sábado, 31 de dezembro de 2011

O Tempo é um Rio sem Margens

Chagall - O tempo é um rio sem margens (1930-39)

 
 
  Ano novo, vida nova. No percurso da nossa finitude dominado pelo tempo vectorial, para atenuar a imagem do nosso inexorável fim, fomos inventando os rituais do tempo cíclico, específico das Estações, das fases da lua ou da sucessão dos anos, neste caso, imaginando que a renovação do mundo velho incorporado no simbólico ano que termina pressupõe a encenação do caos. Ordem velha, caos e nova ordem. Por isso no trânsito entre o ano que termina e o que começa o esplendor do ruído simula simultaneamente a festa da ruptura imaginária e a efémera desordem inerente a um ritual de passagem. Antigamente, até onde a minha memória alcança, nos bairros populares de Lisboa era costume deitar para a rua os trastes velhos, como se com eles deitássemos borda fora o tempo velho. Hoje mais artificiosos, ao ritmo da festa dos fogos de artifício, do borbulhar do champanhe ou espumante, consoante as bolsas, e da gritaria, clamamos os desejos para o novo ano, comendo, segundo a nossa tradição, as doze mágicas passas. Mas, como “o mito é o nada que é tudo” (Fernando Pessoa), que seria de nós sem estas formas ardilosas de ludibriar o tempo “real”? Se não fosse a fantasia colectiva seríamos meras máquinas racionais subjugadas aos imperativos de Cronos. As ficções que criamos são a verdade da nossa mentira. É um jogo, no teatro da vida. O outro tempo é um mistério e a consciência angustiada da nossa finitude, mas ninguém pode viver permanentemente no fio da navalha, por isso criámos os tempos que tanto regulam a vida social, como nos libertam provisoriamente das imagens angustiadas do fim, de cada um de nós ou do universo de valores em que podemos dizer eu ou nós. Por isso cada civilização tem o seu modo próprio de contar o tempo de acordo com os seus paradigmas mitológicos. A passagem de ano é pois um tempo de festa, embora nem todos a possam viver como tal, nas ruas, no turbilhão dos corpos, na intimidade da casa entre amigos, ou nos comerciais “réveillons”  dos hotéis, fábricas de produzir euforia. O tempo é um rio sem margens, estas são uma construção da nossa imaginação.

Um Bom Ano para todos!



sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Histórias dum Império Crepuscular – O Fado Tropical

Afonso de Albuquerque (1460-1515)


