almira Medina (1920-2016) foi uma mulher que, ao longo da vida, se realçou por uma intensa intervenção cívica e sociocultural multifacetada (poeta, artista plástica, professora e jornalista sintrense). Na hora da sua morte, aqui deixo este texto sobre a sua poesia, publicado, no Outono de 2012, na Revista Selene - Culturas de Sintra. Para lá das palavras de circunstância, este é meu modo de homenagear esta cidadã exemplar.




Madrugada, de Maria Almira Medina: as iluminações da voz

Nas asas a força
E a possibilidade
Dos pássaros.


Embora a 1ª edição do livro de poesia Madrugada, de Maria Almira Medina, tenha a data de 1956, a maioria dos textos nele incluídos (66) foram produzidos entre 1944 e 1947, sendo apenas 10 posteriores a essa data (1948-1955). Tal facto é pertinente, pois remete-nos para um específico contexto sociocultural de enunciação e de recepção estética com implicações na compreensão da sua obra. Entre 1944 e 1947, são raras as obras de poesia de autoria feminina, sendo de salientar como excepções a publicação por Natércia Freire de Rio Infindável (1947) e as estreias poéticas de Sophia de Mello Breyner Andresen (Poesia de 1944 e Dia do Mar de 1947) e de Natália Correia (Rio de Nuvens de 1947). Ora a poesia de Maria Almira Medina insere-se na temática da condição sociocultural da mulher de origem burguesa, numa sociedade padronizada em função do cliché da mulher como “fada do lar”, com raros direitos de cidadania, num mundo subjugado pela ditadura fascizante de Salazar, onde o policiamento dos actos culturais era uma das componentes nucleares do aparelho repressivo do regime e da reprodução ideológica dos valores que sustentavam e davam continuidade a tal sistema político e económico-social. A artista, nesta hierarquia social, era duplamente silenciada, enquanto criadora e mulher, embora o tema da emancipação feminina tenha conhecido anteriormente com a poesia de Florbela Espanca (1894-1930) um momento de elevada exaltação, ou, mais tarde, com a escrita intimista de Irene Lisboa (1892-1958), fundada numa estética do fragmento, onde as fronteiras entre a poesia e a prosa se atenuam, um segundo momento de afirmação dos anseios e contradições da mulher socialmente enclausurada ou da busca e afirmação da sua identidade, num universo de valores dominantemente “machistas” que silenciavam a voz cultural feminina e a condenavam à solidão. É, pois, neste horizonte sociocultural que podemos ler e interpretar a poesia de Maria Almira Medina.
Por outro lado, entre 1944 e 1947, os anos finais da trágica 2ª Guerra Mundial (1939-1945) e do alentar da esperança no pós-guerra de um mundo novo e democrático por parte das forças progressistas e dos seus artistas, após a derrota do nazi-fascismo, geraram por toda a parte uma vocação estética orientada para a intervenção sociopolítica, ainda que essa “arte social” não fosse monolítica quanto ao modo de a exprimir. Entre nós, esse movimento designou-se como Neo-Realismo, e teve, no domínio da poesia, o seu momento fundador com a Colecção do “Novo Cancioneiro”, editada em Coimbra entre 1941 e 1944. Nela participaram vários escritores (Fernando Namora, Mário Dionísio, João José Cochofel, Joaquim Namorado, Manuel da Fonseca, Carlos de Oliveira, Sidónio Muralha, entre outros) que operaram uma ruptura relativamente ao culto da originalidade intimista do movimento da Presença (1927-1940) e das concepções autotélicas no plano estético das suas figuras mais relevantes: José Régio, João Gaspar Simões e Adolfo Casais Monteiro. Para simplificar, poderíamos dizer que ao “eu individual” da Presença, os neo-realistas opunham o “eu social”, ainda que tenhamos de reconhecer, a esta distância temporal, algumas linhas de continuidade entre uns e outros no plano da linguagem poética, como refere Fernando Guimarães, um arguto estudioso dos movimentos poéticos portugueses no século XX.

