sexta-feira, 29 de abril de 2011

25 de Abril - da Nostalgia à Reinvenção da Democracia

Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo

Sophia de Mello Breyner Andresen



Giuseppe Pellizza Da Volpedo - O Quarto Estado (1901)
Algumas décadas depois voltei a desfilar na manifestação do 25 de Abril. Durante anos não o fiz, porque as comemorações cada vez mais se foram assemelhando às do 5 de Outubro: uma marcha de rituais da memória colectiva e nostalgias e pouco mais. Coisas para romeiros da saudade. Cada vez mais formais e menos habitadas pela substância do tempo hodierno. Gestos que as convenções sociais exigem como modo de manterem no imaginário a identidade colectiva. As comemorações políticas nacionais tendem contra as rugas do tempo a tornar-se dias santos laicos. Para uns, aliás, talvez as duas revoluções (o 5 de Outubro e o 25 de Abril) tenham algo em comum. Ambas seriam revoluções falhadas quanto aos seus objectivos mais profundos. Para outros, pelo contrário, o espírito do 25 de Abril ter-se-ia cumprido: democratizar, descolonizar e desenvolver (os célebres 3 ds). Depois do tempo inteiro das utopias, viera o tempo pragmático da democracia possível. Claro, houve sempre também os nostálgicos do salazarismo, mas estes já sem força política efectiva, embora, não sendo as revoluções rupturas absolutas, algo desse tempo cinzento tenha persistido na mentalidade colectiva ou mesmo em algumas práticas socio-políticas.
Desta vez, o que resta da minha cidadania activa tirou-me da inércia  e lá fui até à Avenida da Liberdade, em Lisboa, que dista 35 quilómetros da aldeia saloia em plena serra de Sintra onde habito. Desta vez quer dizer: a quase perda iminente da soberania nacional; a democracia cada vez mais fantasmática em que nos estamos a tornar sob o domínio teocrático do capital financeiro e especulativo.
Porém, nunca podemos regressar aos lugares onde in illo tempore fomos felizes, mesmo no plano simbólico. Reencontrei alguns amigos que já não via há meses, há anos, há décadas. Jovens de barba e cabelos brancos como eu, como se fôssemos 37 anos depois simultaneamente os mesmos e outros. Uns abraços, umas palavras de memórias, um querer saber o que fizeste e onde estás. Isto está uma merda de país, pois é! E lá vamos na marcha que nos coube em sorte, a dizer com o corpo em movimento, aqui estamos ainda presentes.
A manifestação foi de certa forma uma desilusão. Apesar dos milhares de participantes e do esforço “heróico” dos animadores com palavras de ordem -  expressão equívoca, pois nós precisamos sobretudo é de desordem cívica – anti-FMI e os habituais slogans “25 de Abril sempre, fascismo nunca mais!”.
As pessoas lá desfilavam ordeiramente, como quem cumpre uma missão, sem grande convicção combativa. Terá sido assim, ou será o meu olhar anti-nostálgico a construir tal imagem? Abaixo o FMI e o sacral mercado vestindo Armani da cabeça aos pés, ao bom estilo neo-liberal. Abaixo a mediocridade monetária que hegemoniza o mundo e lixa cada vez mais os pobres, esses países do sul que lhe alimentam a gula. Mas há sempre várias versões, por isso eles ripostam: “Pobres e mal agradecidos, de mão estendida e com réstias fanadas de orgulho!”. Mas quem são eles? Têm rosto? “São uma emanação diabólica!” – acrescenta um anacoreta do deserto dos nossos desejos.
