terça-feira, 31 de maio de 2011

As Metamorfoses da Mulher na Pintura (video de P. Scott Johnson)

Botticelli - O Nascimento de Vénus (pormenor)

Cada poema,
no seu perfil
incerto
e caligráfico,
já sonha
outra forma.

"Lavoisier" - Carlos de Oliveira


O rosto é o espelho da alma, diz-se na simplicidade metafórica do senso comum. A pintura soube exprimi-lo como nenhuma outra arte, de diversos modos segundo os modelos regulados pelo tempo histórico e os seus códigos específicos.
Nesta montagem de P. Scott Johnson são rostos femininos juvenis, ora na sua epidérmica espontaneidade, ora na profundidade e mistério de cada figura. O rosto é o espelho da alma, bem sabemos, por vezes transparente, outras a turvar numa nebulosa o nosso olhar.
Há também rostos a esconder num hermetismo singular o corpo da alma. Outras vezes, a alma é uma aura à superfície dos lábios, dos olhos, da pele, das maçãs do rosto.
Rostos dispersos na nossa memória cultural, sinais tatuados de traços e manchas a simularem o arquétipo da beleza feminina (Vénus), ou a interrogarem-nos na sombra do nosso desconhecimento e das nossas dúvidas (as máscaras). Esfíngicas, torturadas ou simplesmente expostas à avidez do nosso olhar.
Rostos em metamorfoses sucessivas, ingénuas, enigmáticas, sedutoras ou íntimas, com os seus artefactos (o ondulado dos longos cabelos, os lenços, os brincos ou os chapéus), sussurram-nos em ondas de prazer a fugacidade das figuras a diluirem-se numa alteridade imprevisível, como se cada rosto já sonhasse outra forma.
Neste jogo de mutações, os rostos femininos são na sua diversidade um modo de nos perdermos oniricamente nos labirintos da História da Arte, do gótico à modernidade. Ou então, de nos reencontrarmos com a essência plástica da beleza feminina, numa tensão entre a diversidade e a unidade, para lá das suas variações de pose, tempo e lugar.
Corpo habitável e transitório do nosso desejo, virtualizado pelas sucessivas narrações da mão do tempo.



Agradeço ao meu amigo José Movilha o facto de me ter dado a conhecer este video.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades


Courbet - O Sono (1866)

Numa esplanada de um café de Colares, na mesa ao meu lado estavam seis raparigas, entre os 16 e18 anos, provavelmente estudantes do Secundário. Entre elas destacava-se uma jovem de cabelo rapado à garçon  não só pelo aspecto um tanto masculinizado, mas também pelo modo quase provocatório como exibia o seu assumido lesbianismo. Para além da ousadia com que tentava beijar as suas companheiras, com o ambivalente gáudio destas que subtilmente escapavam aos seus ataques, também enunciava as suas narrativas eróticas, frontalmente  e  a bom som, sem qualquer pudor. Além de referir as suas aventuras  amorosas, com alguns pormenores íntimos, falava das suas relações com os pais. Contrariamente ao pai que teria tentado contrariar as suas tendências, já a sua mãe ter-lhe-ia confessado o prazer único retirado de uma relação ocasional com uma colega de trabalho. No jogo exuberantemente ensaiado, confessava o seu fascínio prematuro pelas parceiras do mesmo sexo, as suas conquistas e até algumas relações fortuitas com diversas jovens, gabando-se ”virilmente” dos prazeres usufruídos com tais práticas. Uma das companheiras, para evitar equívocos, chegou mesmo a informar as presentes de que tendo dormido uma noite com ela, se vira obrigada a corrê-la da cama e a pô-la a dormir no chão. Ou a  sugerir-lhe uma amiga bissexual , com a qual poderia ter todo o êxito.
No intervalo dos seus avanços não correspondidos, criticava as suas companheiras, feitas tolas pelos interditos sociais, por não serem capazes de gozar as verdadeiras delícias da sexualidade lésbica. Tudo isto se ia desenrolando em plena galhofa colectiva, como um espectáculo de que o único espectador forçado era eu.
O erotismo perdia nesta situação o seu espaço de intimidade, como se o jogo da voz e dos gestos, enquanto expressão pública da libertação dos interditos, fosse uma condição da sua própria realização.
Enquanto “voyeur” deste ritual, lembrei-me dos tempos em que a exibição verbal das glórias eróticas eram apenas privilégio masculino, mas nesta democratização sexual em curso a fala confunde-se com o falo, o acto com a sua expressão verbal. E quem não quiser ouvir por preconceito ou recato puritano pode sempre fixar os olhos e os ouvidos,  em pleno cenário bucólico, nas águas e nos patos da ribeira de Colares.
Mas não sejamos hipócritas, sempre houve um ambivalente fascínio masculino pelos amores lésbicos. Os corpos na dança dos desejos como os anjos não têm sexo.  Esta cena insólita, no entanto, estava mais perto de uma farsa adolescente do que de uma configuração estética do erotismo. Mas cada um/uma tem o direito de brincar ao amor como sabe e pode. As vontades mudaram as modalidades do desejo sexual e a palavra poderá voar lúbrica e liberta no trânsito entre o privado e o público. A cada um/uma cabe saber os limites da transgressão do recato.