Neste aspecto, Madrugada estabelece a ponte entre o intimismo da geração da Presença, ou mesmo da subjectividade labiríntica e dilacerada de um Mário de Sá-Carneiro, e a apetência por um metafórico canto da redenção humanitarista vizinho da poética neo-realista, sobretudo reconhecível a partir dos poemas 51 a 76. Aliás, embora não atribua títulos aos seus poemas e não os insira por ordem cronológica, o modo de sequenciar no livro os textos revela uma intencionalidade de traçar um caminho entre a busca ensimesmada e abissal de uma identidade feminina, no quadro de uma clausura burguesa hiperbolizada, e a revelação de um eu que se complementa pela sua projecção numa voz coral, simultaneamente superadora das contradições intimistas e de uma sociedade iníqua na qual não havia lugar para a fraternidade. O eu participaria então de uma vocação comunitária que passaria a dar um novo sentido à sua existência enquanto mulher e cidadã. Logo no primeiro poema da obra, datado de 1947, projecta-se uma espécie de autobiografia imaginária que tem como interlocutora virtual a mãe e que atravessa diferentes fases da sua vida (a infância, a adolescência, a juventude com a sua rebeldia e o período da maturidade). Há como que um tom confessional depurado, onde sobressai um tempo dominado pela solidão, pela clausura e pela ausência de diálogo com os pais. Ou,então, uma ferida fundadora neste percurso retrospectivo, resultante da incomunicabilidade entre o eu e os outros: os pais, os amantes e o mundo. 
Realçam-se  aqui os interditos e os mitos (a espera do príncipe encantado) a que estava sujeita uma jovem numa sociedade dominada pelos valores masculinos: “Nunca quis ser um homem, / Mas chorava a minha injusta condição de menina bonita que/ pede licença para viver,/ Enquanto o meu irmão entrava na vida sem grades e algemas./ Eu era livre como um pássaro, mãe, e amava a vida!/ Eu queria correr mundo como o ar, ó mãe!” (p. 11) 1. Daí a rebeldia que cresce com a juventude e é um antídoto para a solidão e a activadora da possível e desejável expansão de uma força vitalista que se desenvolve no desejo da aventura ou de mudar o mundo em nome da verdade da vida. Este vitalismo exacerbado não andará longe de alguma poesia de Adolfo Casais Monteiro ou de Manuel da Fonseca. Contra o tédio e a rotina do quotidiano, a viagem surge como a metáfora da libertação do desejo. Aparentemente a síntese entre as razões íntimas e o clamor contra as injustiças sociais parece abrir as portas a uma nova mulher num novo mundo, porém o poema retorna ao desassossego e ao desencontro inicial, sobressaindo o malogro da sua luta ao lado dos pobres de pedir e dos povos humilhados contra o poder das pessoas respeitáveis, ou seja, do mundo burguês.
O tema da clausura da jovem burguesa é, aliás, reiterado ao longo de todos os poemas dominados pela desesperança, tendo na janela da casa, um espaço de fronteira, um símbolo paradigmático. Há como que um muro inexpugnável entre o corpo de desejo e a voz juvenil feminina, pois esta está, ao mesmo tempo, presa à casa e aos seus mitos familiares, em suma, a uma ficção castradora, e fascinada pelo mundo real da rua e dos caminhos do mundo. Daí que a sua voz se extinga na solidão sem destinatário, uma compulsão narcísica entre dois espelhos. Aí a vida torna-se algo de residual perdido no labirinto do tempo interior – um corpo ausente. É um mundo sem pontes entre o eu e os outros, de sonhos ausentes de finalidade e de vozes silenciadas: “Ninguém ouvirá os sinos,/ Ninguém sabe que eu vivi./ Os sinos semeiam estrelas/ Que eu deixei em testamento. / […] Semeiam estrelas os sinos,/ Que ninguém virá colher.” (p. 13). Entre o corpo ausente que recusa a dor de pensar-se e a dissolução do eu ante a aridez do mundo, recortam-se as imagens simbólicas do lago calado (água enclausurada) ou da entediante janela, “o estúpido quadrilátero”, da chuva e da noite, ou, num grau mais hiperbolizado, do imaginário do abismo. A opositividade entre a noite e o dia banaliza-se e só o clima mágico das histórias infantis (o dragão, a bruxa, o príncipe encantado) de pasmar parecem atenuar o cansaço ou a dor de ser. Daí o pairar da pulsão de morte ou do sono, uma sua imagem gémea.