Comemoraram-se há dias (18-12-2011) os 50 anos da queda do então designado Estado Português da Índia (Goa, Damão e Diu), após invasão ou acção de libertação, consoante as perspectivas, das forças armadas da União Indiana, com a sequente anexação do que restara do império colonial português naquele território. Também em 4 de Fevereiro do mesmo ano (1961), nacionalistas angolanos atacaram, em Luanda, a Casa de Reclusão Militar, o quartel da PSP e a Emissora Oficial de Angola, movimento insurreccional que sinalizou o início da revolta dos povos africanos pela sua emancipação relativamente ao poder colonial português. Enquanto o sequestro do paquete Santa Maria, cerca de um mês antes, por um comando liderado pelo capitão Henrique Galvão, procurava denunciar ao mundo a natureza ditatorial do chamado Estado Novo. Demoraria ainda treze anos a morrer de podre tal regime que fundia, no seu imaginário mitológico, a aldeia (o terrunho idealizado) e o expansionismo imperial (o génio português em errância pelo mundo), tal como fora cenograficamente celebrizado na Exposição do Mundo Português em 1940. O ano de 1961 seria, pois, o da anunciação simbólica do ciclo final desta versão portuguesa do “fascismo”.
 O ditador Salazar, cego, como não podia deixar de ser, ante os sinais premonitórios do fim, puniria exemplarmente os responsáveis pela rendição das forças militares portuguesas na Índia, pois, na óptica do ditador, a  sua quase nula resistência à invasão teria o odor de traição. Quatro mil e quinhentos homens mal armados deveriam pois heroicamente confrontar-se até à morte com os quarenta e cinco mil militares indianos superiormente armados. Salazar precisava, como pão para a boca, desse sangue redentório para promover aos olhos do mundo a imagem mítica duma pátria ferida pelo belicismo indiano. Sequentemente, o último governador do território, o general Vassalo e Silva, passaria, num trocadilho demolidor, a ser designado, nos corredores oficiais da caricatura, como “Vacila e Salva-se”. E apenas viria a ser reabilitado e reintegrado no aparelho militar após a Revolução de 1974. São estas as histórias do canto do cisne do último Império colonial do Ocidente; de traidores porque não souberam ser heróis, de cobardes rendidos porque não souberam ser redentores. Por isso, mesmo os militares sem responsabilidades de comando, ao regressarem à metrópole, seriam recebidos pelo poder, após 5 meses de aprisionamento pelos indianos, com hostilidade. Dos fracos e "traidores" não rezaria a história do fascizante Estado Novo.
Quanto à África, o “orgulhosamente sós” de Salazar, ante uma comunidade internacional ingrata e incapaz de compreender a gesta da ocidental nação lusitana, tornar-se-ia voz de comando de uma acção colectiva punitiva contra os “turras” (“Para Angola, rapidamente e em força”) em defesa das “nossas províncias ultramarinas”, tal como eram designadas pelo discurso oficial, sendo abolida do vocabulário, porque subversiva, a palavra “colónias”. A expressão “guerra colonial”, que efectivamente duraria 13 anos, seria então uma sigla clandestina usada apenas pelos “traidores” à pátria. Veio então o tempo doloroso da partida, em Lisboa, dos navios soturnos com os soldados a acenarem milhares de lenços brancos, como pombas da paz que não teriam, para familiares e amigos, nos cais do nosso crepuscular destino imperial. Embora muitos jovens se recusassem a tal cruzada, partindo também mas clandestinamente na vaga de um milhão e meio de portugueses que procuraram, numa nova fase da nossa tradicional diáspora, entre 1960 e 1974, além-Pirenéus uma vida mais digna. Sacrificaram-se assim em vão gerações de portugueses e africanos por causa de uma visão da História anacrónica, cruel e fantasmática. Mas se dantes emigravam contra a vontade do poder, agora é o poder paradoxalmente que apela aos jovens para emigrarem, nas vozes plastificadas do nosso Primeiro e de um dito Secretário para a Juventude. Será fado português não ter casa para os seus filhos? O outro mandava-os para a guerra, este para a labuta na estranja ou, numa versão mais temperada, nos países lusófonos. Será destino colectivo ou serão jogos do acaso?