"Abaixo a Troika e quem a trouxe!" Mas, sob a película invisível dos protestos, talvez a atmosfera colectiva fosse um sintoma não-dito de derrota latente. Aliás, veja-se como os nossos media sobrelevaram os discursos da cerimónia oficial do dito evento, a retórica do Cavaco, do Eanes, do Soares, do Sampaio, em prol de uma espécie de governo de “salvação nacional”, tendo como cena de fundo a imprópria cena de boxe entre o Sócrates e o Passos. Como quem diz, tenham juízo que com a Troika não se brinca nem mesmo a votos. Quanto à tão prezada sociedade civil e à sua manifestação, as televisões limitaram-se a uns apontamentos mais ou menos folclóricos e pouco mais, não fossem os actores do FMI porem-se na alheta, irritados com tal falta de respeito e de humildade.
Será preciso um pouco de violência das massas para apimentar o repasto televisivo?
Dürer - Os 4 Cavaleiros do Apocalipse (1498)
Segundo os pessimistas, Portugal, tal como a Grécia  e a Irlanda, ou outros ditos periféricos que virão a seguir, estão à beira de uma ruptura democrática. Teremos ainda alguma liberdade para protestar, mas os nossos votos eleitorais serão de pouca valia. Quem ditará as regras não seremos nós, mas quem nos comprou o futuro a preços de saldo.
E quando as trombetas do Apocalipse soarem em Portugal sopradas pela Troika, a dita classe média verá desencantada o seu delírio consumista de 2 décadas, convenientemente estimulado pelos nossos governantes desgovernados, presente no Dia do Juízo Final. O sonho europeísta começa a transformar-se num pesadelo, algo já há algum tempo vivido pelos 2 milhões de pobres e pelos 600.000 desempregados
Quanto à União Europeia e os seus patetocratas bem podem, no seu esplendor crepuscular, começar a encomendar a última versão, por exemplo a de Teodor Currentzis, do Requiem de Mozart.
Sem uma refundação das democracias não será possível recolocar a economia ao serviço dos povos. Mas esta questão não requer uma mera solução a nível regional ou nacional. E venha a utopia: só um movimento global, pelo menos a nível europeu, poderá alterar  radicalmente o modelo político dominante de cariz neo-liberal, que assenta na sagrada convicção de que o mercado liberto dos constrangimentos estatais, ou seja da política democraticamente legitimada, gera em si mesmo uma ética – a dos capitalistas especulativos, como é bom de ver. Internacionalismo, obviamente já não apenas proletário, o tempo de Marx já lá vai, embora a sua leitura do mundo ainda tenha alguma pertinência, mas de todos aqueles que recusam o domínio do ter sobre o ser.
Bem pregava Frei Bento Domingues: “Em Portugal, e não só, todas as notícias da Quaresma foram motivadas pelos efeitos do capitalismo selvagem, especulativo, sem regras, abrigado nos paraísos fiscais, mergulhando os pobres no desespero. Perante o império do dinheiro, da corrupção e da imprevidência que semeiam a morte, a mensagem da Páscoa, deste ano, deve servir para convocar a energia de toda a gente de boa vontade para que não haja indigentes entre nós. Esta seria uma Santa Páscoa!”(Público, 24 de Abril de 2011, p. 28 ).
Já não poderemos regressar ao "dia inicial inteiro e limpo" de Sophia, mas, com a criatividade colectiva e a liberdade possível, poderemos talvez abalar o hegemonismo do Deus-Milhão e ensaiar mundos alternativos. E voltarmos, livres, "a habitar a substância do tempo".