Lempicka - As Raparigas (1928)



   

terça-feira, 17 de maio de 2011

Do Declínio à Reinvenção de uma Nova Ruralidade (4)


Célia Pena Alves - Festa da terra
 O regresso ao campo pode ser, por enquanto, uma aventura de minorias, como mostra o excelente documentário televisivo (2009) com tal título, de Paulo Silva Costa. Mas até as novas tecnologias podem hoje possibilitar que certas actividades, através do teletrabalho, se possam exercer no distante mundo rural, mantendo-se o vínculo com uma empresa sediada na capital.
Gostaria de evocar, como arquétipo de fuga ao mundo urbano, o historiador Alexandre Herculano que, cansado das intrigas políticas da capital onde sempre viveu, se refugiou em Vale de Lobos, em 1867, e aí passou a produzir um excelente azeite. É um modelo para todos aqueles que, cansados da vida citadina, procuram reencontrar-se em sintonia com os ritmos da natureza. A renovação do mundo rural passa pelos jeitos, gostos e sonhos de cada um, dos que ficaram, dos que regressaram e dos que o experimentam pela primeira vez.
Talvez o meu despretencioso comentário seja idílico ou nada acrescente de novo, mas confesso, enquanto lisboeta, criado no burburinho das Avenidas Novas, que o que de mais belo ficou no imaginário da minha infância se deve às longas férias de Verão em casa do meu avô João Pena, em Vila Franca das Naves, onde me podia libertar da prisão do meu andar da Duque d´Ávila e, em correrias tontas, sentir o rumor da terra ou a vermelhidão do céu crepuscular ou os odores inesquecíveis da aldeia dos meus antepassados.
Célia Pena Alves - Queimada
Vamos todos fazer um esforço para reerguer Portugal e, sobretudo, não deixemos que se repitam casos como o da linha do Tua, deixada progressivamente ao abandono e em breve alagada pela futura barragem que produzirá apenas mais 0,07 da energia eléctrica que consumimos. Para além do desrespeito pelas populações do Nordeste transmontano, que bela e lucrativa rede ferroviária se perdeu, bastava apenas melhorá-la e promovê-la turisticamente, como se faria em qualquer país da Europa, preocupado com conservação do seu património histórico, que é também um pólo de atracção turística.
Num outro plano, calcula-se que existam mais de 2 milhões de hectares de terras abandonadas com aptidão agrícola, com situações aberrantes apoiadas pelo poder municipal, tal é o caso da zona rural do concelho de Sintra, onde a Media Capital vai construir uma hollywoodesca Cidade da Imagem, numa área de 200 hectares inseridos na Reserva Ecológica e Agrícola. Nada me move contra esta megalómena cidade do cinema e das telenovelas, mas não haveria outro local para a implantar?
Há outros maus exemplos de reactivação do mundo provinciano, tal é o caso da dita praia marítima de Mangualde, como se o Interior não tivesse valores próprios e tivesse necessidade para se promover de macaquear o litoral. Também em Ferreira do Alentejo, na Quinta de S. Vicente, um olival premiado internacionalmente por produzir o melhor azeite do mundo, será cortado ao meio pela A26 (Sines-Beja), indo perder 6000 oliveiras. Note-se, aliás, como é possível que, num país que precisa urgentemente de exportar, tal traçado rodoviário venha prejudicar uma empresa que vende 90% da sua produção ao estrangeiro.
Célia Pena Alves - Memórias
 Há, por outro lado, iniciativas exemplares, seja de pequena ou média dimensão, de norte a sul do país. Citemos apenas algumas: na aldeia de João Bragal de Baixo, a Manuela e o Eugénio, ambos licenciados, deixaram o Porto, onde trabalhavam, e abriram as Casas do Bragal, um excelente restaurante com cozinha regional criativa. Este projecto que durou uma década, infelizmente, não correspondeu totalmente às expectativas do casal e entretanto foi abandonado. Em Sara Mora (Miranda do Douro), um pequeno grupo de veterinários revitalizou a criação de burros à beira da extinção em Miranda, e com isso deram nova vida à aldeia que no último ano recebeu milhares de visitantes. Um artesão de Dominguiso (Fundão), depois de uma experiência lisboeta frustrada, regressou à aldeia, onde desenvolve um trabalho de restauro e fabrico de móveis em castanho (velho e novo), sendo ao mesmo tempo um santeiro de qualidade. Em Foz Côa, o museu recebeu no último ano cerca de 30.000 visitantes, confirmando as expectativas em torno do valor patrimonial das gravuras rupestres. Mértola renasceu com a actividade museológica, onde se cruzam diversos objectos e espaços civilizacionais, e é bom lembrar que o seu impulsionador foi um beirão chamado Cláudio Torres.
 Em S. Teotónio (Alentejo), um produtor francês implantou o maior bambuzal da Europa, exportando para todo o mundo. Em Idanha-a-Nova, na busca de novas centralidades, desenvolvem-se projectos de ecoturismo, de agricultura biológica, de pecuária e lacticínios, com a colaboração de instituições do Ensino Superior. No Alto Alentejo, a Fertiprado, única empresa da Península especializada em prados e sementes, com a cultura de pastagens biodiversas, ganhou o prémio BES Biodiversidade.
Célia Pena Alves - Sobrevivente
Conforme defende, aliás, Gonçalo Ribeiro Telles, não há plano de desenvolvimento sustentável sem a agricultura, pelo que querer reduzir os activos agrícolas a 3%, é simultaneamente um erro económico e paisagístico. A paisagem é também uma construção humana, por isso não deve haver uma fronteira rígida entre o mundo rural e o urbano. O turismo no mundo rural será uma componente importante da renovação do Interior, mas sem um novo ordenamento florestal que coabite com a polivalência das actividades agrícolas e a pastorícia não há paisagem mas terra queimada, algo pouco motivador para turistas.
Mesmo nas áreas urbanas, há também indícios de mudança de mentalidade relativamente às actividades agrícolas, sejam as hortas sociais urbanas, sejam as experiências das hortas pedagógicas. São sintomas da necessidade de uma nova relação de amor com a terra. Em tempo de crise, como a actual, começa a ser consensual, embora tardiamente, entre as nossas elites políticas, a necessidade urgente de revitalizar as actividades agrícolas. Para além do paradigma económico-político, urge mudar o paradigma cultural dominante.
Como Almeida Garrett afirmaria significativamente, “Quanto mais nacional, mais estreme e puramente nacional é uma obra, mais agrada aos próprios estrangeiros, mais segura está de se generalizar e ser conhecida […]. O que não tem cor nacional, o que pode ser para todos, é o de que todos fazem menos caso” (Romanceiro, 1843-51).
Um mundo globalizado pode paradoxalmente conviver com a riqueza específica de cada região e a perda da diversidade cultural tornará certamente o mundo mais pobre. E ter uma terra, ter um chão, é ter uma identidade. E em contraste com o ruído da grande cidade, saibamos apreciar a beleza do silêncio.


