segunda-feira, 18 de junho de 2012

Canção do Ceguinho: a lengalenga lusitana



Picasso - O velho guitarrista cego, 1903 

No meu quarto
Janelas semicerradas
Ouço um longínquo canto popular

Escutai agora senhores
Histórias de pasmar

No meu país há tal desalento!
Tanta dor! Tanto tormento!
Tanta falta de talento!
Tanta história sem tento!

O pai viola a nina
Doze meses menina
O galho está no acto
A viola no saco
A morrinha no sapato

Eis casos de espantar
Aqui vos estou a narrar

A filha mata o pai
Ossos de carne parca
Pra quê ambrósia
Com lixo de mal andar
Só feito pra estorvar
E a herança cansada
De tanto esperar

Uma esposa mata o esposo
Outro esposo a esposa
Tanto tédio no lar
Esgazeados de tanto estar
Anda bolor no ar
E o dinheiro a azedar

Gira a roda! Gira! Gira!
Gira a roda a arfar
Gira o caos
Gira o mundo
Modos de mal-estar

Tal inferno em vida
E o vento a rufar
Tudo a molestar
O futebol está a dar
Vacinas pró mal-estar
Mas já nem os três efes nos salvam
Deste lusitano prantear
É o fado! É o fado!
Deste povo mal-amado

O pedófilo fila o pénis
No dar a dar
De cu no ar
Dos anjinhos azuis
De mau fadar
Barrocos
Secos e molhados
A coxear
Sodoma
De pé no ar

Sodomizados de todo o mundo uni-vos
A vitória será vossa
Nesta casa pia da vida
A justiça há-de triunfar
Diz um optimista a alar
Questão a ponderar
Murmura o juiz de pau no ar
Tal o poder de mandar
Ou dos que em mim mandam mandar

Gira a roda! Gira o caos!
Gira o mundo! Tudo gira!
Giração de nervuras
E nervosos
E nevroses
E neuroses
E artroses
Não pode mais meu coração!

O aluno bate na professora
Não o ensina a voar
Nem telemóvel tocar
Um bulício no ar
Três dias de castigo
Um tempo pra vadiar

O rapaz de mau-humor
Nunca conheceu o amor
Mas na vingança do olhar
Capta maligno
A violação da vizinha do andar
Num vídeo de alarmar
As pombas do lar

No meu país há tal desalento!
Tanta dor! Tanto tormento!
Tanta falta de talento!

Nas procissões a Maria
É vê-los anjinhos a voar
Chagas mil a florir
Parecem ossadas a chorar

O Ministro palra palra
Charla charla a oposição
Todos querem domesticar o ar
Pac pec pic poc puc
Da sagrada economia
Mas a Troika veio finalmente atinar
Os novelos no ar
Dos luxos desmedidos
Das indolências do Sul
Vizinhas das Áfricas do inato preguiçar
Vem dar o que tira
Mais tira do que dá
É a crise dos mercados
É a bolha imobiliária a arrasar
Os mais pobres dos pobres
Os pobres e os menos pobres
E veio pra ficar
Até o sangue se sugar
Ou a bolha rebentar
Ou o povo se acabar

Henri Cartier-Bresson, Madrid, 1933


E as finanças dos pobres
Que têm de ser infinitamente pobres
Como ditam as escrituras dos camelos e das agulhas
Meus filhos!
A fome dos tubarões é infinda
Sede pacientes
Deixai cair os dentes
O céu com juros pagará tão penosa travessia
Que a morte vos seja bem-vinda
Já que à vida vos troikaram as voltas

Tanta dor! Tanto tormento!
Tanto plano de fomento!
A fomentar o engodo
Em Domingo Gordo
Rostos lívidos a mascarar
No logro deste Carnaval
Caretas das flores do mal

Tanta dor! Tanto desalento!
E a TV a dar a dar
Nem sim nem não antes pelo contrário
Os prós e os contras
E os politólogos
E os economistas
E os fiscalistas
E os comentadores
Todos ecos dos ecos dos ecos
Em uníssona voz coral
A encenarem com as virtudes do mercado
A expiação colectiva nas vozes e no olhar

É a vida! É a vida!
E a internet a fornicar
Transparências no teclar
É a aldeia global
E o grande olho dum novo deus
Guardião desta ordem universal
Há palavras heréticas a punir
Imagens de revolta a reprimir
Mas ninguém leva a mal
Até ao dia do Juízo Final

É entrar! É entrar!
Os bilhetes estão a acabar!
Anda euro no ar
Prós doutos no tragar

No meu país há tal desencanto
Cantos e descantes
Cantochão dos vermes da corrupção

Venham ver o sangue a escorrer
Seco do canto
Venham ver a liberdade de morrer
Por encanto
Assim de fome
Na escassez de ser ou ter
Venham turistas e diplomatas
Animais neanderthais e outros mais
Venham ver!
Esta outrora
Aldeia imperial
De papelão marcial
A arder
Antes que as cinzas
Vos ocultem o olhar 
Venham ver
Com a urgência de não
Haver mais
Nas trevas deste fado
Mais-valias a haver
Ventres fartos de as lamber

