terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Os corpos usados e o declínio da sociedade-providência

Goya - Mulher velha

Desde o início do ano foram encontrados 12 mortos nas casas da solidão. Mortes sem sobressaltos, sem direito a notas de ternura de amigos e familiares ou a duas linhas efémeras nas páginas de um qualquer jornal. Mortos no anonimato de quem há muito não tinha nome, nem desejos, nem desilusões, porque mortos em vida. Velhos em ruptura com quaisquer elos sociais, de facto existiam como se não existissem. Condenados a um autismo sem culpa formada, apenas o rumor longínquo de um vago monossílabo recordado pelo comerciante da esquina ou um vizinho ficara deles nas rugas da memória. Claro que morrer é sempre um exercício de solidão, mas estes morreram para os outros como se nunca tivessem existido. Literalmente apagados do mundo dos vivos, ténues manchas diluídas nas páginas do livro da vida. Apenas os seus corpos putrefactos ou mumificados, tudo depende do tempo da macabra descoberta, são a mais-valia noticiosa. E tudo isto está a acontecer tanto no árido espaço suburbano, como no rural, onde as aldeias cada vez mais desertificadas já não têm o vizinho providencial num processo de interajuda. A sociedade-providência está a declinar e o Estado-Providência rudimentar e cada vez mais fragilizado não tem asas para o substituir. A ruptura geracional e a débil sociabilidade lusa, agravada pela crise económico-social, estão, por outro lado, na raiz do problema. Neste mundo de afectos ausentes e de mercantilização dos seres, a esperança média de vida aumentou substancialmente, graças ao progresso da medicina e ao ainda que debilitado Serviço Nacional de Saúde. Mas a dignidade do envelhecer não a acompanhou!


Célia Pena - No seu canto


domingo, 22 de janeiro de 2012

O Carnaval Negro

Ensor - A Morte e as Máscaras (1897)



"Tudo somado [todas as reformas] quase
de certeza que não vai chegar para pagar as minhas despesas"

Cavaco Silva

Nesta conjuntura trágico-cómica a irrisão talvez seja o único modo catártico de encenar o nosso mal-estar. Por isso o nosso douto Presidente teve a sensatez de brincar aos pobrezinhos como a infortunada Rainha Maria Antonieta fizera, em Versailles, no crepúsculo do “ancien régime”, onde num cenário bucólico se comprazia em mascarar-se de moleirinha no seu “Petit Trianon” para gáudio enfarinhado dos seus cortesãos.
Desta feita como a humildade rural já não está na moda, o nosso Cavaco mascarou-se de urbano sem-abrigo, antecipando umas semanas o período do ritual carnavalesco. Num país de pobres cada vez mais pobres como um fado colectivo, o Presidente só podia ser também um pobre, e, embora com  140.000 euros anuais mais as mordomias presentes e futuras  inerentes ao cargo, foi tão longe a sua identificação com o povo que quis sentir na pele postiça o sofrimento dos dois milhões de pobres mais os milhões que estão a vir não tarda. "Ah, ser como vós um espoliado da sorte não o sendo, no meu conforto real de ultra privilegiado". Que bela pedagogia! Assim os pobres de verdade quando se queixam da fome, alimentam-se com as fantasias do ser supremo da nação. Se até ele sofre com as carências, como poderemos nós humildes cidadãos revoltarmo-nos com a nossa triste condição? E é vê-lo num imaginário corrupio a esticar a corda para pagar a continha, salvo seja, da mercearia e da farmácia. O que lhe vale é o mealheiro da sua Maria, previdente como todas as Marias, mais um gesto exemplar de civismo, pois a palavra de ordem é poupar, poupar, até ao tutano, como bem dizia o nosso saudoso Salazar. Contrariamente aos maldosos críticos de tal postura presidencial, eu humilde escriba deste reino do absurdo, te compreendo e apoio. E vou mais longe, porque não uma destas noites abrigares-te com a tua Maria, sempre te aquece os pés, num esconso vão de rua, à beira do teu palácio, cobertos por cartões das tuas garrafeiras, e, num directo televisivo, expores as tuas chagas pelo frio das trevas. Que jeito exemplar de mostrares à troika, às agências de rating, enfim ao mundo (até os chinocas terão pena de ti e por metonímia de todos nós, isto é dos pobres e os em vias de o serem, que dos ricos cada vez mais ricos reza a outra História), até onde vai a capacidade de resgate deste povo. A televisão e a imprensa bem domesticadas, como ajuizadamente defende o teu assessor político, um tal Lima, darão em imagens retóricas o teu gesto magnânimo. O povo ordeiro mergulhado em lágrimas acolherá no seu seio o teu gesto grato e seguirá o teu exemplo: vão-se os anéis, vão-se os dedos, as casas e os arrebiques, todos a dormir na rua que o relento endurece o corpo e a alma. Ou, numa versão neo-realista, são apenas esqueletos e esses não têm frio. E se o apocalipse estiver à porta, podes sempre dizer: “bom povo era apenas uma brincadeira de carnaval; de facto eu vivo num palácio, vocês numa choupana”. E, meu caro Presidente, desculpa-me o atrevimento de te tratar por tu. É carnaval ninguém leva a mal, e tu certamente também não. Um rei sábio o povo fará sábio, mesmo que seja apenas um ritual do entrudo.
P.S. O título foi-me emprestado pelo meu amigo Raul Brandão, que em coisas de farsas trágicas é um perito afamado.