Célia Pena Alves - Simbolismo


segunda-feira, 16 de maio de 2011

Do Declínio à Reinvenção de uma Nova Ruralidade (3)

Estátua de Bandarra, em Trancoso
Em regiões como Trancoso, sobretudo na chamada zona quente (compreendendo uma franja meridional que se estende entre Aldeia Nova e Maçal da Ribeira, e outra, a nascente, entre esta última localidade e Cogula-Cótimos), há que reactivar a cultura do olival, da vinha, da fruticultura, da horticultura e reflorestar com sobreiros, medronheiros e eventualmente com pinheiro-manso (para a produção de pinhão). Enquanto, na zona fria, que abrange a restante área municipal, poder-se-ia continuar a investir nos soutos, na pecuária em manadio extensivo e na florestação com folhosas como o carvalho-negral e o carvalho-roble (ou carvalho-alvarinho). Ainda do ponto de vista florestal, o concelho podia, a médio-longo prazo, especializar-se na produção de madeiras nobres (carvalho, etc.), de cortiça e na produção de desperdícios lenhosos para as centrais de biomassa. Que me perdoem os especialistas estas sugestões de um diletante na matéria em causa!
É de ressalvar também a importância da promoção da actividade cinegética, no quadro de um turismo da natureza. Neste âmbito, seria também pertinente a definição de roteiros pedestres na área rural do concelho, atraindo turistas que optam pelo prazer de percorrer os campos, através do contacto físico com a terra e a sua fauna e flora – os chamados caminheiros, também associados ao turismo sénior.
Solar dos Brasis - Torre do Terrenho, Trancoso (séc. XVIII) 
 No que diz respeito ao turismo cultural, Trancoso com o seu imponente castelo e muralhas medievais, urbe da tradicional ”raia seca”, respira História em cada uma das suas pedras. É terra de míticos heróis como o Magriço evocado por Camões, de um sapateiro-profeta, Bandarra de seu nome, que é simultaneamente matriz premonitória do sebastianismo e do Vº Império do Padre António Vieira, e está associada a essa figura miraculosa da Rainha Santa Isabel que tinha a inspiração divina de transformar as rosas em pão. Desde a Reconquista, passando pela guerra da sucessão com Castela (1383-85) ou pelas vivências atormentadas dos judeus perseguidos pela Santa Inquisição que deixaram nas suas judiarias sinais crípticos da sua presença, até às invasões francesas, quantos roteiros históricos se podem escrever como modo também de revelar a alma da urbe. Neste aspecto, é de relevar a investigação da historiadora Carla Santos no domínio da identificação do património judaico de Trancoso ou a elaboração de um roteiro das marcas judaicas na cidade e a criação de um Centro de Interpretação da Cultura Judaica, promovidos pelo município. É de evocar também, no âmbito cultural, o escritor Gonçalo Fernandes Trancoso (séc. XVI), o primeiro contista português, no cruzamento dos novelistas italianos e da nossa tradição oral, hoje bastante esquecido, sendo por isso pertinente organizar colóquios sobre a sua figura e obra.
E haverá ainda verbas municipais para recuperar algumas casas típicas beirãs das aldeias em redor, com as suas varandas em madeira, como as representadas em alguns quadros da Célia? E quanto ao turismo termal, não poderia a Câmara de Celorico dinamizar a reactivação da estância termal de Santo António de águas sulfúrico-sódicas, por exemplo em colaboração com a Universidade da Beira-Interior? Ou ainda, no âmbito da Escola Profissional de Trancoso, não se poderiam criar cursos mais orientados para o estudo do património da cidade, do turismo cultural e de natureza ou das actividades agrárias?