No poema 11, o sujeito enunciador apela ao fim dos símbolos de encantamento (jardins, flores, pássaros),  numa convergência entre o fim do objecto que o enfeitiçou, enquanto terapêutica ilusória, e a morte do eu. Mas esta dor narcisicamente indefinida projecta-se numa quase amnésia da identidade que tem na metáfora do Mar Morto ou das almas dos navios naufragados essa saudade de vir a ser aquilo que nunca pôde ser. Daí o desejo pontual de “ser a serenidade inconsciente dum pôr-do-sol”, embora saiba, numa dinâmica imaginária decadentista, que “o poente é uma nevralgia”. A viagem parece ser um acto permanentemente diferido, pois o sujeito é mais objecto da viagem imaginária do mundo do que sujeito da viagem. Esta descida à noite do ser é, no entanto, a condição para a aprendizagem da luz, pois como afirmaria Adolfo Casais Monteiro: “Ah! só quem vem das trevas e das noites escuras/ pode amar assim o imenso mundo do sol!”.2
A libertação desse vitalismo solar passa então pela catarse da descida aos infernos do tempo infanto-juvenil, onde até a terra-berço, o jardim edénico de Byron e do turismo (Sintra), é rejeitada porque associada à metáfora da prisão (família, parentes, amigos), em nome dos símbolos da viagem adiada porque reprimida: “Só amo os voos de ave ou os mastros dos navios a apontar o/ desconhecido./ Só amo a distância e esse mar onde mora tudo o que me rouba-/ram em menina,/ Esse mar que sepultou meus sonhos de perspectivas verdes, infin-/ dáveis, e minhas possibilidades malogradas” (p. 25).Como se a libertação do eu só fosse possível através da desconstrução da própria mitografia juvenil, ou seja, de um absoluto fantasmagórico que fica sempre aquém das suas expectativas, como esse simbólico argonauta em busca do velo de ouro sepultado para sempre por esse amistoso “mar raivoso”. Há então uma reiteração das imagens do malogro do partir ou da perda do sentido de ser (“Perdi-me no alto-mar/ Malogrou-se o meu partir”, p. 27), sendo progressivamente o eu identificado com a própria vertigem do abismo: “Vim dos abismos do mar/ Numa barca à vela/ Sem vela e sem vento./ Vim de madrugada,/ Entre o sol e o luar./ […] Ai, minha boca/ Era o abismo donde vim.” (p. 28). Ou então uma suspensão eternizada num definitivo “porto inabordável”. É o mundo do cansaço e do corpo ausente, embora a figuração de um tu possa ser o leito do esquecimento.
Já o erotismo perpassa sobretudo nos poemas 23, 24 e 25, onde o outro pode acordar os desejos até então interditos (“Vem, meu amor, vem acordar a eternidade no meu corpo”, p. 36) ou mesmo fundir numa mesma unidade a carne e o espírito, superando o dualismo da tradição platónico-cristã, como se pode observar no quiasmo: “A minha carne é toda alma,/ A minh´alma é toda carne!” (p. 38). O corpo erótico parece assim ser uma superação das metáforas do eu perdido no labirinto interior. Embora sem rota, o corpo espraia-se passivamente como objecto apetecido de um tu. O erotismo parece ser um outro modo de esquecimento das turbulências da viagem a haver. Entre a abstracção das quimeras, opta-se pelo corpo do real. Algo que é realçado no poema 30, onde à verdade da ficção (“terra de veludo e estrelas”; “a lua de vidro”; “os génios”; a espera do «Desejado») se opõe o mundo das “coisas reais”.
A partir do poema 32, e sobretudo do poema 45, as imagens nauseantes do mundo burguês dominam, num universo povoado de donzelinhas enclausuradas nos seus quartos, olhando através das janelas um mundo simultaneamente próximo e distante: são os pássaros engaiolados, leitoras de Max du Veuzit (1876-1952) e da Colecção Azul, leitura bem armadilhada para uso e educação das assexuadas jovens burguesas, preparando-as para a espera do Príncipe Encantado à esquina da rua. Para elas vai o apelo do enunciador no sentido de se libertarem dessas ficções alienantes e virem, de coração aberto, para “o livro matizado da vida”. Neste tédio