domingo, 19 de fevereiro de 2012

Deambulações em torno de "O Labirinto da Saudade" de Eduardo Lourenço (1)

Magritte - La Mémoire (1948)



Em dois ensaios insertos neste volume (“Psicanálise Mítica do Destino Português”, 1978, e “Da Literatura como Interpretação de Portugal”, 1975), o ensaísta, no contexto do pós-25 de Abril, revela-nos o modo paradoxal como nos fomos imaginando desde os primórdios da nacionalidade, com particular incidência no século XIX. Aliás, diríamos com mais acerto o modo como as nossas elites culturais foram construindo ou reconstruindo a nossa mitologia em prol da comunidade imaginada chamada nação portuguesa. Um povo, para lá de actor histórico, é um produtor de auto-imagens que virtualizam a sua identidade e, portanto, a sua relação com o mundo. Ora o que o autor salienta como núcleo duro dessas constelações imaginárias decorre do "irrealismo" como nos fomos retratando ao longo dos séculos: à nossa fragilidade enquanto actor na história do ocidente, contrapusemos uma ideal imagem de nação messiânica com um destino e uma génese providenciais. Mas esse irrealismo em momentos de crise, sobretudo a partir do romantismo, viria a transformar-se em prolíferas imagens da "nação-cadáver", ora em busca dos símbolos da ressurreição ora em irreversíveis perdições. Tal consciência infeliz decorreria da fixação mítica numa idade do ouro da nossa história, seja a medievalidade idealizada por Alexandre Herculano, seja a efémera glória da nossa aventura dos descobrimentos, entre o século XV e o início do século XVI, cristalizada nas palavras sublimes e heróicas de Camões, simultaneamente epopeia e epitáfio, sinfonia e requiem, tal como nos surge no poema romântico de Almeida Garrett sobre o épico em 1825.  Para Eduardo Lourenço, com os nossos românticos «Portugal, enquanto realidade histórico-moral, constituirá o núcleo da pulsão literária determinante». Ou seja, a problematização do eu individual integra como inevitável comparsa o drama do eu colectivo. É óbvio que as circunstâncias histórico-políticas que envolveram os dois românticos podem explicar essa comunhão de destinos. Ambos combateram na causa liberal contra o absolutismo e  confrontaram-se  arduamente com os fluxos e refluxos na implantação do liberalismo, sendo compelidos ao exílio no período do “miguelismo”, ou com os desencantos resultantes das tensões no próprio campo liberal,  após a vitória na guerra civil de 1832-1834. O nosso liberalismo foi pois um palco de lutas entre os “devoristas”, os ritualistas do “cifrão”, ou como Garrett lhes chamou caricaturalmente o novo reino dos “barões”, e os que idealizaram a nova pátria como o rosto da ressurreição moral desenhada pelos ilustres cidadãos que assim substituíam os súbditos do “ancien régime”.     

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Eça, os vampiros e a morte das velhas livrarias

August  Macke - Mulher a ler em poltrona vermelha (1910)