Duanson - A Senhora do Supermercado (1969)



domingo, 24 de abril de 2011

Ainda a Violência Juvenil: as Praxes Académicas

Henri Rousseau - A Guerra (1894)
Nos meus tempos de estudante universitário, na Universidade de Lisboa, a tradição das praxes era inexistente. Outros tempos, outros modos de estar. A iniciação académica era feita na luta contra o poder totalitário que  nos tolhia o corpo e o espírito. Nem todos o faziam, por comodismo ou acomodação aos ritmos do regime, diga-se em abono da verdade. Mas os “associativos” volta e meia lá andavam às turras com as autoridades académicas ou com as policiais: greves e confrontos faziam parte cíclica do ano escolar. Éramos definitivamente do contra. Alguns professores apoiavam-nos, outros silenciavam-se e alguns chegavam mesmo a confrontar-nos militantemente. Eram uma minoria felizmente. Um dia aconteceu mesmo uma cena burlesca. Estávamos em greve, e por vezes acontecia alguns colegas furarem a dita, o que levava os mais activistas a reagir. Numa aula do Professor Borges de Macedo, sabendo da presença de três colegas na sala de aula, resolvemos intervir para informá-los das razões da greve (uma intervenção brutal da polícia de choque contra os estudantes reunidos na Cantina Universitária). Quando tentámos abrir a porta, deparámos com a inesperada  resistência do professor. Nós a pressioná-la do lado de fora, e ele a fazê-lo do lado de dentro. Empurrávamos nós, empurrava ele. Até que a nossa superioridade numérica – éramos três – levou de vencida a tenaz resistência docente. Entrámos, ante a fúria professoral,  e informámos os colegas,  talvez distraídos, e lá saímos todos da aula. Claro que algum tempo depois chegava a polícia de choque. Em vão, porque avisadamente já nos tínhamos escapulido da Faculdade. Era  este o nosso ritual de “praxe” universitária.
Cerca de uma década depois do 25 de Abril, as praxes foram-se generalizando no meio universitário, mesmo em escolas onde nunca houve tal tradição. O inimigo passou a ser o caloiro. Instalou-se de novo uma hierarquia do poder entre os estudantes: veteranos, menos veteranos e caloiros. A iniciação passava pelo vexame dos novatos, nuns casos  mais ligeiro, noutros pelo exercício alarve da violência. As provações eram uma condição de acesso a um novo modo de ser e de estar e um prazer mórbido para os mandantes. A anulação “carnavalesca” da individualidade do caloiro, a sua niilização, era simultaneamente o simulacro da morte da sua anterior autonomia e um momento ritualístico necessário à sua entrada no "reino dos deuses": ser nada como virtualização de uma nova identidade.  Os excessos foram exorbitando de tal modo que  tais praxes vieram mesmo a ser proibidas pela direcção de algumas escolas.
Todo este arrazoado prende-se com o noticiado pela imprensa na segunda semana deste mês de Abril. Na catolícíssima cidade de Braga, alunos da também Católica Universidade viraram a sua praxe para o exterior da instituição: o alvo principal do seu viril poder passou a ser o universo dos sem-abrigo, habitantes de zonas do centro da cidade. Em surtidas nocturnas, os caloiros teriam sido obrigados pelos veteranos a agredir os vagabundos da noite, com tal sadismo que uma das vítimas viria a morrer.
O principal suspeito, um jovem de 20 anos, é aluno de Ciências Sociais, o que torna ainda mais absurda a violência do seu acto. A sua área de formação deveria,  pela sua especificidade epistemológica e ética, levá-lo a entender os condicionalismos socio-psicológicos que arrastam os seres para a exclusão social e para formas extremas de degradação, embora isso não signifique a perda da sua dignidade enquanto pessoas. Algo parece falhar nos processos educativos deste jovem, isto no mero plano da racionalidade, pois a cena aparenta ter sido a caricatura dum acto trágico de desmesura (a hybris grega) e uma variante machista do caos “dionisíaco”. O colectivo, convenientemente ébrio, comanda os impulsos individuais para lá de qualquer forma de racionalidade. Destruir o outro é um modo de afirmação viril que tem no colectivo e nos seus líderes o espelho da legitimação. Como observámos atrás,  humilhar o outro, retirar-lhe a sua individualidade, sempre foi o móbil da maioria das praxes, como condição de acesso a um novo estatuto social. Muitos rituais de iniciação têm uma componente de violência exorcista, inserindo-se estas praxes, pois, neste território imaginário. Mas o pretexto iniciático  é aqui muitas vezes superado pelo exercício da violência gratuita, um mero prazer pelo poder de humilhar ou destruir  o outro. Um caso extremo destes rituais de dominação radicalizada está bem representado no filme Salo ou os 120 dias de Sodoma de Pasolini, uma adaptação do romance de Sade aos tempos crepusculares do fascismo italiano. Claro que as nossas provincianas praxes não atingem tais limites de horror, mas o paradigma é o mesmo: o exercício sádico do poder, o que pressupõe a ausência de quaisquer regras éticas. Nos casos mais graves, as vítimas ficam para sempre tatuadas por esses traumas psico-sociológicos, e chegam mesmo a ter de mudar de instituição escolar ou a recorrer sem efeitos práticos à Justiça.
No evento de Braga, o mais surpreendente reside no facto de essa violência das “praxes nocturnas” sugerirem também um ódio social contra aqueles que a sociedade atirou para o lixo. Ou seja, um acto hostil que transita das fronteiras universitárias para o espaço público. Com a agravante de não ser um acto fortuito mas continuado pelo menos durante dois meses. É com perplexidade que vemos estudantes de sociologia e de filosofia terem este comportamento “terrorista”. Que amor à sabedoria é o seu?
Certamente nunca leram os livros dos seus filósofos curriculares, é urgente que alguém os ensine a ler: a nossa liberdade acaba, quando eliminamos a dos outros. É um lugar-comum dizê-lo, mas neste caso tem toda a pertinência repeti-lo até à exaustão. Estes são sinais preocupantes do estado da nossa democracia, embora saibamos que a grande maioria dos nossos jovens não se revê neste quadro de desumanidade localizada.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