Célia Pena Alves - Indecisa
Tem, pois, Trancoso virtualidades que podem activar um turismo cultural, associado ao seu património monumental e natural – um verdadeiro lugar de reflexão e contemplação. Aqui “temos tempo” – para usar a expressão que intitula o atelier da escultora e pintora Maria Lino, no Feital, uma filha da terra que, depois da sua longa aventura urbana, regressou à aldeia natal, onde mantém a sua actividade criativa individual e em colaboração com outros animadores fundou a Luzlinar – nome de poema que lhe foi dedicado pelo poeta Alexandre O´Neill. Esta Associação é um bom exemplo, no plano cultural, da capacidade de ao mesmo tempo fixar e dar a conhecer antigas tradições locais e polarizar com Simpósios Internacionais uma interacção entre a acção estética visual e o espírito do lugar, bem expresso nestas palavras de Sant´Anna Dionísio, no Guia de Portugal: “A meia distância, vista de qualquer lado, Trancoso surge como uma verdadeira e imprevista praça de armas da Idade Média que tivesse sido deixada num descampado, por esquecimento do tempo. Quem se dispuser a procurar com vagar os perfis dos seus muros e a respirar a sua estranha atmosfera planáltica, bem preencherá um dia”.
Teja - Trancoso
 A contemplação é o olhar sobre o outro sem o sentimento da posse. É uma quase fusão mística entre o sujeito e a paisagem.
Num mundo globalizado, cada vez mais uniformizado, é muito importante relevar o que de mais original cada região pode conter. E Portugal, apesar da pequenez do seu território, possui uma diversidade regional notável, tanto no plano paisagístico como nos gestos da tradição. Com vontade e imaginação, é possível dinamizar um turismo vocacionado para as magníficas paisagens do Interior com a sua fauna e flora específicas, para o seu património monumental e sua História, para as suas tradições gastronómicas e artesanais ou para o seu genuíno folclore.
Houve obviamente factores que, no plano do imaginário colectivo, têm contribuído para uma diluição dessa diversidade, tal o caso da televisão que, durante décadas, vem difundido um paradigma urbano de moral e de modos de vida, dando do mundo rural ora uma imagem miserabilista ora grotesca. Algo que felizmente vem lentamente mudando, com a relativa reabilitação do mundo rural, sobretudo em função de alguns documentários que narram a opção de urbanos que procuram no refúgio da natureza um novo modo de vida. Também as telenovelas de grande consumo popular, de um modo geral, contribuíram para a disseminação de hábitos urbanos, um ethos facilmente universalizável, mas implicando normalmente uma distorção das realidades urbana e rural. Caricaturalmente, na novela Laços de Sangue, actualmente em exibição, uma jovem rural alentejana escapa para Lisboa, em busca do mundo povoado de Centros Comerciais e pretende mesmo libertar-se do seu sotaque alentejano. Mas a contra-corrente desta tendência, segundo noticiam as revistas da especialidade, uma conhecida actriz de novelas decidiu deixar a agitação da capital e instalar-se em Nelas com a família, onde admite vir a criar uma escola de teatro para crianças. São obviamente sinais ténues de uma mudança de atitude relativamente à rejeição do chamado Interior.
É portanto urgente requalificar esse património, não deixar morrer as nossas aldeias quase desertificadas e relativamente àquelas que estão em ruínas reconstruí-las para o turismo rural ou outras finalidades, envolvendo, por exemplo, actividades no domínio da agricultura biológica ou do agroturismo. (cont.)