  Ainda hoje, embora recalcadas, as feridas dessa absurda guerra e da chamada descolonização, após o 25 de Abril, não estão completamente saradas. Também o modo de avaliação do longo ciclo colonial português de 5 séculos não é consensual, ainda que esse confronto ideológico não se assuma pelo diálogo aberto e visível, no espaço público, mas se sustente de não-ditos entre os nostálgicos do Império e os que tentaram desocultar as suas mitologias, reactivadas na segunda metade do século XX, quer em torno de um luso-tropicalismo exemplar  (Gilberto Freyre) ou da atitude de tolerância, específica do nosso colonialismo (Jorge Dias), quer, com diversas variantes, do afamado  padrão cultural da nossa miscigenação com outros povos (reveladora de “uma certa liberdade em relação às fronteiras culturais, uma certa promiscuidade entre o Eu e o Outro, uma certa falta de preconceitos culturais, a ausência do sentimento de superioridade que caracteriza, de modo geral, os povos de cultura ocidental”, como referiu António José Saraiva). Mas tudo isto pode ser interpretado de outra maneira: “No caso de Portugal, a função de intermediação assentou durante cinco séculos no império colonial. Portugal era o centro em relação às suas colónias e a periferia em relação à Inglaterra. Em sentido menos técnico, pode dizer-se que, durante muito tempo foi um país simultaneamente colonizador e colonizado. Em 25 de Abril de 1974, Portugal era o país menos desenvolvido da Europa e, ao mesmo tempo, o detentor único do maior e mais duradouro império cultural europeu” (Boaventura de Sousa Santos). Ou seja, a singular mestiçagem cultural da nossa colonização dever-se-ia então não a uma qualquer idiossincrasia "genética", mas à nossa fragilidade económico-política, militar e demográfica, enquanto potência colonial no quadro da relação de poderes no mundo ocidental. Aliás, sendo um dos factos referidos por António José Saraiva, para sustentar a tese da nossa original miscigenação cultural, a carta de Afonso de Albuquerque (1460-1515), vice-rei da Índia, ao rei de Portugal, “propondo o casamento entre portugueses e indianas como forma de povoar o território”, numa estratégica tentativa de criar uma “raça luso-indiana”, um modo de obviar à nossa escassez demográfica na metrópole (à volta de dois milhões, número curto para tanta expansão); tal capacidade de tolerância na aceitação do outro seria mais tarde totalmente desmentida com a criação do inquisitorial Tribunal do Santo-Ofício de Goa, em 2 de Março de 1560, prática persecutória orientada tanto contra o criptojudaísmo, o cripto-islamismo ou as heresias protestantes, como sobretudo contra o hinduísmo. Note-se, de resto, que Goa foi o único espaço colonial português que teve o “privilégio” de receber tal instrumento de intolerância, o que se prolongaria até 1812. Entre os aculturados indianos, sobretudo afectando as elites, aos valores do catolicismo luso e os outros, há ainda muitas histórias por contar. De violentações, mas também de negociações e cumplicidades.
Não tivemos obviamente o monopólio da intolerância ou da violência no que concerne à odisseia colonial, mas convém não limpar o sangue que nos escorreu das mãos em nome da cruz, de uns míticos brandos costumes ou de uma congénita abertura para o outro, segundo a qual o “mulato” seria uma quase invenção lusa. Claro que não podemos avaliar os eventos históricos descontextualizados dos sistemas de valores dominantes em cada época, mas, neste mundo turbulento e contraditório em que vivemos, olhar crítica e criativamente para a nossa História, o que pressupõe diálogo e não monólogo, pode ajudar-nos a entender o momento de encruzilhada em que nos encontramos, desta feita no quadro do nosso ciclo “europeísta”, onde continuamos tão periféricos como no início (1986) ou na fase do ciclo imperial. Não estaremos, aliás, de novo, numa fase de crise profunda da nossa identidade colectiva?  
Quanto à nossa capacidade de aceitar o outro, conviria, por outro lado, como exercício, fazer o balanço de 30 anos de recepção dos imigrantes sobretudo africanos (situação sociologicamente nova em Portugal), pois talvez encontremos aí algumas respostas pertinentes para o entendimento hodierno das nossas relações culturais com comunidades coexistentes no nosso espaço físico, demasiado “ghetizadas” por ausência de diálogo e vontade de plena integração do outro.
Como remate para estas digressões um pouco caóticas, vêm mesmo a calhar estas palavras do “Fado Tropical” (1971-72) de Chico Buarque da Holanda: “Sabe, no fundo eu sou um sentimental. Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dosagem de lirismo (além da sífilis, é claro). Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar, o meu coração fecha os olhos e sinceramente chora…”.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Somos todos culpados...