dos dias cinzentos, as meninas burguesas consomem o quotidiano entre os enfadonhos bordados e o tricot ou o piano e ficam num paradoxal gesto de olhos fechados “a ver a rua a passar”. É pois já o seu mundo social criticamente visualizado a partir do exterior. É também o mundo fechado dos meninos burgueses que apenas podem brincar ,através do olhar, com os miúdos pés-descalços que compensam a miséria com a capacidade lúdica de transfigurar o espaço da rua. São dias tristes, de uma tristeza reiteradamente assinalada pela sua referencialidade sociocultural, como se, através destes seres entediados e a quem se interditou a aventura, a autora se reconhecesse na distância que a separava deste universo e a conduzisse a uma relação simpática com o outro social. É contra este mundo de interdições que também nos fala o poema 32, onde os verbos “fechar”, “tapar” e “proibir” conotam um mundo de repressão que começa na infância, se prolonga nos interditos da sexualidade feminina e acaba no silenciamento da voz dos poetas. Mas o poema, aliás, acaba com o apelativo a um nós no sentido da acção colectiva transformadora do mundo.
Neste quadro de rebeldia, é de sobrelevar também o poema 46, no qual a ruptura com os rituais católicos é complementada pela assunção de uma fraternidade laica, um contraponto do formalismo ritualístico da missa de domingo. O espaço laico sacraliza-se e o tradicional espaço sagrado laiciza-se: “Hoje é domingo./ Não vou à missa. Não é costume./ […] No espaço livre da rua./ Domingo absoluto!” (p. 59).
Sobretudo a partir do poema 51, no âmbito da crítica rebelde ao universo sociocultural burguês e à iniquidade e à opressão da sociedade vigente, convergindo num conjunto de interditos relativamente à pujança vital dos seres, algo comum à temática da poesia de Manuel da Fonseca, surgem os textos que denunciam a violência do belicismo entre povos, defraudados por ideologias e lideranças políticas contrárias aos seus interesses, num desejo de redenção humanitarista, uma oposição reiterada entre a mácula das ideologias guerreiras e anti-humanistas e a necessidade de purificar a terra, onde cabe também, à maneira anteriana, a sombra de um Cristo traído. No poema 53, o apelo à revolta inclui a provável sacrificialidade do enunciador e de todos aqueles que o vierem a acompanhar na sua luta. Mas todo este cenário de mentira e violência é pela poeta articulado com uma educação quotidiana castradora: “Mães perversas inventaram papões atrás das portas/ E os chefes de família inventaram a moral/ E o silêncio às refeições” (p. 67).
Este redentorismo humanista, talvez mais próximo do expressionismo alemão do que do neo-realismo, não deixa, no entanto, de funcionar como aquilo que Joaquim Namorado designava, relativamente às palavras poéticas, como “máquinas de produzir entusiasmo”. Contra o fatalismo da miséria e da clausura, urge criar cânticos novos que hão-de conduzir ao renascimento da Humanidade. Em alguns poemas, simboliza-se mesmo a situação prisional, como é o caso dos poemas 63, 69 e 71, nos quais, face ao inferno da clausura, a imagem libertária do pássaro roubado se abre num cântico de esperança apesar da violência de todas as torturas. É a ressurreição das asas. Nesta “noite tenebrosa” a voz poética é a inscrição branca simultaneamente da denúncia e da rebeldia e para que surja um mundo novo a libertação inclui também o fim dos interditos relativamente aos mitos do hímen intacto: “Hão-de voltar a ser poetas, as mulheres:/ virgens escravizadas hão-de quebrar correntes e soltar cânticos […]/ às virgens serão rotos os seus hímens, à nascença, sem soleni-/ dade e sem mistério, como se abre/ um botão e desabrocha sem mistério” (p. 79).
No último poema, a voz branda e pura a acender fraternidades é o rasto de luz que ilumina o caminho da utopia, num gesto similar ao das aves e dos ventos: “Mas tua voz não pára, não tem foz:/ Veio de longe, Poeta, irmã das aves e dos ventos,/ E esvoaça, branca, na noite pavorosa,/ Cumprindo sua missão de asa/ Ou luz/ Até ao fim das trevas.” (p. 94).