Carne vermelha branca azul negra mestiça
Arco-íris deste pedestal
Vende-se a quem der mais
Desempregados aos ais
Abutres asados
Outros mesmo desasados
Esvoaçam todos na gula
Dos saldos da carne de trabucar
Praças de jorna na moda
São os mercados neoliberais

Picasso - Os pobres à beira do mar, 1903


A fome é tanta
É comer e chorar por mais
Caviar e peixe cru
Champanhe e pitéus de truz
Lagostas e avestruz
Sempre os mesmos a enfardar
Aos outros o fardo da morte em vida
Severa e Severina

Venham ver
A esfíngica face a olhar
As ocidentais borras de maresia
Cruzes doridas tal o vergar
Na névoa
A diluir
A rebeldia do olhar
Resignado rebanho à beira-mar
Ao ritmo dos queixumes
Quem manda em tal demanda?
Quem manda é o pastor das almas mortas!

Turner - Mar encrespado com naufrágio, 1840-1845
  
Venham ver!
Venham ver!
Melhor que pão e circo
Que odor a mirto
O escarro ocidental
Último poiso neanderthal
Na indecisão da merda e do mar
Tágides mungindo nosso destino

Todos filhos da mesma mátria
Da mesma pútria
Que tais filhos pariu
Madrasta madre de todos nós
Não há mama pra ninguém
Salvo seja!
Salvo seja!
Menos para alguns
O leite derrama-se todo prá bocarra
Dos infantes eleitos
Preclaros artífices do golpe de mão
Familiares antigos desta nova inquirição

Volta Nobre
Estás perdoado
Que desgraça nascer em Portugal!
O pior está ainda pra vir
No barranco pior que os cegos de além-mar
Bem agoiravas Camilo Pessanha
Eu vi a luz em um país perdido!
Perdidos para sempre
Pior que nas turbulências do mar
Pior que o escorbuto ou comer as solas do andar
Nas Naus Catrinetas do nosso marear


Victor Hugo -  Ma Destiné, 1857


País à vela panda
Anda ver isto ó Miranda!
Que as nações tolas são mistérios
E nós rumamos para o infinito do nada

O mar morto de ver tal odor
Empesta o ar
Com tal fulgor
Casinos bordéis e greens à beira-mar
Até D. Sebastião estonteia
Com a heroína
À porta da nossa Hora
E as violas tangem Quibires a golfar

Foi-se a paz
Foi-se a guerra
Foi-se o sangue a terra e a guelra
Foi-se Santiago e São Jorge
Heróis do mar
Foi-se o Botas e o Demótico
Foram-se as jóias do mar
E as do futuro do nosso passado
Efémeras miragens do nosso navegar
Só os mortos e os loucos ficaram a boiar
Orientes nas órbitas vazias do olhar
Nem rei nem roca pra fiar
Tudo disperso nada inteiro
A não ser a bola de pilhar
Os destroços dos desejos
Destas almas a piar
Águas bentas
Na poluição do desalento


Courbet -  A onda, 1869


Um profeta ainda clama
É a hora de segar e martelar
O salso fundo do luso ar!
Mas o nevoeiro é tão denso que cega até os olhos do mar!
E aqui se encerra esta história de pasmar!


Annie Leibovitz -  The Wizard of Oz, 2005

PS - Este cantor popular, em andanças pelas ruas da cidade, apesar da cegueira e da sua cultura rudimentar, manifesta nos seus versos alguns ecos das vozes de António Nobre, Camilo Pessanha e Fernando Pessoa. Certamente escutou nas noites de vagabundagem alguém que solidariamente lhe leu alguns versos destes poetas. Na sua genuína inocência transfigurou-os de acordo com o seu jeito peculiar de cantar os males deste mundo.