Ensor - A Entrada de Cristo em Bruxelas em 1889 (1889-90)

  "Portugal não caiu nesta crise por culpa dos mercados malvados, das agências de rating implacáveis, de políticos corruptos; de banqueiros irresponsáveis, de empresários medíocres e de sindicatos anquilosados. Portugal caiu nesta crise por culpa de todos, sem excepção."

Editorial (António Ribeiro Ferreira e Ana Sá Lopes) do jornal i, , 15-12-2011


Pela minha parte aí vai o mea culpa pelo milionésimo grão de responsabilidade que me cabe em sorte! Antes de mais culpados pela ousadia de existir neste terrunho implantado no extremo ocidental da Europa, pelos rituais de queixumes e lamentações que libertamos quando nos aproximamos do abismo, algo que já experienciámos noutras ocasiões de crise ao longo da nossa já longa História. Culpados pelo medo de agir, de questionar os sagrados poderes que nos foram retirando a energia de ser alguma coisa, por humilde que seja. Culpados por imitarmos toscamente os modelos de vida que mediaticamente nos chegavam dos eldorados do consumo. Culpados porque herdámos essa difusa infracção dos nossos primeiros ascendentes, a de terem comido o fruto proíbido. Culpados por aceitarmos como um fado a irresponsabilidade das elites políticas que nos governaram nas duas últimas décadas. Culpados por termos uma justiça que pune os criminosos de baixa estirpe social e deixa à boa vida os colarinhos brancos mesmo que sujos de sangue. Culpados porque nos deixámos lograr por banqueiros (os de cá e os da estranja) e suas clientelas sem escrúpulos. Culpados pela democratização dos odores da corrupção. Culpados por termos desejado um Estado Social, pelos vistos a destempo. Culpados por de barriga ilusoriamente farta nos termos sujeito á sagrada usura dos mercados. Culpados pelo vazio de ideais e projectos colectivos, pela destruição do aparellho produtivo. Culpados pela iliteracia de muitos dos nossos empresários. Culpados pelos soberbos e céleres ferraris nas ruas de desempregados e sem-abrigo.Culpados também pela crise sistémica (?) do capitalismo. Depois desta catarse confessional, talvez já não me condenem a alma às labaredas do Inferno!

Sr. António e Sr.ª Ana, a vossa retórica de comover os espíritos mais empedernidos é de facto a melhor terapêutica para apagar a responsabilidade maior de quem nos conduziu a tal desenlace. Quando dizem "Portugal caiu nesta crise por culpa de todos, sem excepção", esta asserção totalitária significa que realmente a culpa democratizou-se e assim nos liberta das justas acusações aos eleitos por tal descalabro. Ou será que acreditam ser possível levar à barra de tribunal cerca de 10 milhões de meliantes? Melhor seria (será?) talvez condenar ao desterro os espoliados de sempre. Mas, senhores, porque vos coube a vós ser a incarnação do superego colectivo? Pela minha parte submissamente me ajoelho ante a vossa voz acusatória e divinal. Lá nos encontraremos um dia no purgatório!



Ensor - A Morte e as Máscaras (1897)



segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

A Paisagem, o Provincianismo e a Barragem do Tua



“E os socalcos do Douro construíram-se para guardar a terra criada pelos homens, e na terra que os homens criaram e conservam, arrecada-se a vida de infinitas gerações.”
Alves Redol