1 - Maria Almira Medina, Madrugada, 2ª edição, Sintra, Edições da Casa das Cenas, 200

2 - "Desfloramento" ("Sempre e sem fim", 1937), Antologia de poemas de Adolfo Casais Monteiro, (selecção de poemas por João Rui de Sousa), Documenta Poética 1, Lisboa, Assírio & Alvim, 1973. 

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Paisagem com figuras: notas breves a propósito das presidenciais

Segundo a narrativa hegemónica publicitada pelo poder mediático (jornais e televisões), Marcelo Rebelo de Sousa seria um virtual "super-poder", porque voa acima das telúricas ideologias, contrariamente aos seus principais concorrentes maculados pelo pecado ideológico. Mas estas asas de anjo, moldadas pela ficção da normativa desertificação ideológica, enquanto atributo maior de um Presidente da República, apenas nos conduzirão a um imperativo olhar único sobre o mundo. A suprema das ideologias (ou das ironias) consiste, pois, na encenação retórica  de um vazio ideológico. E nisso Marcelo é, justiça lhe seja feita, um actor de gabarito. 

Nas carnavalescas arruadas presidenciais, como um anjo benigno que descesse à terra, ei-lo farsante maior a conviver com o povo e a partilhar  os rituais humildes do quotidiano. Os céus televisivos obviamente deram e continuam a dar uma ajuda providencial a este talentoso histrião, de tal modo que o hábil comentador, ao longo de décadas, de tricas políticas, emerge, aos olhos do vulgo, como o demiurgo da democracia. E, ali, nas ruas, de corpo pleno palpável, oferto aos lábios e aos braços da multidão, e de sorriso incontido, adquire mesmo uma dimensão messiânica - a apoteose de uma farsa trágica. 



George Tooker (1922-2011), "Paisagem com Figuras", 1965-66


Esta pintura do americano George Tooker (1920-2011), conotado ora com o realismo social, ora com o realismo mágico, é uma metáfora da sociedade totalitária. A imposição/interiorização de uma perspectiva única sobre o mundo conduz a indivíduos enclausurados e diluídos numa homogeneidade massificada. Estão aparentemente juntos,  mas sem comunicação entre eles. A solidão absoluta apaga qualquer hipótese de elo solidário. A distopia está no lugar da utopia: a morte definitiva do desejo. O pesadelo geometrizado no lugar do sonho. A coisificação dos seres é o império da morte sobre a vida. As cabeças de corpos ocultados estão, por isso, condenadas por um poder inominável a olhar e a pensar numa única direcção. É um bom motivo para reflectir sobre a actual situação portuguesa e a do mundo.

