quarta-feira, 3 de outubro de 2012

As Metamorfoses no País Real e o Apocalipse

Arnold Böcklin - A Guerra (1896)


Depois de uma longa hibernação estival, despertei para esta videirinha portuguesa. A desordem das estações vem-me confundindo, hiberno no Verão, veraneio no Outono-Inverno, a tempo no entanto de poder observar os estranhos fenómenos que acontecem por aqui e escutar aquelas catástrofes que os profetas anunciam para os tempos futuros.
Vi um cavalo esverdeado montado por um agressivo coelho de dentes afiados, outro, desta feita um afoito cavalo negro, montado por um sibilino sábio financeiro que, embora autista, tem o poder de fazer perecer, num gesto austero, as gentes desta malograda terra pela fome e pela peste. Mais parece um dragão de papelão, mas quer ser o do Apocalipse.

Arnold Böcklin - A Peste (1898)

Donde vem tanta ira? Tanta que começaram a cair estrelas do céu e a lua tornou-se vermelha de sangue. Já comeram tudo o que lhes cabia nesta vida, agora satisfaçam-se com o esqueleto e o respectivo bolor! Nada pior que o pecado da gula! Assim brada o intrépido guerreiro.

 O povo desvairado com tal tormenta acotovela-se já nos aeroportos, nas estações de combóio ou mesmo nos cais, em desesperada e ilusória fuga para terras longínquas onde o dragão aparentemente ainda não impera. Sobretudo os jovens, já que os velhos cansados de deixar as ossadas pelo mundo estão condenados a ficar. De resto sabem de experiência feita que o inferno não é um privilégio lusitano.
Arnold Böcklin - Medusa (1878)

 Mas os outros dois cavaleiros são ainda mais temíveis, um montado num cavalo branco tem três cabeças viperinas e segue submisso as ordens do quarto cavaleiro, um espantalho de cifrões tatuados numa cavalgada imperial. Este cavalo não tem cor, ou melhor, tem todas as cores do mundo, para não se ver à vista desarmada. As autoridades locais têm aliás como vocação primordial proibir o uso de quaisquer lentes que possam ajudar as gentes a descortinar na neblina que o envolve a sua identidade. As caudas destes cavalos do terror são semelhantes a serpentes que rapidamente começaram a dominar o país.  Os sinais dos dias da ira vão-se propagando num tropel caótico.
William Blake - O grande dragão vermelho e a mulher vestida de sol (1806-1809)


Um pobre garoto da região de Sintra foi mordido por uma víbora venenosa. Foi o primeiro sinal. Em Setúbal, serpentes descomunais infiltraram-se nos esgotos e surgem inesperadamente no interior das casas, através das sanitas, ou na busca de ratos e homens-ratos pelas ruas da cidade. Apavorados os comerciantes fecharam as lojas, as sanitas das casas foram seladas a betão por precaução, brigadas de agentes da Protecção Civil tentam em vão impedir a catástrofe. A obstipação generalizou-se com o pânico dos habitantes. Segundo alguns entendidos na matéria, a explicação para o insólito fenómeno estaria nas radicais mudanças climatéricas, compelindo os répteis da Amazónia a subir para o hemisfério norte. Mas nem só de ofídios se apavoram estes lusos indígenas.
Ferdinand Khnopff - Istar (1888)

 No pacato rio Zêzere, foi há dias avistado um ameaçador crocodilo que num ápice devorou dois turistas em deliciada viagem de núpcias. E no também bucólico rio Tua, um majestático hipopótamo flutuou junto à futura sinistra barragem. Dizem alguns que tem uma pose socrática e edipiana, neste caso, como é óbvio, a origem etimológica do epíteto tem mais a ver com a EDP do que com o conhecido mito de Édipo que não se adequa ao inconsciente colectivo deste mamífero artiodáctilo, com traumas especificamente tropicais.
Zdzislaw Beksinski (1929-2005)

 Mas os sinais deste anómalo povoamento não se ficam por aqui. A vila da Azambuja foi subitamente invadida por alguns tigres que os mais sensatos atribuíram a uma fuga de um circo em ambulância pela região. São pareceres, discutíveis mesmo na sua sensatez. Por isso a população do burgo, a quem faltou tal sensatez, deixou o burgo deserto, agora entregue à voracidade destes felídeos entretidos com as vitualhas abandonadas.
Arnold Böcklin - Tritão e Nereida (1877)

Entretanto gafanhotos do tamanho de cavalos adejantes destroem o que resta da nossa parca produção agrícola. E nas auto-estradas do país quase sem trânsito manadas de toiros furiosos investem contra os poucos incautos automobilistas que se atrevem a circular neste inóspito asfalto poisado na ocidental praia lusitana. As praias fluviais foram também encerradas, pois milhares de piranhas abocanharam quanta perna e braço desnudos acharam nestes rios outrora bucólicos.
Zdzislaw Beksinski (1929-2005)

O caos vem-se assim instalando ao ritmo destes bestiários predadores. E há mesmo boatos que correm nas asas de escorpiões voadores segundo os quais Portugal já estaria mesmo a ser governado por enormes lagartos verdes, embora disfarçados por enquanto de seres humanos. Claro que a culpa não é dos animais como nós criaturas da vontade divina, mas dos desmandos das forças obscuras que governam este mundo. Obscuras é uma maneira de dizer, pois nesta noite de artifício todos os gatos são pardos e as lunetas da alma foram fechadas a sete chaves como o Livro dos Sete Selos. E, segundo se diz, apenas se salvarão os adoradores do bezerro de oiro.
Alfred Kubin - Adoração (1901-1902)

 Mas, para nosso ânimo e dignidade patriótica, as notícias de Espanha, Itália e Grécia, dão conta de eventos semelhantes. Os sinais do fim evidenciam-se a cada hora. E eu, ao olhar de manhã para o espelho, notei atónito que o meu rosto estava também a tomar angulosidades reptilárias. O Apocalipse entrou silenciosamente em minha casa. Estava tão surdo que não ouvi as trombetas.
Zdzislaw Beksinski (1929-2005)

PS: Quase todas estas informações foram recolhidas no jornal Correio da Manhã (1-10-2012), a interpretação dos factos e os comentários são da minha inteira responsabilidade.



Odilon Redon - O Pólipo (1883)
 
Zdzislaw Beksinski (1929-2005)



Arnold Böcklin - Angélica guardada por um dragão (1879)
Zdzislaw Beksinski (1929-2005)



Zdzislaw Beksinski (1929-2005)
Zdzislaw Beksinski (1929-2005)