Os cafés como as livrarias eram espaços simbólicos das gerações literárias – a de 70 (Eça, Oliveira Martins, Antero, Ramalho, etc.) – e a de 90 (Raul Brandão, António Nobre, Alberto de Oliveira, Camilo Pessanha), no século XIX, a do Orpheu, a da Presença, a neo-realista, a surrealista, no século XX, para citar alguns exemplos –, de tal modo que seria bem importante para a nossa história cultural moderna fazer a cartografia desses lugares mágicos.
Sobre a lenta agonia ou a morte dos cafés já me referi na crónica “Cafés, Tertúlias e Memórias” (28-12-2011), por isso hoje vou apenas voltejar em torno do desaparecimento das livrarias com história. Estas eram obviamente um negócio, mas também um lugar de ócio criativo para os leitores. Havia uma relação personalizada entre o livreiro e os clientes – o diálogo era um acto cultural. Com o advento das catedrais do consumo e as FNACs deste mundo, o atávico baixo consumo cultural português, agravado pela chamada crise económico-financeira, as livrarias da tradição foram encerrando e o livro tornou-se uma mera mercadoria. Não há qualquer diferença entre vender um par de sapatos, um livro ou um CD. O negócio excluiu o ócio criativo, ou melhor, explora o reino das bestas céleres, com a boa consciência dos consumos massivos e efémeros. Com uma agravante: a exposição e a promoção das obras obedecem aos critérios das grandes editoras nacionais e internacionais, daí que 80% dos livros expostos em escaparates ao engodo do consumismo sejam lixo estético.
Vem este arrazoado a propósito de uma recente polémica em torno do slogan “Troque Os Maias por Meyer”, inserido na “bem intencionada” campanha promocional da FNAC com o lema “A Cultura Renova-se”. Ou seja, substitua o arcaico romance do Eça pela genial autora de romances vampirescos, a jovem escritora americana Stephenie Meyer (n. 1973), que com a sua saga Crepúsculo terá já vendido em todo o mundo 120 milhões de exemplares (sobre o modismo vampiresco remeto humildemente para o meu texto, “Gastronomia, sangue fresco e vampiros”, 26-2-2011). Esta autora, abnegada fiel da Igreja de Jesus Cristo dos Santos Últimos Dias, era uma normal cidadã americana até que uma noite teve uma inspirada visão onírica do Reino dos Vampiros. Segundo a revista Forbes, em 2010, tornar-se-ia com esta divina inspiração a 59ª celebridade mais poderosa, com um salário anual de 40 milhões de dólares. Na senda dos Stephen King, Anne Price, Mark Hagen e Charlaine Harris, esta escriba iluminada tem a capacidade de transformar sem esforço o sangue das palavras em dólares. É um sinal dos tempos que a mordacidade de Eça teria comentado com o seu humor corrosivo, como o fazia quanto às mistificações culturais coetâneas, caso estivesse entre nós. Mas, aos olhos dos programados decisores da FNAC, os clássicos são lixo, por isso, num gesto de beneficência exemplar, apenas bons para serem lidos pelos “pobrezinhos” deste mundo via AMI.
Juan Gris - O livro aberto (1925)

Segundo a FNAC Portugal, este gesto caritativo visa “mobilizar as pessoas para um gesto solidário que oferece, simultaneamente, uma mais-valia promocional em que todos os livros […] que as pessoas têm em casa e que já leram […] possam ser reutilizados ao serem oferecidos a quem, provavelmente, nunca teve a oportunidade de contactar com essas mesmas obras clássicas, das várias áreas da cultura”. E obviamente “incentivar [com um vale de 5 euros] o interesse do público em geral por novos produtos e conteúdos culturais nas áreas da música, dos filmes e dos livros”. Ou seja, se tens a estante cheia de Pessoa, Eça, Camões ou Sá de Miranda, despeja-os na benemérita FNAC, pois assim terás lugar para os efémeros autores da moda. Os protestos contra o trocadilho de mau gosto (Maias/Meyer) foram tantos que a caridosa FNAC resolveu suprimi-lo da dita campanha cultural, mas acrescentando que nunca foi seu propósito desvalorizar os nossos clássicos. Tratava-se apenas de opor inocentemente, em angélicos propósitos modernistas ou pós-modernistas, os velhos alfarrábios pelos últimos sussurros dos vampiros do espírito. Assim se renova a cultura. O paradigma é óbvio: o livro usado fica desusado, logo, como qualquer objecto de consumo, vai para o lixo ou, graças à benemérita FNAC, num quadro ecológico, recicla-se para o terceiro mundo. Por isso, nestes armazéns de livros, raramente se acham as obras dos nossos clássicos, com a conivência das grandes editores que não os reeditam. Quando numa destas lojas perguntei pelo Céu em Fogo de Sá-Carneiro, logo um empregado solícito, após consulta no computador, me informou que havia uma edição da Assírio & Alvim, mas para o adquirir teria de me dirigir à editora. Este é o panorama cultural português, bem distante do francês ou dos países anglo-saxónicos, apesar dos virtuosos fazedores de vampiros. E a nossa Secretaria de Estado da Cultura, distraída como sempre, não poderia fazer algo para incentivar a reedição dos nossos clássicos a preços módicos? Assim se vai perdendo o que resta da nossa identidade cultural. Por favor não me mordam o pescoço!
PS. A distinta jornalista do Público, de seu nome Cláudia Carvalho, feitora do artigo (31-1-2012), em que me baseei para este comentário, parece não ter também grande apreço pelo Eça, pois designa Os Maias “como romance histórico” (?). Das duas uma: ou não sabe o que é um romance histórico ou nunca leu o romance, nem mesmo um resumo escolar. E não é que o meu pescoço já está mesmo a sangrar!  

Magritte - La lectrice soumise (1928)