quinta-feira, 3 de julho de 2014

As aventuras e desventuras dum cibernauta

Andre de Dienes (1913-1985) - Marilyn Monroe

Há umas duas semanas, antes de um jogo de Portugal para o Mundial, publiquei no Facebook uma fotografia de Andre de Dienes - fotógrafo americano de origem húngara (1913-1985) que se celebrizou pelas suas fotos de Marilyn Monroe, entre outras estrelas cinematográficas, e pelos nus artísticos - com uma jovem nua na praia em ginasticada posição acrobática como quem dá um pontapé no ar. Com pretensão humorística, acrescentei o seguinte comentário: “Com este ponta de lança a nossa equipa seria outra coisa”. Cerca de 10 dias depois recebi uma intimação do Facebook para retirar essa foto, caso contrário o meu acesso seria bloqueado, pois uma alma generosa e protectora dos bons costumes tinha denunciado a natureza obscena de tal imagem.



Andre de Dienes (1913-1985) - Nu (1940)


Convém referir que, numa 1ª fase, o “gestor” e “guardião da pureza” informou-me da queixa e da intenção de analisar previamente a diabólica imagem e assim agir em conformidade. Numa primeira reacção de indignação, publicitei no meu portal a arbitrária ameaça e, para provar a minha “inocência”, republiquei a foto e o respectivo comentário. Para meu espanto (santa ingenuidade!), alguns segundos depois o meu acesso fora bloqueado. Deste modo, fui compelido a retirar imediatamente a imagem “satânica”. Houve mesmo quem me sugerisse que a denúncia dever-se-ia provavelmente mais ao comentário, considerado corrosivo pelo patrioteiro denunciante, mordido pela miserável prestação da equipa nacional do que pelo simbolismo da imagem. Para o caso tanto faz!
Sei que este tipo de interdições, embora aleatoriamente, constitui uma prática dos gestores do Facebook, mas naquele momento senti-me na pele dos acusados da Santa Inquisição, pois era castigado sem a possibilidade de defender a minha posição ou conhecer a identidade do denunciante. Como era comum naqueles malfadados tempos, bastava alguém embirrar com o nariz do parceiro do lado para o denunciar por práticas heréticas. Também durante a nossa ditadura a “bufaria” fazia parte do quotidiano dos cidadãos. Denunciar alguém era para muitos um prazer “mórbido” ou um acto do qual esperavam uma compensação do poder totalitário vigente.



Felice Casorati (1883-1963) - Midday (1923)


Agora temos de novo em cima de nós um Olho Vigilante, sempre que pisamos o risco. O problema está no facto de não sabermos exactamente onde passa esse “risco”, embora, convenhamos, os códigos do Facebook coloquem as razões do falso pudor acima dos valores estéticos. Estamos de novo no reino do absurdo.

Lição: limita-te a publicitar flores, gatinhos e outros animais de estimação, desde que obviamente não sejam predadores, paisagens tipo carta-postal, fotos de ti em jeitos diversos mas com pudor, inocentes aforismos e outros produtos do universo “kitsch”. Desse modo, poderás ter a ilusão de que intervéns neste mundo globalizado, gerido pelos nossos estimáveis “Big Brothers”, sem sobressaltos. Quanto à distinção entre Arte e Pornografia, isso é apenas conversa fiada de pseudo-intelectuais. Aqui deixo, segundo espero, o objecto do meu crime. Espero no entanto a absolvição depois da minha morte! Lastimo perder o meu tempo e o daqueles que tiverem paciência de ler este arrazoado, mas tinha de desabafar. É o que nos resta!


