segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

O Regresso às Crónicas e aos Mitos

Gustave Courbet (1819-1877) - Auto-Retrato, O Desesperado (c. 1843-45)

Depois de uma longa ausência, por motivos alheios à minha vontade, retomo com mais rugas da idade e do desalento as despretenciosas crónicas sobre o espectáculo deste mundo. Não me apetece falar de recalibragens nem do despudor retórico destes abutres, os daqui e os da estranja, que nos “governam”, nem da sonolência que parece afectar este e outros povos igualmente desditosos. Talvez porque está tudo dito e redito ou talvez porque me faltem as palavras para me reencontrar com a fúria lúcida necessária nestes dias de cinza. Basta de trovadores da desgraça, embora este mundo esteja amputado de graça, basta de lamentações e outros ecos da perdição. Os bonifrates do poder, numa surdez calculada, repetem os gestos habilmente orientados pelo grande manipulador, actor coberto pela neblina do anonimato. A engrenagem funciona e aparentemente nada a pode deter. Os cenários montados por servis agentes, nos meios de comunicação social, completam a eficácia do sistema, ou seja, a retórica imaginária do poder absoluto. Os mercados, esse sujeito sem contornos e sem alma, um vazio imperativo, ditam o nosso destino. Estamos armadilhados na teia destes símbolos habilmente forjados para nos submeter. Não é sequer uma conspiração dos grandes financeiros para dominar o mundo, pois eles já o dominam. A novidade está nesta estratégia de imposição de uma única visão do mundo como algo natural ou decorrente da genética humana, assente na credibilização da iniquidade através das máscaras da equidade do dito mercado. Chamar ao lobo cordeiro e ao cordeiro lobo. Ou convencer-nos que em cada vítima há um coração de carrasco, em cada carrasco um coração de vítima. A coisificação das relações humanas produz cegueira. É um mundo sem avesso e por isso naturalmente sem horizontes alternativos. Estamos condenados a ser os nossos próprios carcereiros. E aqui está como um cronista bem intencionado, contra sua vontade, se foi transformando num trovador da desgraça.



Paula Rego - O Jardim do Interrogador (2000)


Então eis que, neste patriótico interregno de silêncio e quase apatia, a morte dum homem de seu nome Eusébio – originário de um bairro pobre de negros da então colonial Lourenço Marques e que se tornaria um fabuloso artista da bola, reconhecido mundialmente e por isso manipulável, no quadro da cruzada salazarista, em torno do mítico multirracial ecumenismo lusíada, na década de 60 – vem, em plena crise, reconfigurar a nossa cenografia mitológica. Como afirmou solene Luís Filipe Vieira, “Eusébio já tinha ganho em vida a condição de mito” e a sua morte, digo eu, eleva-o à condição de super-mito, ou seja, numa identificação hiperbolizada “Eusébio é Portugal”, como nota José Mourinho. É então urgente reescrever a Mensagem de Fernando Pessoa, pois, segundo os escribas de serviço, este grande artista da bola teria sido a primeira figura do português global. E o discurso mitológico amplia-se: imortal símbolo de Portugal; Rei-Ídolo ou King, para dar um tom mais universal e eternizado.



Henri Rousseau (1844-1910) - Os jogadores de futebol (1908)


Realmente, para além de Ronaldo, próximo Comendador por iniciativa presidencial, onde encontrar hoje alguém que pudesse preencher o actual vazio de heróis lusos? O Barroso, presidente da Comissão Europeia, palavroso executor dos senhores do nosso destino? O Cavaco destes tempos tormentosos, actor menor para os desafios desta farsa trágica? O Coelho, salvador da pátria, que retoricamente identifica a sua missão de destruir o que resta deste país com o próprio Portugal? O Seguro, o mais inseguro líder do exército “socialista”?
Certamente Eusébio, conforme cruzada em curso, merece a máxima consagração nacional: o seu corpo deverá vir a ocupar um lugar ao lado de outros imortais do Panteão Nacional, aliás bem heterogéneos e tensos, para não dizer pior, nessa coexistência forçada (escritores liberais e democratas como Almeida Garrett, Guerra Junqueiro, João de Deus ou Aquilino Ribeiro; políticos da 1ª República como Teófilo Braga e Manuel de Arriaga; Sidónio Pais, um precursor da ditadura; Óscar Carmona,um eminente representante do Estado Novo; Humberto Delgado, um digno opositor da ditadura e finalmente a popular fadista Amália Rodrigues).



Dorothea Lange (1895-1965) - Neto de fazendeiro (1939)


Claro que os excessos retóricos ditirâmbicos, repetidos à exaustão nas televisões e na Imprensa, correm o risco de se desgastar prematuramente. Aliás, eles sabem lá o que é um mito ou um símbolo, e assim banalizam o que, na sua óptica, não devia ser banalizado. Sem disso ter consciência, estes discursos consumidos e a consumirem-nos à saciedade tornam-se aceleradamente lugares vazios, a não ser que uma estranha nostalgia bolorenta dos tempos imperiais do chamado Estado Novo os reanimem. De qualquer modo o quase unanimismo perturba-me e assusta-me. Mas sejamos claros, Eusébio merece ser um símbolo do nosso futebol, nas suas virtudes e nos seus defeitos, o problema está em transportarem o símbolo para o domínio da nação. Calem-se as Musas que outro feito se alteia, sussurrará estranhamente Camões nos Campos Elísios. Mas de facto que importância tem altear a bota e desvalorizar a pena neste mundo de computadores? Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades!

Porém convém, no meio da algazarra, sobretudo não esquecer o menino negro que pôde realizar o sonho de se tornar numa estrela futebolística. É esse jeito de sonhar que deve ficar como imagem de Eusébio. Os mitos são as ficções dos que vão ficando, por enquanto. Nada mais.