A Violência Juvenil: as Claques Futebolísticas

Henri Rousseau - Les joueurs de football (1908) 
Os rituais da violência não têm idade, mas quando se trata daquela que concerne às camadas juvenis torna-se mais preocupante e espectacular, daí a sua visibilidade mediática,  pois é um barómetro possível da situação cívica de uma sociedade.
Entre os casos mais referidos, releva-se o fenómeno das claques futebolísticas que se transformam em anárquicos colectivos em pose guerreira contra os seus inimigos de estimação. Os adversários são a coisa a abater, um compacto de entes em movimento que se atrevem a optar pelo emblema inimigo, e por isso escapam ao estatuto de seres humanos. O futebol hoje é mais negócio do que festa, mais conflitualidade sem tréguas entre dirigentes do que diálogo, o que pode ajudar a explicar parcialmente a cegueira violenta dos jovens adeptos, mas não esgota as questões que o fenómeno sociologicamente levanta. O ódio entre claques estará próximo, no plano simbólico,  daquele que uma guerra civil desperta entre os campos opostos. Não se trata talvez de uma diferença qualitativa, mas quantitativa.
Felizmente o ódio futebolístico é um evento localizado que quando muito pode cruzar-se com os ressentimentos políticos entre o norte e o sul do país. Por outro lado, os “media”, na sua avidez mercantil pela notícia sensacionalista, podem contribuir para o acirrar dos ânimos: imagens em directo de claques em confronto ou com a polícia; comentadores em programas  desportivos com frases de uma agressividade explosiva; selecção e alinhamento da informação em função da espectacularidade da violência em torno do fenómeno futebolístico, etc.
A própria entrada das claques, uma multidão ululante, no estádio adversário, assemelha-se a  uma manada de animais ferozes correndo entre muros e polícias-campinos, em direcção à arena, ou seja, às bancadas que lhes são destinadas. É uma cenografia animalesca que nada dignifica o espectáculo desportivo.
Apesar de o futebol ser um negócio, entre nós estranhamente de clubes falidos ou à beira da falência, continua a ser um espectáculo com uma dimensão estética e festiva – estranhamente os comentadores desportivos gastam 90% do tempo a discutir as arbitragens e o restante a assinalar a beleza de um ataque ou de uma defesa – e com um número apreciável de adeptos mais interessados na festa do jogo do que nas conflitualidades, por isso merecedor de uma pacificação entre adeptos e entre dirigentes. Cabe neste aspecto às autoridades desportivas e políticas pôr cobro a este estado de coisas, punindo exemplarmente as hordas de jovens, para os quais a violência que transportam para o desporto é uma bizarra catarse social, homóloga das pulsões fascistas ao denegar, pela sua natureza totalitária, a alteridade com o seu universo de desejos específicos.
Vieira da Silva - A Guerra (1942)
A violência das claques é, pois, um fenómeno de massas, onde cada indivíduo fortalece a sua hiper-identidade através da negação “terrorista” do outro. São, por isso, suspeitas de manipulação por parte de indivíduos de extrema-direita nelas infiltrados, bastando neste aspecto reflectir sobre a semelhança das configurações de alguns estandartes ou bandeiras de uma determinada claque  com os símbolos nazis. Trata-se obviamente de posturas isoladas que não abarcam a grande maioria dos adeptos das claques, mas convém não esquecer que a cegueira emocional e a vocação para a violência são um terreno fértil para a génese de práticas políticas de pendor irracionalista. Além do mais a crise que atravessamos pode também contribuir para a adopção de práticas políticas totalitárias junto de certas camadas juvenis, mas este aspecto transcende o mero território das claques desportivas. Lembremos a propósito que por essa Europa fora os partidos xenófobos de extrema-direita vêm crescendo eleitoralmente, tal o caso das recentes eleições na Finlândia. O não-reconhecimento do outro como categoria humana, seja na política, seja no desporto, é sempre um prenúncio de terrorismo totalitário. A História da Europa do século XX é uma narrativa trágica e exemplar desse facto. Não esqueçamos, como imagem arquetípica da cena desportiva associada ao fenómeno político, o desalento de Hitler, ao ver o atleta  negro norte-americano Jesse Owens a vencer os seus super-heróis arianos, nas Olimpíadas de Berlim (1936). O contexto actual não é o mesmo, mas convém não perder a memória.  