Um povo que não se reconheça no espírito da sua paisagem tem um complexo défice identitário. Vítimas nas últimas décadas do esforço “progressista” dos nossos líderes em prol do betão e do cimento, não há lugar que resista, mesmo os de beleza singular, a esta vocação destrutiva. Mas o mais paradoxal é que este épico labor, em nome do “progresso”, nos conduziu ao fracassado estado económico-social em que nos encontramos, ainda por cima penalizados pelos custos paisagísticos e ambientais de tais projectos marcadamente provincianos (categoria mental associada a um falso cosmopolitismo). Ou seja, de Cavaco a Sócrates, foi um fartar vilanagem de auto-estradas, algumas sem utentes à vista, a retalhar a paisagem, sem atender às necessidades das já escassas populações do interior massaradas por rodovias que, em muitos casos, serviram fundamentalmente e de modo redundante os grandes pólos urbanos de Lisboa e do Porto, acentuando a dissimetria entre o litoral e o interior (“A orientação actual das auto-estradas e das principais vias de comunicação, polarizada pelas maiores cidades, e sobretudo por Lisboa, só vem agravar as dificuldades de estruturação à escala da província. Para quem tenha de utilizar os transportes públicos e não possa percorrer as vias transversais de automóvel, é geralmente mais difícil comunicar entre regiões relativamente próximas do que chegar a Lisboa”, José Mattoso, Suzanne Daveau, Duarte Belo, Portugal – O Sabor da Terra, 2010, p. 339).
 Entretanto foi-se deixando degradar a via ferroviária, encerrando-se linhas consideradas deficitárias, mas principal modo de circulação das gentes do interior e não só. Tudo isto revela a ausência de um plano consistente no que concerne às redes de comunicação à escala nacional, tanto a nível económico-social como ambiental, mesmo ao olhar de um leigo como eu nestas matérias. Concomitantemente proliferaram barragens onde corrente de água houvesse, para não falar no excessivo peso da construção civil na nossa actividade económica (nos anos doirados, ocupava 10º da população activa e 18% do PIB, sendo o consumo de cimento per capita o dobro da média europeia), actualmente em profunda crise, por falta de compradores (há 10% de casas a mais) e de crédito. Mas esta fúria construtora teria efeitos devastadores, pois contribuiu para a desertificação do centro das cidades e perda de moradores, como aconteceu com Lisboa, nas últimas décadas, e para um consequente crescimento, desmedido e caótico, dos subúrbios, sem qualquer qualidade de vida, tal o caso do concelho de Sintra. Para não falar nos gastos opulentos da Expo 98 ou dos estádios de futebol do Euro 2004, com alguns (Leiria e Algarve) com bancadas de betão ao desgaste do tempo e da impossível gestão. Também os nossos autarcas não quiseram ficar atrás e ei-los de rotunda em rotunda até à vitória final. O cimento tornara-se definitivamente o nosso Eldorado.
Os governantes não estiveram longe da mentalidade dos nossos emigrantes que construíram “maisons”, como manifestação de um capital simbólico emergente, pelas aldeias deste país, desfigurando-as, para anos depois, deixarem os inóspitos e incómodos (para os moradores e para os olhos dos que passam) casarões ao abandono, ora inacabados ora em ruína, pois os descendentes acabariam por se integrar nos países de emigração e não regressar à pátria. Mas obviamente àqueles, enquanto elementos de uma elite política, pedir-se-ão outras responsabilidades. Duas décadas e meia após a nossa integração na CEE (a actual União Europeia), continuamos tão desfasados economicamente dos países ricos da Europa como no início, apesar dos fundos estruturais e de coesão que recebemos tão euforicamente como D. João V recebera, no século XVIII, o ouro do Brasil. Com a agravante de estarmos hoje completamente falidos, sujeitos à gula desmedida dos credores internacionais, e só formalmente ainda independentes. Destruímos o aparelho produtivo em função dos interesses dos nossos “benfeitores” e a árvore das patacas como se veio a provar tinha curta duração e muitas e ardilosas contrapartidas. O modelo de “desenvolvimento” das últimas duas décadas foi, pois, um profundo fracasso. E, embora com significativos avanços, mesmo os nossos níveis de escolaridade estão ainda bem distantes da média europeia. Enfim! Se à partida éramos periféricos ou semi-periféricos em relação às sociedades mais desenvolvidas da Europa, neste canto do cisne da União Europeia, periféricos continuamos, e com índices de desigualdade social que nos colocam como um dos países da Europa onde o fosso entre ricos e pobres é alarmante.