Andre de Dienes - Nu (o objecto do crime)







terça-feira, 27 de maio de 2014

Peripécias dum Velho Eleitor Camponês

Ivan Kramskoi (1837-1887) - Cabeça de um velho camponês (1872)


Acomodado no meu velho sofá, com rasgões que dão para afundar as minhas  memórias, olho para o ecrã da televisão doada por um vizinho benevolente, cuja cegueira recente (cataratas, segundo disse) já não lhe permitia sequer entrar nesse mundo de reais ilusões, imaginadas e fabricadas a preceito, ou seja, com a eficácia necessária para manter a atracção do olhar nesse mundo distante que magicamente se tornara uma espécie de nossa segunda casa. O problema eram as constantes faltas de luz na aldeia, e candeia acesa não ilumina ecrãs.
Algumas imagens e vozes fugazes deram-me então a perceber que proximamente deveria ir votar para as eleições europeias, embora eu da Europa só conhecesse o que as televisões episodicamente me mostravam e eu era capaz de entender, ou aquilo que um companheiro rural, ex-emigrante em França, me contara desses mundos fabulosos, donde segundo percebera tinha vindo dinheiro a rodos para encher a pança dos portugueses, ou, na versão avermelhada, por isso suspeita, de outro velho resistente da aldeia, de alguns portugueses, os privilegiados do costume. Na minha aldeia, último refúgio de reformado viúvo com poucas posses, viviam já apenas 6 habitantes tão enferrujados como eu. O que sabia dos partidos limitava-se à algaraviada televisiva, isto é, um modo de dizer, pois,  homem do Norte, pouco sei dessas expressões sulistas, talvez memórias escolares me suscitem tal expressão. Sabia que havia o Passos e o Portas, o Seguro e os comunas e pouco mais.
Embora com as pernas entorpecidas, tomei nota do dia do voto e decidi cumprir o meu dever cívico, como o meu filho me ensinou a dizer. O problema estava em quem votar, ou ainda pior como poderia chegar ao local de voto,  a uns bons 10 quilómetros de distância. Fiz das tripas coração e aventurei-me à caminhada árdua com a ajuda da sempre amistosa bengala. E pensei que talvez durante o sinuoso (palavra lida no Borda d'Água)  percurso me surgisse a iluminação de uma escolha sensata. Por experiência recente, apenas sabia que o partido do Passos no poleiro me reduzira a parca reforma de feitor, com 70 anos de labuta no campo. Por isso, contrariando o conselho do padre, que mensalmente visitava a aldeia (actualmente nem isso, porque o rebanho era demasiado reduzido para tão longa viagem), decidi secretamente, não fosse o diabo tecê-las, mudar o sentido do meu costumeiro voto laranja.
Mas que teria tudo isto a ver com a Europa? Dizem os do poleiro que nos endividámos com tantos velhos e velhas (sobretudo velhas que teimosamente duram eternidades), calões e estropiados a esmolas do Estado e estradas a perder de vista. e que a santa Europa usurária, palavra douta ouvida a um adepto da oposição, logo se prestou a emprestar o carcanhol. Pouco mais sabia. Mas desta vez, contas feitas, a reforma mal dava para a boroa, ora bolas para os laranjas que assim  me pagavam décadas de fidelidade, pensei com os meus botões coçados. Não pedi conselhos ao meu filho, a viver em Lisboa, pois sabia das suas tendências demasiado comunistóides para meu gosto, efeitos certamente de más companhias, e, além do mais, o meu rendimento não dava para fazer telefonemas a despropósito.
No dia aprazado, cheguei exausto, palavra desnecessária tendo em conta a lonjura e a idade, à vila onde estava recenseado. Pediram-me o bilhete de identidade e deram-me um papel com as siglas dos partidos. Aí começaram as minhas aflições, pois tantos eram os emblemas em presença. Eu bem procurei o rosa, incitado à última hora  por um conterrâneo partidário do Seguro. Mas nada. Seria dos meus olhos turbados? Pensei então em fechar os olhos e atirar a cruz, Deus me perdoe, ao acaso para o bafejado quadrado. Ou então, como em miúdo,  entoar uma cantilena para esvoaçar o voto ao sabor da sorte. Com tanta hesitação, o tempo foi-se prolongando demasiado no "escondidinho" do voto, e não me livrei, pensei eu, da suspeição de sabotagem aos olhos dos senhores da mesa. Nos tempos que correm, nunca se sabe! Atirei às cegas, embora com o risco de acertar no tal Passos que me encolhia o tempo da sobrevivência ou nalgum partido vermelho. Pior a emenda que o soneto! Mas, quando abri os olhos, verifiquei com terror que a cruz estava fora dos quadrados, fora dos quadrados de todos os quadrantes. Com suores frios ou quentes, já nem me lembro, coloquei então velozmente uma cruz em todos os quadrados, não fosse o meu atraso ter terríveis consequências europeias. Dobrei o papel conforme a Lei e coloquei-o na respectiva urna, palavra de mau gosto para tal cerimónia, diga-se em abono da verdade. Lá regressei a casa, mancando cada vez mais, mas feliz porque tinha cumprido o meu dever cívico. A Europa iria certamente agradecer-me pelo acto, só espero ainda estar vivo para receber a justa recompensa.


