segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Os Desconcertos do Mundo


Marcelino Vespeira, "Apertado pela fome", 1945






Na Somália morrem cinquenta crianças por dia por causa da fome – a região do chamado Corno de África, onde este país se insere, atravessa um dos períodos  de seca mais catastrófico das últimas décadas. Além disso, uma guerra absurda, como se todas as guerras não o fossem, de 20 anos agrava a tragédia. A miséria, aliás, agudiza as tensões tribais num Estado frágil, porque imaginado em função das estratégias das ex-potências coloniais, em 1969.
Na televisão ou na internet, imagens de corpos de crianças semi-cadaverizadas incomodam-nos, mas já estamos todos de tal modo vacinados com a inflação de imagens da tragédia africana, diariamente consumidas, que o horror se banaliza. Olhamos, fazemos uma careta e vamos à vidinha. A nossa memória é selectiva para o bem e para o mal, e aquelas figuras de mortos-vivos depressa caem no nosso rio de Letes. Neste  Ocidente cristão nem sempre bem comportado – muito gostamos de carregar no gatilho – preocupamo-nos mais com o atropelamento do gato da vizinha (chama-se a isto ter o coração a olhar para a nossa esquina) do que com as tragédias longínquas, sobretudo dessas  que acontecem a negros lá no Corno de África (com tal designação toponímica não era de esperar outra coisa, dirão mesmo num sussurro os mais preconceituosos em questões de raças). Mas podia ser o Corno da Abundância, caso o mundo não fosse tão iníquo, dirão os mais sensatos. Pois é! Com tanta tecnologia e tanta preocupação encenada com o mal-estar dos outros, como é possível que meio milhão de crianças estejam à beira de morrer por falta de alimentos, quando no Ocidente cristão se morre de obesidade pelo excesso de alimentos consumidos? Seria bom então que, em benefício de uns e de outros, a gula ocidental fosse controlada e o excedente fosse enviado para os países da geografia da fome. Ocidentais mais saudáveis e elegantes e negrinhos com a fome saciada lá no tal Corno de África. Como ele é ingénuo, pensará o meu benévolo leitor. E quem pagaria os tais excedentes? Os ocidentais obesos pagam os excessos consumistas com pilim bem sonante, nem que para isso tenham de se endividar. O último a fechar a porta que pague a conta, mas os negrinhos...
E uma taxa mínima, qualquer coisa como 0,00001% sobre juros e dividendos, não seria uma solução? Tudo se resume a uma questão de boa vontade cristã. E os ricos estão cada vez mais ricos.  Aliás a obesidade capitalista também pode ser um factor de doença. Veja-se o ar angustiado dos nossos ricos! A angústia sempre foi uma luxuosa maleita dos de barriga-cheia. Doença? Essa é boa, sobretudo para os outros, os pobres que estão cada vez mais pobres! - dirá um leitor com pulsão socialista. Doença ou inveja?  - dirá, por sua vez, um leitor malévolo e reaccionário. Assim ninguém se entende, diria eu.
E depois há os paraísos fiscais e o Tea Party que se entorna logo que ouve falar em taxar as grandes fortunas. Isso é lá nos "States", quanto aos paraísos fiscais não seria possível fazer com que tais utentes passassem previamente pelo purgatório? -  questiona um  leitor, perito em Teologia. Meu Deus, como o entendimento de coisas fáceis é tão tremendamente difícil.
E entretanto entre a escrita desta verborreia e a sua leitura, alguém me saberá dizer quantas crianças morreram já com fome?