Vem todo este arrazoado a propósito da polémica construção da barragem na Foz do Tua, na Região do Alto Douro Vinhateiro, promovida pela UNESCO, há dez anos, a Património da Humanidade (Paisagem Cultural, Evolutiva e Viva), da responsabilidade da monopolista EDP, e abençoada pela gestão do “betoneiro” engenheiro Sócrates. As suas palavras, no acto de inauguração da construção da dita barragem, em mais uma nefasta parceria público-privada, dirigidas ao poderoso tecnocrata Mexia, olhando com um desdém patético e alarve para aquela paisagem virgem e sacral, “Agora só falta aqui é…cimento!”, são bem uma caricatura da mentalidade provinciana que nos desgovernou nas últimas décadas. Paisagem sem cimento é como um deserto, diriam eles. Mas deserta era a alma do nosso ex-primeiro e do seu séquito, como a de outros que o antecederam.
Desta feita, porém, a UNESCO ameaça retirar o estatuto de Património da Humanidade àquela região de singular beleza. As hostes como bonecreiros agitam-se: a EDP diz que vai atenuar os estragos na paisagem, convidando para compor o cenário o reconhecido arquitecto Souto Moura; a super-ministra Cristas diz que o país não tem cheta para indemnizar a concessionária, caso suspendesse o projecto; os autarcas da zona, que sempre associaram ilusoriamente a instalação de barragens a mais progresso para os seus domínios, titubeiam. Entretanto foram arrasados milhares de sobreiros e azinheiras, um paredão de 100 metros de altura foi erguido, para memória futura dos dislates governamentais, e o vale do Tua e a sua linha férrea serão submersos com as águas da barragem. Mas afinal qual é o contributo desta barragem para a nossa produção energética? Segundo as expectativas de apenas 0,67%.
 Ora, segundo os responsáveis do turismo do Alto Douro, de Janeiro a Agosto do corrente ano, 110.000 turistas visitaram a região, pelo que a retirada de tal galardão pela UNESCO seria um rude golpe para a economia daquela zona. Por outro lado, em qualquer país que se preze uma linha férrea como a do Tua, um desfilar de imagens soberbas e únicas, seria reabilitada e promovida no plano de uma desejável gestão turística, para lá obviamente de ser um importante meio de transporte para as populações locais. Só um economicismo de vistas curtas, como é aquele que nos tem dominado, não sabe articular a preservação da paisagem e o bem-estar das populações locais com os interesses económicos. É preciso acentuar que o turismo português não se pode limitar ao mediático bronze algarvio. Portugal, na sua diversidade geográfica, apesar dos muitos disparates ambientais, ainda tem alguns rostos de paisagem com uma identidade peculiar a colocar ao olhar do mundo. Economia e gestão ambiental não são necessariamente antagónicas e, além disso, se não preservarmos o génio dos nossos lugares idiossincráticos perderemos de todo a nossa identidade. E, para isso, seria também necessário dinamizar uma consciencialização cultural das populações, de molde a defenderem a singularidade única desses espaços de eleição que lhes coube em sorte, e não a rumarem nas ilusões do falso progresso.
 É preciso reinventar Portugal, articulando tradição e modernidade, respeito pela alma da paisagem e desenvolvimento, criatividade e planificação. E salvar a foz do Tua, pois como afirmou José Pacheco Pereira, “combater a barragem que destruirá o vale do Tua transformou-se numa luta de último recurso, uma última oportunidade para termos outra paisagem que não seja eucaliptal, albufeiras artificiais, praias sobrelotadas, montanhas esventradas por pedreiras, na maioria dos casos ilegais, mas a trabalhar diante dos olhos de todos há décadas, num Portugal já demasiado estragado” (Público, 10-12-2011, p.40). De qualquer modo, saliente-se o facto de ser necessária a voz censória da UNESCO, para que a reacção de alguma opinião pública portuguesa se faça ouvir, com excepção dos militantes ambientalistas que desde logo nos alertaram para mais um crime contra o Património. Resta saber se ainda vamos a tempo de preservar esta paisagem que nos ilumina os olhos da alma: ”O que temos no vale do Tua, o rio, o vale, a linha ferroviária, o equilíbrio da terra, da água, das escarpas, da vegetação, do vento, da solidão agreste, é hoje único em Portugal. Ou seja, não há mais. […] Estamos diligentemente a acabar com outro destes vales, o do Sabor, pelo que sobra apenas o Tua” (J. P. Pereira, ibidem). Ou será que o poeta Byron tinha razão quando nos remeteu para os limbos do miserabilismo, ao exaltar em contraponto a beleza edénica de Sintra: “Escravos torpes e vis, bem que nascidos nas pompas da criação! – Porque desbarataste, ó natureza, as tuas maravilhas com semelhante gente? Eis que em vário labirinto de montes e vales surge o glorioso Éden de Sintra”(Peregrinação de Childe Harold, 1812).
Urge reaprender a apreciar a beleza do silêncio ou dos murmúrios da terra e da água, ou a sentir com plenitude os odores das plantas silvestres, com a humildade de efémeros hóspedes deste mundo mágico, que temos o dever ético e estético de preservar.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Servidões e Contemplações


