domingo, 30 de outubro de 2011

O Pássaro e o Índio Velho





Dos raros textos autobiográficos que Alves Redol (1911-1969) nos deixou, salienta-se o “prefácio” de 1966 à tragédia Forja. Interveniente num movimento literário, o Neo-Realismo, que despontou em fins da década de 30, globalmente identificado com o “mundo dos outros” e a sua gesta colectiva, parece ter-se esquecido de falar de si, embora se saiba que o discurso sobre a alteridade é sempre um modo de revelação do sujeito da enunciação. Por isso, este texto com um relevante pendor poético parece ser uma quase excepção no conjunto da sua obra. Humildade instintiva ou forjada crença ideológica segundo a qual “os olvidados da literatura” deviam ter um lugar primordial na cena das estórias e da História? Daí o apagamento do “eu” e a exaltação do “outro”, ainda que a construção romanesca do “outro social” fosse também uma metamorfose dos sonhos e decepções do autor. Mas, neste texto, lemos Redol a confrontar-se com o trabalho do tempo e a descodificação das suas marcas no seu próprio corpo. Aqui o tempo individual coexiste com o tempo colectivo: “ Agora começo a parecer-me com um pássaro, descobri-o ontem no perfil de uma fotografia. Meio pássaro, meio índio velho, raízes à superfície das mãos que tanto amor inventaram, tanto rosto, e tanto, vincos de apetecer, penas de pássaro cansado de ninho e sem ninho, penas de sonhar, quase uma ruína, ou mesmo uma ruína, e na qual ainda vibra a mesma semente de juventude, pronta a reverdecer a qualquer hora, como as cordas de um instrumento onde a vida passa os dedos para me ressuscitar. Encosto o rosto à terra seca destes cinquenta e quatro anos e oiço o tropel do que lá vai, e invento o tropel do que há-de vir já amanhã, sempre amanhã, como se a semente enforcada nas pedras da ruína soprasse numa tuba de flores calejada de poesia e de amargura. Calejada de suor e de magia. Todas as manhãs recomeço a vida, como se nas grutas da memória nem um traço sequer me lembre a passagem do que já aconteceu.”
Magritte - Perspicácia (1936)
Na imagem fotográfica a ver-se simultaneamente o outro e o mesmo – a cristalização do tempo e o desejo da permanente reinvenção. O duplo no artefacto estético é sempre uma fonte de estranheza e até de hostilidade, na tradição romântica ou na versão posterior de Oscar Wilde. Mas cada vida pode ser também uma sucessão de mortes e ressurreições. Não vale a pena apagar as rugas da memória, aliás fazê-lo é um mero simulacro. O importante é manter a criança interior (o pássaro) que pode sobrepor-se à máscara do tempo (o índio velho), embora as imagens fotográficas nem sempre captem essa pulsão interior. É uma questão de ângulo de visão e de sensibilidade do fotógrafo. E o futuro é essa miragem do desejo eternizado.
Como diria Mestre Feliciano da Barca (Avieiros): “A gente traz o pássaro dentro de si, mas deixa-o fugir muitas vezes. Muitos deixam-no fugir à nascença. Esses ficam como pedras… Piores do que as pedras. São poucos os que voam com o pássaro.” Árduo mas possível é esse convívio do índio velho com o voo do pássaro. Depois as palavras inscritas nos rumores do tempo aí ficarão como testemunho dessa tensão entre as pedras da ruína e o voo da semente.


