terça-feira, 30 de abril de 2013

A Crise da Democracia e os Nostálgicos da Ditadura


Jacob Burk (1904-1982), The Lord Provides, litografia,1934


 Nasci em 1943 (11/12) e vivi até aos 30 anos sob o domínio da ditadura “fascista” de Salazar e do seu sucessor, na fase crepuscular do regime, Marcelo Caetano (1968-1974). Em 1958, com a farsa eleitoral que opôs o General Humberto Delgado ao totalitarismo da direita reinante, tive o primeiro sobressalto na minha consciência política. Para lá do reconhecimento abstracto do terrorismo oficial, um familiar fora preso e enviado para Caxias, pelo único pecado de ter colaborado na candidatura do General.


George Grosz - Sem título (1920)



Os dias cinzentos, na magnífica expressão de Mário Dionísio, toldavam-nos o olhar e enclausuravam-nos o corpo, por isso a luta contra o absurdo da mais longa ditadura europeia - que sobreviveu, contra muitas expectativas, à derrota nazi-fascista na 2ª Guerra Mundial e pôde até integrar-se com a cumplicidade das potências ocidentais democráticas na NATO, em 1949, em função da nova conjuntura (a chamada Guerra Fria) – foi um processo complexo, no quadro de uma repressão política e sociocultural com projecções em todos os actos quotidianos. Só, na década de 60, com a eclosão da guerra colonial, na qual a minha geração foi forçada a dar o corpo ao manifesto, o regime começou a ser isolado internacionalmente. O fantasma de Salazar, que morreu em 27 de Julho de 1970, acompanhou-nos pelo menos até ao 25 de Abril de 1974.


George Grosz - Os Pilares da Sociedade (1926) 

Mas o exorcismo desencadeado pela Revolução de 25 de Abril, com toda a euforia colectiva, sobretudo nos meios urbanos, não impediria, para espanto dos que sofreram no corpo e na alma os malefícios desses anos de chumbo, que a sombra do ditador abandonasse definitivamente a cena do nosso imaginário colectivo e pudesse ressurgir mais ou menos santificado, em momentos de crise do nosso sistema democrático, tal como acontece com a actual conjuntura.


Júlio Pomar - Gadanheiro (1945)

A festa revolucionária foi intensa mas de curta duração, a democracia paralisou-se no gesto pragmático de “meter o socialismo no bolso”, depois veio o Eldorado da CEE, fundos e fundos a sumirem-se nas areias de Portugal, mas pagos com a destruição do nosso já débil aparelho produtivo, ou nesse delirante mar de betão onde nos afundámos. O poder político e a Banca empenharam-se e empenharam-nos, durante esse período glorioso, na ilusória felicidade do “consumismo”.



Hanson Duane - Senhora do Supermercado (1969)


Basta ver que entre os mais ricos de Portugal contam-se os proprietários das novas catedrais de consumo. Mas com a crise financeira internacional, espoletada pelos bem embrulhados “produtos tóxicos”, o reinado das ilusões desabou subitamente. Somos hoje o país da EU com mais desigualdade social e mais de um milhão de desempregados. Durante a ditadura, de 1960 a 1974, um milhão e meio de portugueses, rurais e analfabetos na sua maioria, partiram “a salto” para França. Hoje é o benemérito governo que aconselha os portugueses a emigrarem. A casa está em ruínas!


Frank Holl - Partida de Emigrantes (1877)


Numa recente sondagem, mais de metade dos inquiridos admite mesmo que a economia  (56,7%) e a justiça (49,1%) funcionavam melhor antes do 25 de Abril. Claro que nunca ouviram falar dos Tribunais Plenários, onde os opositores ao regime eram expostos às arbitrariedades do poder, em julgamentos que eram verdadeiras farsas-trágicas, para não falar da prorrogabilidade das medidas de segurança por períodos indefinidos que permitiam ao poder manter na prisão os “subversivos” muito para além do tempo das penas atribuídas em tribunal. Não ouviram falar ou trata-se de um caso de amnésia colectiva.


Álvaro Cunhal - Projecto 4

Quanto à economia, Salazar ficou famoso por ter sido capaz de restaurar o nosso equilíbrio financeiro, mas à custa de um povo brutalmente empobrecido e controlado policialmente nas suas reivindicações. A imagem dos “pobretes mas alegretes” tinha muita força. Apenas um exemplo: em 1974, éramos a sociedade ocidental com o índice mais elevado de mortalidade infantil (em 1960, em cada 1000 habitantes, 77,5; em 1975, 38,9). Hoje, temos uma das mais baixas taxas no mundo desse flagelo social. Nem tudo correu mal nas 3 últimas décadas no que concerne à estruturação do Estado Social - aliás, um conceito de formulação duvidosa, pois se o Estado hipoteticamente não estivesse ao serviço do bem-estar dos cidadãos, para que serviria? Para reprimir os recalcitrantes, cobrar impostos e garantir os lucros fáceis do poder económico-financeiro?