Célia Pena Alves - Vindima


sábado, 14 de maio de 2011

Do Declínio à Reinvenção de uma Nova Ruralidade (2)

Célia Pena Alves - Mulher curvada
A partir da segunda metade do século passado, o mundo rural foi-se desertificando, com a migração das populações rurais do interior para a zona litoral do país ou para o estrangeiro, em busca de melhores condições de vida, já que a terra em vez de mãe fora-se tornando madrasta. Com a migração camponesa e o abandono da pastorícia vieram os fogos florestais, resultado da ausência de ordenamento da floresta e da opção pelas manchas de resinosas e eucaliptos em zonas quentes, matéria-prima das fábricas de celulose, eliminando-se a biodiversidade ou a prevenção que pressupõe a limpeza regular das matas e a abertura de corta-fogos.
Calcula-se que hoje dois terços da população portuguesa viva na faixa litoral, entre Viana do Castelo e Setúbal, sendo as Áreas Metropolitanas de Lisboa e do Porto aquelas que atraem a maioria da população migrante, uma tendência que apenas é nova no plano da quantificação, já que a macrocefalia portuguesa é fenómeno com séculos. Lisboa tem sido ao longo da nossa História, sobretudo a partir do séc. XVI, o centro político, administrativo e económico do país. Faltam-nos cidades intermédias com determinada dimensão económico-social, embora a instalação de pólos universitários ou politécnicos em capitais de distrito tenha sido aí um factor de dinamização cultural. Por outro lado, entre 1960 e 1974, calcula-se que teriam emigrado, sobretudo para a Europa, um milhão e meio de portugueses, na sua grande maioria dos meios rurais, o que também contribuiu para uma profunda alteração estrutural do Interior e da sua paisagem, com o abandono da agricultura, sobretudo a familiar, e a progressiva degradação arquitectónica das nossas aldeias. Os emigrantes da primeira geração quando regressavam à sua terra natal tendiam, como forma de ruptura com o passado, a construir inóspitos casarões sem qualquer relação com a tradição, algo que se foi alterando com a segunda e terceira gerações que, com uma nova mentalidade, começaram já, em algumas regiões, a reconstruir as velhas casas familiares seguindo a traça tradicional. Mas, em muitos casos, a degradação foi irreversível, pois muitos emigrantes da primeira geração acabaram por se fixar definitivamente no estrangeiro, e por aí ficaram essas monstruosidades em betão em processo acelerado de decomposição. O concelho de Trancoso, por exemplo, em 1960, tinha 18.224 habitantes, enquanto, em 2004, este número descera para 10.639. Notando-se, por outro lado, um envelhecimento progressivo da população e a manutenção de índices de analfabetismo elevados. Em 2001, a sua taxa era de 17.9. Quanto ao número de desempregados seria, no mesmo ano, de 213.
Célia Pena Alves - À esquina
A oposição Litoral/Interior foi-se, pois, acentuando até aos nossos dias, apesar das novas rodovias que viriam aparentemente facilitar as acessibilidades entre as duas polaridades geográficas. Porém, “A orientação actual das auto-estradas e das principais vias de comunicação, polarizada pelas maiores cidades, e sobretudo por Lisboa, só vem agravar as dificuldades de estruturação à escala da província. Para quem tenha de utilizar os transportes públicos e não possa percorrer as vias transversais de automóvel, é geralmente mais difícil comunicar entre regiões relativamente próximas do que chegar a Lisboa.” (Portugal – O Sabor da Terra, de José Mattoso, Suzanne Daveau e Duarte Belo - p. 339). Esta aposta num planeamento rodoviário que desprezou o melhoramento das estradas secundárias, e o pouco investimento nas linhas de caminho de ferro ou o abandono de outras foram factores que em nada beneficiaram o Interior, enquanto se promovia a construção de duas auto-estradas paralelas entre Lisboa e o Porto.