quinta-feira, 7 de junho de 2012

Fragmento do diário dum cibernauta



Mark Rothko - Ocre e vermelho

 Nas redes sociais, há quem morda com os dentes da alma, outros com os do cão desdentado. Ninguém leva a mal, mesmo os pesadelos deste mundo virtual. Há quem suspire de solidão, outros de insatisfação. Há quem imagine o outro ideal à beira da sua mão. Há quem invente amantes ao sabor das suas ficções. Há quem seja camaleão, sendo verde se faz amarelo, de amarelo vermelhidão. Há narcisos para todos os gostos, mas também quem procure elos na escuridade da solidão. Há quem tenha cem anos e escassas rugas dos olhos de 20. Há quem se disfarce da criança que nunca foi. Ou, em barrocas sinédoques, diga aqui estou eu: um pedacinho de pescoço, o barco à vela panda, o rosto vazio, o fantasma espalmado, o brinco de princesa, o colar, a flor de lis, o rego do desejo, o sinal negro do peito, o rabo do gato. Há links, likes, posts and comments. Há quem veja tudo a preto e branco ou quem não distinga o preto do branco, enquanto outros vêem-se a implodir em pancromáticas festas dionisíacas. Há fotos do artista enquanto jovem, da mãe, da amante, dos avós, dos amigos em eufóricos convívios ou simulados tagatés. No recanto do jardim, na montanha, na orla do mar ou do vulcão. Há muitos vídeos de paisagens, sobretudo crepusculares, e corpos em manobras rosas, com músicas melosas, tipo jardim das delícias para enamorados em cios de lua cheia. Mas também há vídeos musicais sublimes, daqueles que nos fazem sentir o dedilhar da mão de Deus. Há muita poesia, boa, má, assim-assim. Há poetas esquecidos, outros por esquecer, outros a amanhecer. O importante é escrever. Infinita é a paciência do teclado. Há músicas que nos enlevam, outras que nos matam de tédio ou de bolor. Erudita, popular, popular-erudita e erudita- popular. Uns dizem gosto, outros desgosto, outros nem por isso. Há quem diga, foi tão bom, Ninó, mas já passou, para o ano há mais. Não caias em nostalgias! Há quem se baste com o contacto ou com o toque, estou aqui, alguém está lá? Há chats e chatos, mas outros de humor corrosivo. Convém estar atento a estes casos, pois podem corroer o computador. Pior que os vírus! Mas há também quem respire de tédio, num arfar tão forte capaz de corromper a rede. Estes são os mais perigosos. Há narcisos e rosas de Santa Terezinha. Lol e fol, fol e lol. Corações negros e bolas de cristal. Círculos de riso amarelo de tanto rir. Mas há também quem chore, para dentro, obviamente. Há jogos, causas e jogatanas para todos os paladares. Podes mesmo plantar alfaces no teu ecrã imaginário e exportá-las para a Cochinchina, com a vantagem higiénica de manteres as mãos imaculadas.


Magritte - Ceci n'est pas une pipe

 Há floras suspeitas, canções de ódio e de amor, esgares de revolta. Crepúsculos e ressurreições na paisagem dos corpos. Há quem abane fantasmas pelos corredores do medo. Há Big Brothers a vigiar  masturbações, subversões e outras corrupções -  nus em pose ou pousados em sossego, falos gastos de tanto uso, escorpiões cravados nas gargantas, vozes a apelar à sensata utopia de acabar com a indignidade e a exploração. Cuidado com os apelos à louca ideia de mudar este mundo! Há quem diga mal dos políticos que nos lixam, mas tudo dá em catarse. Ao menos, nesta democracia mediática, podemos caricaturá-los, dar-lhes safanões, calcá-los, roer-lhes os ossos, que a terra não treme nem as grades se fecham por tal escárnio demolidor de ídolos de barro. Há também quem defenda a Terra, mas nunca tenha posto os pés na terra. Há gatos e cadelas a ronronar nos colos das Madonas. Dinossauros de laçarote estendidos na areia dos desertos da Líbia. Corpos esfíngicos de bronze em Carcavelos ou Copacabana.


Chirico - O Enigma do Oráculo

 Mas Apocalipse, como dizem algumas más-línguas com piercings de inveja, por aqui só se for português-suave. Eu faço aqui a minha psicanálise, barata e com rede. Tenho mil amigos que nunca vi nem verei. Outros mil na janela da minha expectativa. São os meus fantasmas mais fixes e os meus sábios analistas. Em suma, os meus amigos mais fiéis. Nunca me traem, como me traíram os da outra “vida”. Eu adoro o FB ou o Google, este universal desvario de triliões de sinais. Odiava o caos, mas este tornou-se progressiva e intimamente a minha casa. Estou só na companhia das infinitas vozes do universo. Aqui todos podem criar o seu mural, a sua cronologia, as fotos do seu ser vertebral ou o invertebrado, a sua inaudita ficção pessoal, e voar para lá do cabo do mundo. Posso disfarçar-me de rei, imperatriz, meretriz ou pedinte. A propósito não têm uma aspirina para a dor de calo? Hoje já fiz a minha revolução: a sexual, a política, a ecológica e a doméstica. Amanhã com a ajuda do Deus cibernauta outras mil me esperam. É só teclar, publicar e esperar. O mundo está rendido a meus pés. Se isto não é o Paraíso, eu me chame Pantaleão. Estou aqui tão concentrado que já não reparo nos corpos e paisagens ditas reais. Afinal real, mesmo real, é este mundo virtual. O mundo sou eu e as formas vazias que preencho ao sabor das minhas fantasias. E sabem que mais, aqui tornei-me imortal, nem as Parcas se atrevem a entrar neste reino divinal. Bolas! Finalmente sou feliz! E atirei com o meu psicanalista para o desemprego.


PS- Este “post” encontrado amarfanhado, num contentor de um afamado hospital psiquiátrico da capital, contém conteúdos que não se identificam com as opiniões do responsável deste blog. Resolvemos apesar de isso publicá-lo, enquanto testemunho de uma vida inteiramente votada ao universo das redes sociais.

Paul Klee - Monument in Fertile Country