José Dias Coelho - Morte de Catarina Eufémia (c. 1954)

João Abel Manta - Preso Político Ladeado por um Pide e um Guarda


Mocidade Portuguesa (1936-1974)

Mas, actualmente, com o “neo-liberalismo” imposto por este governo e seus mandantes internacionais, em nome da austeridade, está-se a destruir o nosso chamado Estado Social. A democracia portuguesa vai-se desintegrando, pois deixou de corresponder às necessidades vitais da sobrevivência da nação como estado independente. O povo oscila entre a resignação e a revolta, o fatalismo e a procura de alternativas que começam a superar as fronteiras dos partidos que até aqui têm monopolizado a vida política. Há um divórcio cada vez maior entre os cidadãos e os partidos, tal como noutros países do sul da Europa. Entre nós, estão então criadas as condições para o regresso em força dos velhos fantasmas, sobretudo a nível da população mais despolitizada ou amputada de memória colectiva.

George Grosz - Desempregado (1934)


Claro que o actual tecnocrata ministro Gaspar não parece ser tão bom em números como o fora Salazar, aliás, um precursor da austeridade como medida salvífica dos povos. Mas no tempo da outra Senhora não havia Estado Social, apenas um arremedo, nem sindicatos livres, nem oposição legal. Gaspar é, de resto, um cosmopolita agente do capitalismo financeiro internacional, disfarçado de ministro das Finanças de um governo à deriva e na situação de bancarrota.


Salazar (décadas de 30-40)

Salazar era, em contrapartida, um austero “provinciano” que, no entanto, bem serviu os donos tradicionais de Portugal: “O meu isolamento tem essa vantagem: permite-me estar ao lado de todos os portugueses, permite-me não viver, aqui ou além, para viver simplesmente em Portugal!” (Entrevistas de António Ferro a Salazar, 1932-38). Estar ao lado de todos os portugueses, isto é, numa versão maligna, estar sorrateiramente de múltiplos olhos vigilantes como Argos, não fosse a “besta democrática” fazer das suas. A isso chamou-se primeiro PVDE e depois PIDE (a polícia política e um exército de informadores, sempre à escuta das eventuais palavras da subversão). Depois o olhar aterrorizador da Censura lá estava para completar esta devassa à alma dos portugueses. Silenciados, a maioria dos portugueses vivia a sua videirinha. Não te metas em trabalhos de galé, isto é, falar de política, era conselho de pais para filhos. Por isso os portugueses, na sua maioria, são ainda hoje peritos no monólogo e inábeis no diálogo. Os gestos mentais são lentos na mudança, demoram gerações. Depois há a memória mais antiga dos tempos inquisitoriais. É muito peso para um povo dito semiperiférico. Nunca ninguém se lembrou de fazer uma antropologia do modo de andar dos portugueses. Um campo semiótico a explorar. Cada corpo transporta consigo espessas camadas seculares de monólogos, queixumes e sussurros como uma expiação. Ao menos habituem-se a gritar, se não os salva pelo menos alivia. É um peso a menos no andar.

Rogério Ribeiro

Hoje estão, no entanto, criadas as condições, com a progressiva decomposição desta democracia, numa União Europeia sem rumo ou subjugada pelos interesses hegemónicos do especulativo capitalismo financeiro, para uma beatificação do camponês-doutor de Santa Comba Dão, que “morreu com as solas rotas”, e viveu gloriosamente para o bem-estar da grei, como já li em algumas mensagens das redes sociais. Com a novidade de ser referido o seu longo reinado como a negação do nepotismo e da corrupção. Nesse Portugal mítico omite-se obviamente que durante a ditadura se hiperbolizou a “cunha”, essa sagrada instituição nacional. Claro que o espectáculo grotesco, que a nossa actual classe política vem desenvolvendo, cria as condições ideais para uma ressurgência de uma mitologia messiânica encarnada num reinventado Salazar. Quem serão os candidatos à reencarnação?