 O envelhecimento demográfico, as alterações nas práticas agrícolas decorrentes de novos modos de produção após a nossa entrada na actual União Europeia, com negociações que prejudicaram substancialmente a nossa pequena e média agricultura, vieram acentuar os fenómenos de desertificação do Interior, devendo-se ter ainda em linha de conta o fecho recente de escolas, de transportes públicos, de postos de correio, de serviços de saúde etc., numa galopante centralização, justificado, no entanto, por razões operatórias e economicistas.
O Eldorado urbano, há décadas, um mercado de trabalho apetecível, tornar-se-ia um lugar de eleição para todos aqueles que no mundo rural não tinham grandes horizontes de expectativa. Os subúrbios de Lisboa e do Porto cresceram então caoticamente, sem qualquer critério de ordenamento do território. A qualidade de vida nos grandes meios urbanos foi-se deteriorando nas últimas décadas, acentuando-se o stress quotidiano em caóticos engarrafamentos entre a habitação e o local de trabalho, com transportes públicos deficientes, obrigando à irracional utilização do automóvel A poluição, a quase ausência de espaços verdes convenientemente tratados, a insegurança nas ruas, o caos urbanístico, as horas diárias perdidas entre a morada e o trabalho, tornaram a vida nos subúrbios de Lisboa um autêntico inferno quotidiano. Entretanto o centro de Lisboa foi-se desertificando, pois a cidade foi perdendo habitantes a favor dos subúrbios, onde as casas eram muito mais baratas. As vantagens de viver numa metrópole, por exemplo nos planos hospitalar, da oportunidade de emprego ou da oferta cultural, entre outros, convivem, portanto, com uma existência quotidiana com pouco tempo para cada um usufruir a vida com plenitude. Aliás, os casos de solidão de idosos tornaram-se um verdadeiro problema social, mais grave do que no mundo rural, já que os idosos no campo estão mais inseridos na comunidade, onde ainda funciona a sociedade-providência com a inter-ajuda entre vizinhos, são mais activos e autónomos e não sofrem do medo inerente à insegurança das ruas dos subúrbios citadinos.
Célia Pena Alves - No adro, todos os dias
Muitos dos que abandonaram as suas terras de origem regressariam certamente, caso houvesse oportunidades no plano empresarial. Talvez a actual crise económico-social possa contribuir para uma progressiva alteração da tendência migratória para as metrópoles, desde que se criem modos de vida alternativos no mundo rural, o que pressupõe uma alteração do paradigma cultural, implicando sobretudo a reabilitação económico-social da actividade agrícola e a dinamização do turismo de natureza. Os 700.000 desempregados, localizados sobretudo nas grandes urbes, ou mantêm um ciclo emigratório para o estrangeiro, embora as condições actuais sejam adversas devido à crise internacional, ou terão de repensar o seu modo de inserção no tecido económico-social. Alguns certamente poderiam regressar às suas terras de origem, desde que aí encontrassem trabalho, seja em actividades tradicionais, entretanto desprezadas como a agricultura, seja no aproveitamento das potencialidades paisagísticas (naturais ou monumentais), gastronómicas ou artesanais das suas zonas de origem. O mundo rural pode ser uma alternativa em tempos de crise para desempregados e pensionistas com reformas reduzidas, como já está a acontecer na Grécia. Entre nós, poderia, portanto, também ser uma solução viável para todos aqueles que, sem actuais perspectivas de emprego ou simplesmente fatigados com o desgaste da vida citadina, aí encontrassem um novo rumo para as suas existências.
No que concerne à agricultura, sector que urge revitalizar em novos moldes, é, com imaginação e uma adequada articulação entre as culturas e a morfologia dos solos ou as condições climatéricas, uma área económica que pode ressurgir e interessar muitos dos nossos actuais desempregados, sobretudo nos domínios da fruticultura e da horticultura. O país não pode continuar a importar mais de dois terços dos produtos alimentares que consome. Há, por exemplo, que investir também na agricultura biológica ou em áreas específicas como a produção de ervas aromáticas condimentares e nas plantas silvestres alimentares ou medicinais ou mesmo na produção de plantas decorativas. (cont.)