Turner - O Naufrágio (1805)
Sem rota, rotos de servidão, resta-nos o sonho das palavras interditas pelas Agências do Juízo Final. Respigadores dos desejos submersos nas lixeiras a que nos condenaram as vozes do sacral Mercado, respiramos o ar fétido da corrupção do mundo. Mas cá dentro os lacaios de serviço dizem que temos de cumprir as ordens dos senhores, sem o mínimo desvio, sem a mínima hesitação. Ordens são ordens e os credores, esses anjos da morte, não perdoam, mesmo que para isso tenhamos de deixar as ossadas ao sabor dos ventos do deserto. Ou então navegar na nau dos loucos em espirais de medo, como se procurássemos o Velo de Oiro no sorvedoiro do abismo.
Claro que nesta desordem globalizada há eleitos e culpados. Aqueles moram nos paraísos fiscais, estes nos pardieiros da expiação. As lágrimas da Ministra do Trabalho italiano derramaram-se dos ecrãs, como o paradigma do sacrifício redentório para os povos europeus que comeram ambrósia em excesso. Lágrimas de carrasco, encenadas ou verdadeiras, ritualizam pateticamente esta trágico-cómica cena europeia. E se a moda pega, aí teremos os nossos Passos, Gaspares, Relvas, Cristas e restante companhia, em frenéticos choros, numa inundação de lágrimas a destruir bens e pessoas, ante um malfadado povo, exigindo-lhe o esqueleto para pagar juros chorudos pelo generoso empréstimo da usurária troika. Ainda se as lágrimas, rosas imaginadas pelo poder, se transformassem em pão, como no célebre milagre das rosas da nossa Rainha Santa Isabel, sugerem os muitos milhares de desempregados! Pura ilusão! Embora tenhamos regressado ao tempo dos três Fs (Fátima, Fado e Futebol), a capacidade miraculosa dos nossos governantes não chega a tanto.

Schiele - Friederike Maria Beer (1914)
Entretanto o nosso Sócrates, no seu académico retiro parisiense, sorri cinicamente ante o espectáculo grotesco de Portugal e da Europa. Dizem mesmo que terá aderido à escola filosófica dos “Cínicos” (século IV, a.C.), fundada por Antístenes, discípulo e amigo de Sócrates (serão meras coincidências?) e continuada por Diógenes (o tal que, segundo a lenda, vivia asceticamente num tonel), para a qual a base da felicidade estaria no desdém pelas normas sociais, na renúncia à riqueza, à glória e a todas as satisfações dos sentidos. Seguindo à letra a herança dos seus líderes espirituais, o nosso ex-Primeiro passou então a viver como um sem-abrigo nos pórticos dos templos de Paris. E, segundo fontes razoavelmente credíveis, ter-se-á mesmo misturado com os “indignados” parisienses, reivindicando, num ecologismo radical, o regresso à natureza. E, embora desconfiemos (gato escaldado, da água fria tem medo) da sinceridade socrática nesta caminhada de redenção naturista, que nos resta senão, na tradição dos contempladores da paisagem, já que não a podemos comer, prendê-la para sempre no nosso olhar? Talvez seja a revolução final do ser contra a ditadura do ter.
Ah! É verdade não se esqueçam entretanto de pagar os 5 mil milhões de euros desviados do BPN! Esta voz é obviamente a do nosso autista Ministro das Finanças.  Alguém (os impostos do povo, enquanto houver) tem de pagar os botões de ouro dos meliantes. E, além disso, para a almofada do nosso sossego, segundo rezam as notícias, desde que tomou posse este governo tem engordado o Estado com três nomeações por dia. Bem prega Frei Tomás, façamos o que ele diz e não o que ele faz! Uns poucos sempre a engordar, outros (a maioria) condenados ao emagrecimento pelo pecado de terem nascido. Mas que querem, este mundo foi feito para os eleitos!



Bosch, A Nave dos Loucos, 1490-1500