Mocidade Portuguesa (1936-74)

É de facto urgente fazer um balanço destes 39 anos de democracia, tanto nos seus aspectos positivos como nos negativos (sobretudo a tortuosa conivência entre o Estado e os poderosos grupos económicos ou a corrupção de alto coturno tipo BPN), e reinventar a democracia, que não é uma fórmula fixa, mas o resultado de uma permanente luta colectiva e de uma capacidade inerente de ser questionada, de nos questionarmos, para lá dos formatados partidos políticos, em geral pouco inclinados à reflexão. Obviamente a solução não está em regredir para modelos conservadores, mas investir na busca de mundos alternativos que devolvam a dignidade aos cidadãos. Como é possível que na Grécia, em Itália, em Espanha e Portugal haja dezenas de milhões de desempregados? A situação é explosiva e implosiva. Do caos passemos então a um novo paradigma democrático. É tempo de acabar com os fantasmas! Quem diria que, quatro décadas após o 25 de Abril, ainda perco tempo a terçar armas com os nostálgicos do ditador.


João Abel Manta - As Idades de Salazar 1

João Abel Manta - As Idades de Salazar 2

João Abel Manta - As Idades de Salazar 3



João Abel Manta - As Idades de Salazar 4



João Abel Manta - As Idades de Salazar 5


segunda-feira, 22 de abril de 2013

O Dia da Terra, as Árvores e os Políticos

Pierre-Henri de Valenciennes - Na Vila Farnese - Os dois choupos (1770)


Hoje puxado pela efeméride apetece-me falar de coisas simples. De árvores e de pedras. Raul Brandão (1867-1930), que nunca apreciou a classe política do seu tempo, mas amou sem retórica a natureza e os humildes fez, em 1901, este singular comentário: “Há neste doce país o desprezo da flor – a não ser que ela se possa trocar em moeda corrente. Não é raro vermos numa praça pública abater-se sem protesto uma árvore. É até vulgar!... Quando a árvore começa a ser bela, esgalhada e enorme, cheia de ruídos e de sombra, surge o vereador e corta-a, sem imaginar, sequer, que mais vale um simples e humilde plátano do que um conselheiro de Estado. O político é inútil… Faz mais diferença à natureza o assassinato de uma grande árvore, que dá sombra e frescura, que tem a alta missão de purificar a atmosfera, do que a morte de meia dúzia de conselheiros de Estado gravíssimos e calvos. Perdoem-me!...” (“Maio”, A pedra ainda espera dar flor – Dispersos, Quetzal, org. de Vasco Rosa, p. 20).


Paul Cézanne - La Montagne de Sainte-Victoire (c. 1885)

Mudam-se os tempos, mas por aqui não se mudam as vontades. Há dias li num jornal o protesto de alguns munícipes de Cascais contra o abate de plátanos junto ao Mercado. Problemas de parqueamento, segundo parece, na razão camarária. Os vereadores deste país, tirando raras excepções, continuam com a mentalidade do visado por Raul Brandão em 1901. O panorama não difere muito do dos outros concelhos do país. Como já referira Almeida Garrett, “há muito pouco entre nós o culto das árvores” (Viagens na minha terra, 1842). É bem uma questão de cultura, isto é, de “provincianismo” alarve. Esta mentalidade está bem mais enraizada do que as mais nobres e seculares árvores deste país. Na sua soberba de betão e rotundas, em relativa falência com esta crise, os autarcas e o poder central vêem nas espécies arborescentes um estorvo às suas políticas “desenvolvimentistas”, com excepção dos eucaliptos, ou à sua visão curta de estereótipos turísticos. Árvores abaixo, pois precisamos de espaço para os paradisíacos e “ecológicos” campos de golfe, um chamariz para turistas fartos de ver árvores nos seus países de origem.


Carl Blechen - A Torre do Castelo de Heidelberg em Ruínas (1830)


Claro que a pedagogia ambiental devia começar nas escolas, ou melhor, na relação saudável das crianças com a paisagem arborizada. Nós estamos apenas em trânsito pela terra, daí a necessária humildade na coabitação com a biodiversidade. Se a hegemonia dos números, ainda por cima mal contados, não fosse apanágio da nossa classe política, talvez não estivéssemos em bancarrota. Falta aos nossos actores políticos uma verdadeira cultura humanista ou pelo menos aprender a escutar, em silêncio ritualístico, a música sussurrada pelas árvores. Depois poderiam seguir, um pouco mais sábios, nos seus potentes automóveis, para as suas reuniões de “salvar o mundo”. Hoje é o dia da Terra, que continuará caso haja vontade dos homens e dos deuses. Ah! Esqueci-me de falar das pedras… Fica para a próxima!


Félix Vallotton - Les alyscamps, soleil matin (1920)



Félix Vallotton - Paysage (1918)



Abel Manta - Rua de S. Bernardo (1928)




Pierre-Henri de Valenciennes - Vista do Monte Cavo sobre o Lago Albano (1782-84)