domingo, 17 de abril de 2011

O Amor, a Rotina e o Bolor

Magritte - Tentando o Impossível (1928)


No seu romance Bolor (1968), Augusto Abelaira analisa radicalmente o modo como as relações amorosas se confrontam com a erosão do tempo quotidiano. Na intimidade do dia a dia, o casal Humberto e Maria dos Remédios perde progressivamente o desejo de descobrir o outro, de nele se reinventar. O outro é então um território inabitável, simultaneamente distante, no plano erótico-afectivo, e indistinto, pela vizinhança dos gestos e das máscaras. Cada um se vê no outro como num espelho vazio, por isso os papéis são reversíveis, tal como o diário que cada um escreve. Escrevo como se fosses tu, escreves como se fosses eu. Mas é uma identidade perversa, porque sem fronteiras para a alteridade. A incomunicabilidade é a assumpção da morte do desejo, da descoberta do corpo coabitado. É o fim do intervalo entre mim e o outro, pois a máscara que  nos une é aquela que  ao mesmo tempo nos destrói, enquanto individualidades. Daí a estranheza e a coisificação, o peso desconforme que impede a capacidade de renascer, de renascermos. Territórios coincidentes construídos pelo hábito, adversários pela lucidez dos limites que reciprocamente se impõem, só as infidelidades fantasiosas podem ainda constituir um simulacro de desejo recíproco.
O amor é para Abelaira ora uma ficção do fascínio nascente pelo outro – a fase primordial da sedução -, ora uma ilusão que o tempo corruptor acabará por desenredar.
O amor mais do que aquilo que foi sendo, seria sobretudo o que poderia ter sido enquanto virtualidade romanesca. Apenas parece escapar à ruína da erosão temporal  o instante verticalizado da paixão. Em  Os Desertores (1960), Francesca  dirá para Ramiro: “Vivermos um instante que não se repetirá, um instante único e para sempre lembrado como único [...] Quando a felicidade for tão grande que o nosso peito comece a doer, então acabemos tudo para que esse instante e essa felicidade fiquem ao abrigo do convívio que tudo acabaria por destruir.” (pp. 223-225).
O erotismo não resiste no plano institucional, porque não sobrevive ao império do tempo vectorial. Por isso as suas personagens exploram os seus desejos nas imagens fantasmáticas do outro, desfasadas no tempo ou nas vivências quotidianas. O outro enquanto idealização tem então a dimensão do absoluto, superando nos labirintos do imaginário as rugas do tempo.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

O Vestido de Fogo - As Aventuras de Lili

Ensor - As Máscaras Singulares (1892)



   Ó cronista! Andas muito distraído com o comício do Sócrates e com a transferência do Dr. Fernando Nobre do clube soarista, arquétipo da nobreza do carácter, para o clube do Passos Coelho – uma transferência de milhões, segundo dizem. Ou então andas de cabeça perdida com a chegada dos senhores do FMI que vão tomar conta deste país durante décadas, tantas que já não estarás cá para ver o fim, que nem escreves sobre o que de mais importante se passou neste país este fim-de-semana!
-    Benévolo leitor, de política o meu silêncio é de ouro, conforme prometi ao meu reduzido mas sempre atento público, quanto ao resto nada me parece ter acontecido digno de registo. A não ser que te refiras à estilista Katty Xiomara que polemicamente afirmou preferir a estética dos “dragões” à da sempre airosa Maria Cavaco Silva, uma senhora de cunho cosmopolita em qualquer lugar do mundo, apesar da sua silhueta bem lusíada.
-     Nada disso! Não ouviste falar do vestido de fogo?
-     Da novela do Régio?
-     Uma bela história de facto, mas eram outros tempos. Refiro-me ao vestido da Lili a arder aos fulgores do fogo-de-artifício na inauguração do Baile da Rosa, na sempre invicta cidade do Porto.
-     Não me digas que foi mais uma manobra do Pinto da Costa. A Lili é uma ferrenha adepta do glorioso Benfica e depois do “apagão” isso cheira-me a vingança.
-     Não me parece que tal se deva a negócios futebolísticos. Sabes, as más-línguas dizem que a Lili tem uma certa propensão para a  piromania. Isto é, gosta de brincar com o fogo para alimentar a chama que arde eternamente no seu coração. Uma vez, verdadeira devota de Nossa Senhora de Fátima, durante a procissão em Fátima, os seus cabelos doirados, ouro puro já se vê, confundiram-se com as chamas das velas, e se não fosse o rápido sopro do Espírito Santo teria ficado careca. É uma predestinada, não tem escolha e, segundo parece, é um mal de família, pois já uma tia da mãe morreu imaculada com o vestido em chamas.
      Desta vez, certamente ao apelo do fogo das rosas, o seu magnífico vestido bem cintado e até aos pés, uma diva a iluminar a noite tripeira, atraiu as lanças flamejantes do fogo-de-artifício: uma Vénus a nascer do fogo. O problema é que o vestido que tão excelsamente promovia era da Veste Couture. E a diva interrogava-se angustiada, depois da intervenção rápida de um operador de câmara, sobre quem pagaria o seu vestido queimado com as lágrimas do fogo-de-artifício. Apenas o seu corpo lácteo resistiu incólume a tal tragédia. Como vês cronista há mais vida em Portugal para lá do FMI e das politiquices enfadonhas com que nos estragam o quotidiano. Bem-hajam as Lili Caneças deste nosso mundo, para nos libertarem do tédio e da miséria em que estamos mergulhados. 