Lima de Freitas - Retrato de Alves Redol (1952)

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Indignados



Jan van Eyck,, "A Adoração do Cordeiro Místico (painel central retábulo de Gent)", 1432 




Hoje acordei com o corpo vazio. Talvez a falta do Verão que não tive, ocupado a escrever um livro. Esqueci-me do calor meridional, envolto nas neblinas persistentes da minha aldeia numa colina a ver-o-mar. O calor veio tarde, outoniço a saber a Verão – a desordem das estações ou a nova ordem das estações. Tanto faz!
Na Líbia, mataram o tirano, em jeitos perversos; as imagens dizem tudo. Os seus ex-amigos do Ocidente agradecem, não fosse ele dar com a língua nos dentes e fazer algum sangue a espirrar-lhes o rosto de petróleo. Na Europa, políticos sem jeito não sabem como degolar o cordeiro na Acrópole. Afiam-se as facas dos senhores do mercado. Jovens por todo o ocidente instalam-se nas praças, outros menos jovens também manifestam a sua ira. Mas todos parecem estar sem rumo. Os velhos partidos de esquerda perderam a capacidade de aglutinação. O corpo colectivo em movimento sabe o que não quer, não o que quer. Eu também estou indignado. Com o Verão que não tive, com os meus governantes que aumentam o orçamento das forças de segurança, mas reduzem substancialmente o da saúde ou o da educação ou o da cultura, e sobem delirantemente os impostos. Em nome da sagrada austeridade, do equilíbrio financeiro, do pacto com a troika, lá vamos todos no engodo. Daqui a dois anos, depois desta caça inglória ao já depauperado ”tesoiro popular”, estaremos nas vascas como os helenos.
Mas, para gáudio dos descrentes, a animar a soturna festa, os polícias e os militares também estão indignados com o “bando de incompetentes que nos desgovernam”. Estes e os anteriores que contrariamente, o ciclo era outro, acicatavam os apetites consumistas do povo ou se deslumbravam com os infinitos quilómetros de auto-estradas, algumas apenas percorridas por fantasmas ou pedras rolantes. Assim se retalhou a paisagem e se acelerou o despovoamento do dito interior. Ficaram apenas alguns resistentes sem ferrovias ou transportes alternativos. São velhos, pouco consomem, pouco votam. A ordem era para consumir, numa promíscua relação entre o público e o privado. Vieram as P.P.P., as parcerias público-privadas com contratos leoninos a favor dos empresários que construíram hospitais e auto-estradas a perder de vista. Funcionários ora no governo, ora na administração das empresas de construção ou do negócio da saúde. Foi, é, um fartar vilanagem. O povo é sereno, até ver.

Pieter Bruegel - A Torre de Babel (1564)
Os nossos académicos e neo-liberais  governantes estão agora entre a espada e a parede. Ou dobram o orçamento do aparelho militar e policial, engordando perversamente o Estado, embora haja obviamente gorduras boas e outras não, tudo depende do ponto de vista, ou então arriscam-se a ter passivas forças ante o ímpeto dos famigerados “enragés”. O caos à espreita em cada esquina, a não ser que um messiânico ditador, embora em vestes “democráticas” ou “neo-liberais”, venha impor a velha/nova ordem. Os ventos da História estão, porém, como as estações, indefinidos e im previsíveis. Mais do que de uma nova política, precisamos urgentemente dum novo paradigma cultural, a nível global. Economia ao serviço da humanidade: comida para todos sabiamente repartida; comer menos mas melhor, a bem do equilíbrio dos corpos. Conceder a todos os povos os meios de produção capazes de garantir a sua sobrevivência. Crescer economicamente de acordo com as asas do desejo dos povos e a respiração da terra. Interditar a acção dos secadores de sonhos. Democratizar os saberes para que a humanidade não se deixe engodar com as palavras gordas das mafias do capitalismo internacional. Criar uma nova ordem internacional fundada em valores de solidariedade e não na voracidade infinita dos especuladores financeiros. Em nome da saúde dos povos e do planeta!
Nada de novo, pensará acertadamente o meu leitor mais atento. Mas, como diria o poeta e pintor Almada Negreiros, “Quando eu nasci, as frases que hão-de salvar a humanidade já estavam todas escritas, só faltava uma coisa – salvar a humanidade.”

Isto digo também eu, que acordei com o corpo vazio mas indignado. A ver o mar!




"Convergências",  Praia Grande, 2011