Ivan Kramskoi (1837-1887) - Retrato de um velho camponês com muleta (1872)




domingo, 6 de abril de 2014

Para não falar de política!

Carel Willink  (1900-83) - Paisagem com Estátua Caída (1942)

De que é feita uma vida? Hoje com setenta anos ainda não sei responder. Cada caso é um caso, diríamos carregados de bom-senso, embora todos estejamos condenados ao mesmo desenlace. Por vezes penso que uma aparente fugaz imagem pode ser o cerne da questão. Uma imagem que de certo nada vale ante as peripécias narradas por uma comunicação social (a famigerada agenda noticiosa) que inexoravelmente ritma os dias do nosso quotidiano: atentados, guerras, especulações bolsistas e outras, naufrágios, bizarrias meteorológicas, pequenas e grandes catástrofes - por vezes tão longínquas, apesar de mediaticamente próximas, que depressa se apagam da memória -, traições e anedotário político, delitos,corrupções e necrologias dos afamados. E, quando os grandes entusiasmos das paixões ideológicas ou outras passaram no tempo curto da nossa história, fica então esta sensação de vazio que nada pode preencher. A voracidade do tempo é desmesurada e na caminhada vão ficando as máscaras destroçadas que nos couberam em sorte ou desnorte.


Giorgio de Chirico (1888-1978) - O Enigma da Hora (1911)


Depois, quando despojado de tanta ficção, o nosso corpo enrugado continua apenas aberto aos sinais da natureza,  enquanto os sentidos não vão obviamente embotando completamente: rumores, aromas, paisagens, gestos paralisados no tempo. Então descobrimos que a felicidade é uma ficção que os deuses inventaram para nos iludir, seja na terra ou no céu. A vida é um litoral branco, onde podemos imaginar palavras ou imagens que possam dar algum sentido à caminhada. Mas, para lá disso, o que fica é um corpo com as suas necessidades básicas a que por vezes chamamos desejos, desnudado já das pequenas e grandes verdades que motivaram a rota de tantas vidas. As convicções persistem, mas descolaram-se do corpo, como um hábito ou uma rotina já sem a capacidade sequer de sulcar a pele dos nossos dias.


Giorgio de Chirico (1888-1978) - Melancolia de uma Bela Jornada (1913)


E hoje, 6 de Abril de 2014, dia em que escrevo esta sensaboria desconexa e vagamente pessimista, a Primavera aí está com todo o seu esplendor apolíneo. E este lugar-comum que habita as conversas quotidianas, ao sabor dos códigos sociais, se não me euforiza, pelo menos desperta-me agonicamente os sentidos para o voo das árvores, das flores e das aves, entes que nunca tiveram a necessidade de se interrogar sobre o sentido da vida ou da felicidade. Deixemo-nos então esvoaçar aos ritmos das asas deste cenário que não se deixa enredar nas teias da infinita busca de sentido. Hoje é um bom dia para apenas existirmos, se é que dizê-lo tem paradoxalmente algum sentido.  


Giorgio de Chirico (1888-1978) -  A Jornada Ansiosa (1913)