domingo, 10 de abril de 2011

A Poesia, o Amor e o Humor

Emile Bernard - Madeleine au Bois d´Amour (1888)
Nestes tempos de depressão colectiva, em que me proíbi de cronicar sobre a vida política nacional (sobre o carnaval eleiçoeiro e o FMI nada há para já a acrescentar), vou dar de novo a voz à poesia de temática amorosa. Começo com duas histórias bem humoradas de amor, de Augusto Gil e de Carlos Drummond de Andrade, sem «fim feliz», antes feitas de desencontros na arquitectura falível dos desejos face aos imperativos códigos sociais.


Augusto Gil (1873-1929) foi um poeta populista, pela artesania das suas quadras de recorte popular. Nos seus versos sobressaem também uma musicalidade escutada nos simbolistas e um pendor realista, pelo tom coloquial e muitas vezes satírico com que capta os instantes do quotidiano. Alguns dos seus poemas merecem hoje ser evocados, pois para lá da celebérrima «Balada da Neve», de leitura obrigatória na escola do meu tempo, poucos são os actuais leitores da sua obra.


ART. 1056.º DO CÓDIGO CIVIL

Oiça, vizinha: o melhor
É combinarmos o modo
De acabar com este amor
Que me toma o tempo todo.

Passo os meus dias a vê-la
Vermeer - A Rendeira (1669-70)
Bordar ao pé da sacada.
Não me tiro da janela
Não leio, não faço nada...

O seu trabalho é mais brando,
Não lhe prende o pensamento,
Vai conversando, bordando,
E acirrando o meu tormento...

O meu não: abro um artigo
De lei, mas nunca o acabo,
Pois dou de cara consigo
E mando as leis ao diabo.

Ao diabo mando as leis
Com excepção dum artigo:
O mil e cinquenta e seis...
Quer conhecê-lo? Eu lho digo:

«Casamento é um contrato
Perpétuo». Este adjectivo
Transmuda o mais lindo pacto
No assunto mais repulsivo.

«Perpétuo!» Repare bem
Que artigo cheio de puas.
Ainda se não fosse além
Duma semana, ou de duas...

Olhe: tivesse eu mandato
De legislar e poria:
Casamento é um contrato
Duma hora - até um dia...

Mas não tenho. É pois melhor
Combinarmos algum modo
De acabar com este amor
Que me toma o tempo todo.

Versos (1898)

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)
Este poeta modernista brasileiro, no poema «Quadrilha», instala-nos no labirinto dos desencontros, dos desejos indesejados, onde um tal J. Pinto Fernandes, um Deus ex machina da narrativa, acabaria por dar um desenlace «burguês» a esta história que, de outro modo, se perderia verbalmente nas rotas do infinito. Note-se o trânsito entre a reiteração dos imperfeitos do indicativo (o tempo inacabado) e os pretéritos perfeitos (o tempo acabado).

Magritte - Os Amantes (1928)


QUADRILHA

João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi pra os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.


