terça-feira, 27 de maio de 2014

Peripécias dum Velho Eleitor Camponês

Ivan Kramskoi (1837-1887) - Cabeça de um velho camponês (1872)


Acomodado no meu velho sofá, com rasgões que dão para afundar as minhas  memórias, olho para o ecrã da televisão doada por um vizinho benevolente, cuja cegueira recente (cataratas, segundo disse) já não lhe permitia sequer entrar nesse mundo de reais ilusões, imaginadas e fabricadas a preceito, ou seja, com a eficácia necessária para manter a atracção do olhar nesse mundo distante que magicamente se tornara uma espécie de nossa segunda casa. O problema eram as constantes faltas de luz na aldeia, e candeia acesa não ilumina ecrãs.
Algumas imagens e vozes fugazes deram-me então a perceber que proximamente deveria ir votar para as eleições europeias, embora eu da Europa só conhecesse o que as televisões episodicamente me mostravam e eu era capaz de entender, ou aquilo que um companheiro rural, ex-emigrante em França, me contara desses mundos fabulosos, donde segundo percebera tinha vindo dinheiro a rodos para encher a pança dos portugueses, ou, na versão avermelhada, por isso suspeita, de outro velho resistente da aldeia, de alguns portugueses, os privilegiados do costume. Na minha aldeia, último refúgio de reformado viúvo com poucas posses, viviam já apenas 6 habitantes tão enferrujados como eu. O que sabia dos partidos limitava-se à algaraviada televisiva, isto é, um modo de dizer, pois,  homem do Norte, pouco sei dessas expressões sulistas, talvez memórias escolares me suscitem tal expressão. Sabia que havia o Passos e o Portas, o Seguro e os comunas e pouco mais.
Embora com as pernas entorpecidas, tomei nota do dia do voto e decidi cumprir o meu dever cívico, como o meu filho me ensinou a dizer. O problema estava em quem votar, ou ainda pior como poderia chegar ao local de voto,  a uns bons 10 quilómetros de distância. Fiz das tripas coração e aventurei-me à caminhada árdua com a ajuda da sempre amistosa bengala. E pensei que talvez durante o sinuoso (palavra lida no Borda d'Água)  percurso me surgisse a iluminação de uma escolha sensata. Por experiência recente, apenas sabia que o partido do Passos no poleiro me reduzira a parca reforma de feitor, com 70 anos de labuta no campo. Por isso, contrariando o conselho do padre, que mensalmente visitava a aldeia (actualmente nem isso, porque o rebanho era demasiado reduzido para tão longa viagem), decidi secretamente, não fosse o diabo tecê-las, mudar o sentido do meu costumeiro voto laranja.
Mas que teria tudo isto a ver com a Europa? Dizem os do poleiro que nos endividámos com tantos velhos e velhas (sobretudo velhas que teimosamente duram eternidades), calões e estropiados a esmolas do Estado e estradas a perder de vista. e que a santa Europa usurária, palavra douta ouvida a um adepto da oposição, logo se prestou a emprestar o carcanhol. Pouco mais sabia. Mas desta vez, contas feitas, a reforma mal dava para a boroa, ora bolas para os laranjas que assim  me pagavam décadas de fidelidade, pensei com os meus botões coçados. Não pedi conselhos ao meu filho, a viver em Lisboa, pois sabia das suas tendências demasiado comunistóides para meu gosto, efeitos certamente de más companhias, e, além do mais, o meu rendimento não dava para fazer telefonemas a despropósito.
No dia aprazado, cheguei exausto, palavra desnecessária tendo em conta a lonjura e a idade, à vila onde estava recenseado. Pediram-me o bilhete de identidade e deram-me um papel com as siglas dos partidos. Aí começaram as minhas aflições, pois tantos eram os emblemas em presença. Eu bem procurei o rosa, incitado à última hora  por um conterrâneo partidário do Seguro. Mas nada. Seria dos meus olhos turbados? Pensei então em fechar os olhos e atirar a cruz, Deus me perdoe, ao acaso para o bafejado quadrado. Ou então, como em miúdo,  entoar uma cantilena para esvoaçar o voto ao sabor da sorte. Com tanta hesitação, o tempo foi-se prolongando demasiado no "escondidinho" do voto, e não me livrei, pensei eu, da suspeição de sabotagem aos olhos dos senhores da mesa. Nos tempos que correm, nunca se sabe! Atirei às cegas, embora com o risco de acertar no tal Passos que me encolhia o tempo da sobrevivência ou nalgum partido vermelho. Pior a emenda que o soneto! Mas, quando abri os olhos, verifiquei com terror que a cruz estava fora dos quadrados, fora dos quadrados de todos os quadrantes. Com suores frios ou quentes, já nem me lembro, coloquei então velozmente uma cruz em todos os quadrados, não fosse o meu atraso ter terríveis consequências europeias. Dobrei o papel conforme a Lei e coloquei-o na respectiva urna, palavra de mau gosto para tal cerimónia, diga-se em abono da verdade. Lá regressei a casa, mancando cada vez mais, mas feliz porque tinha cumprido o meu dever cívico. A Europa iria certamente agradecer-me pelo acto, só espero ainda estar vivo para receber a justa recompensa.


Ivan Kramskoi (1837-1887) - Retrato de um velho camponês com muleta (1872)