terça-feira, 10 de maio de 2011

Do Declínio à Reinvenção de uma Nova Ruralidade (1)

Com Travo a Mosto

A análise das telas da exposição "Liturgia da Terra", de Célia Pena Alves, inaugurada em Trancoso no passado dia 8 de Maio, suscitou-me uma reflexão sobre os fenómenos do envelhecimento demográfico e da desertificação do Interior, e os novos modos de regresso à terra, enquanto possíveis factores de revitalização do mundo rural. A extensão do texto obrigou-me a dividi-lo em várias sequências que serão publicadas posteriormente.


Nas telas de Célia Alves sobressai simultaneamente um olhar crepuscular e nostálgico sobre o mundo rural tradicional, onde a comunhão dos camponeses com a terra tem uma dimensão sacral. São gestos que participam de uma memória colectiva comunitária, como que a transcender o tempo histórico. Cada figura, sobretudo as femininas, velhas camponesas, frequentemente de rosto oculto, é o paradigma de uma relação maternal com a terra, a evocar as divindades femininas telúricas, como as dos gregos primitivos: Deméter, Geia ou Reia. São os arquétipos da terra-mãe, da natureza com os seus ciclos e da terra cultivada e fecunda a perdurarem no inconsciente colectivo da humanidade.
Bago a Bago
Os seus quadros não são um mero acto contemplativo e narcísico, mas uma perspectiva que assinala ao mesmo tempo o reconhecimento grato desse outro social, o que pressupõe vivências autobiográficas desse mundo campestre, e um acto de ternura por esses seres cuja vida é sobretudo ritmada pelos ciclos da natureza e os das sementeiras e colheitas. Para lá da comunidade onde se inserem, o seu diálogo silencioso é com a terra, interlocutor incessante das suas vidas até à morte.
O pendor mais simbólico do que realista da sua pintura, sejam os povoadores ou a sua paisagem, confere uma perenidade a estas imagens que faz delas uma liturgia telúrica não totalmente redutível a uma mera mundividência sociológica. Há como que um residual incólume ao trabalho do tempo socio-histórico, por isso são figuras de uma sacralidade telúrica a ritualizar a união gestual do camponês com a terra.
Mas, apesar disso, a sua pintura é também susceptível de uma leitura sociológica, no plano da desertificação do Interior. (cont.)

Arte no Cabelo