65 Anos de Poesia (2ª ed., 1989)

sábado, 2 de abril de 2011

Que Fazer?

Grosz - Os Pilares da Sociedade (1926)
«Andai, ganha-pães, andai; reduzi tudo a cifras, todas as considerações deste mundo a equações de interesse corporal, comprai, vendei, agiotai. - No fim de tudo isto, o que o lucrou a espécie humana? Que há mais umas poucas de dúzias de homens ricos. E eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se calcularam o número de indíviduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infâmia, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico?»
Estas palavras foram escritas por Almeida Garrett, na primeira metade da década de 40 do século XIX, não por um marxista (esses viriam alguns anos depois), nem por um discípulo dos «socialistas» Saint-Simon (1760-1825), Owen (1771-1858) e Fourier (1772-1837), mas por um escritor e político liberal monárquico, e o mais espantoso é que têm ainda hoje toda a actualidade. Os verdadeiros pensadores têm felizmente esta capacidade de produzir discursos que ultrapassam, pela sua pertinência, os limites do seu tempo.
De facto, continuamos ainda em busca de uma Economia que esteja ao serviço do homem e não o contrário. As desigualdades sociais profundas no mundo, e Portugal não é uma excepção (é o pais com o índice mais elevado de desigualdade social na UE), são uma ferida na ética sociopolítica da Humanidade. O progresso moral, em determinados niveis, parece não ter acompanhado o progresso tecnológico. A previsibilidade do cenário futuro, a curto e médio prazos, parece mais próximo do antecipado pelos escritores das «anti-utopias», tipo Orwel e o seu romance 1984, do que das utopias «técnico-pastorais».
Rafael Bordalo Pinheiro (1900)
Quanto à agiotagem, nós próprios estamos a ser vítimas da especulação desenfreada dos chamados mercados internacionais, ou melhor, dos especuladores financeiros responsáveis pela crise económica mundial de 2008-2009. É um poder que domina o mundo, sem que haja por parte dos Estados qualquer capacidade para os regular. O cifrão é rei e senhor do universo. Neste estado de coisas qual será a capacidade de sobrevivência das democracias?
A situação é, entre nós, de uma gravidade extrema, tendo em conta a nossa dívida externa e os juros (a tal agiotagem de que falava Garrett), cada vez mais incompatíveis, a que estamos subjugados para que o nosso Estado possa sobreviver financeiramente. Acresce a isto uma elite política que, durante cerca de 30 anos, não soube definir e pôr em prática uma estratégia de desenvolvimento que nos colocasse, pelo menos, num nível médio entre os países da UE. E também, convém dizê-lo, uma classe empresarial, com raras excepções, que foi incapaz, por incultura, de se adaptar aos novos desafios colocados pela actual conjuntura. Adormecemos à sombra da árvore das patacas da UE. Só que a árvore para não secar tem que ser regada e a água é pouca para tantas patacas. Do mesmo modo, as famílias portuguesas foram-se endividando também ao ritmo de uma política de delirante apelo consumista. Além disso, a própria UE é cada vez mais uma fictícia democracia sem rumo, tutelada pela poderosa Alemanha.
A possibilidade de uma bancarrota - situação que já experimentámos em 1891 - é um cenário provável, embora uma intevenção dos mecanismos financeiros internacionais possa atenuar os efeitos catastróficos da crise de 1891: empresas e bancos falidos, suicídios em massa, etc. (leiam, a este propósito, o romance Barranco de Cegos (1962), de Alves Redol).
É urgente mudarmos as políticas que nos conduziram a este desenlace. Isto é um lugar-comum, dito e redito mediaticamente por políticos, economistas, politólogos e outros comentadores de serviço.
É nessário acabar com o supérfluo nos gastos do Estado, o novo-riquismo burocrático, as centenas de assessores, os assesssores dos assessores, os secretários dos secretários, os parlamentares do «Apoiado!» e «Muito bem!», os criados de libré, as frotas oficiais de automóveis de luxo, os institutos e os instituídos, as parcerias público-privadas desajustadas, as empresas municipais, toda uma parasitagem que se foi colando como lapas ao aparelho de Estado. É preciso emagrecer o Estado, mas não como propõem os neo-liberais do PSD, através da privatização da Saúde, da Educação, das Águas de Portugal, da CGD, etc., ou seja, de tudo o que, sendo ainda património do Estado, possa vir a ser lucrativo na mão de entidades privadas. Pelo contrário, é necessário fortalecer o Estado Social que, juntamente com a liberdade, é o que nos resta do projecto «abrilista».
Para quem, como eu, viveu quase metade da vida em ditadura (tinha 30 anos aquando do 25 de Abril), a jovem democracia foi o sonho de criar um Portugal mais justo, livre e desenvolvido. Hoje, vivemos no império das desilusões. De resto, é significativo o facto de cerca de metade da população portuguesa não se reconhecer na prática política dos partidos existentes. É um sintoma da crise profunda da nossa democracia e da inércia da desilusão colectiva.

Grosz - «Ecce Homo» (1918
Cabe à classe política dirigente uma grande responsabilidade no actual cenário sociopolítico, pois como refere Vasco Pulido Valente, «A complacência indígena para os governantes que levaram Portugal ao desespero e à miséria roça a santidade [..] A política é a profissão no país que goza da mais completa impunidade» (Público, 13-3-2011).
Os partidos do «centrão» tornaram-se colectivos onde a velha «cunha» (nepotismo) tem outros nomes e novos modos de circulação. A política deixou de ser um ideal, uma ética social, para se tornar um mero pragmatismo, visando a rápida mobilidade social dos seus militantes. Sabemos que a luta pelo poder não é um «idílio», mas a erosão ideológica tornou as máquinas partidárias espaços de obediência onde não há debate de ideias, e a norma é seguir irracionalmente o líder do momento.
Não podemos, no entanto, responsanbilizar apenas os dirigentes partidários (PS e PSD) que entre si dividiram o poder nestas décadas. De facto, somos todos, embora em graus diversos, responsáveis pelo estado da nossa democracia. Quantos de nós, por exemplo, se dão ao trabalho de intervir nas Assembleias de Freguesia ou concelhias? A democracia começa em casa ou no lugar que habitamos, na intervenção sindical ou outra a nível profissional, na escola, nos gestos do quotidiano, aparentemente inócuos que envolvem, por exemplo, uma consciência ambiental. Tudo isto faz a democracia e articula cada um de nós com o sentido da comunidade.
Sabemos que fazê-lo (os poucos que o fazem) é remar contra a maré, pois é mais fácil abdicarmos parcialmente dos nossos direitos de cidadania, reduzindo-a ao cíclico voto nas eleições. Aliás, os políticos profissionais não dinamizam aquela intervenção. O povo «democrático» só existe para eles quando precisam do seu voto ou dos seus impostos. Aí vêm então as arruadas e o beijos varinos. Um espectáculo digno de se ver. Sendo assim, o monopólio prepotente dos partidos foi enfraquecendo a sociedade civil e a sua capacidade de intervenção. É uma democracia pobre, a nossa. E é este inactivismo, no plano da cidadania, que facilita a corrupção e o nepotismo. Escutamos ou vemos na TV narrativas de promíscuas relações entre o poder político e o económico, e, por vezes, indignamo-nos, outras vezes, olhamos para o lado, como se uma migalha de responsabilidade não nos coubesse em sorte.
A mudança tem que começar por cada um de nós. É talvez aqui que começa a verdadeira revolução, para que ao lixo em que nos tornámos financeiramente, segundo as agências internacionais, não se junte o lixo da nossa acefalia colectiva. É urgente uma nova ética política. Cabe-nos lutar por ela, nos pequenos e nos grandes gestos do quotidiano. A democracia é uma construção colectiva, não o monopólio de uma «elite» que teatraliza, num registo trágico-cómico, a miséria nacional, como é o caso da cena parlamentar.
Max Beckmann - A Noite (1918-19)
Este é um texto chato, maçudo, indigesto como o quotidiano dos portugueses, excepto o dos ricos e, ontem como hoje, o dos «barões» de Almeida Garrett, isto é, a imagem caricatural dos que se promovem socialmente, com mordomias escandalosas às cavalitas dos partidos do poder. Até às eleições não falarei mais disto. Prometo. A não ser que o dilúvio se antecipe e tenha de escrever a bordo da Arca de Noé, se nela houver vaga para este cronista que não é político nem politólogo e de finanças nada sabe. De outro modo, resta-nos seguir a mensagem de Sérgio Godinho, «Aprende a nadar, companheiro!».