sexta-feira, 8 de julho de 2011

O Lixo e as Armas

Bordalo Pinheiro - O Ultimatum
Estamos de novo num clima de revolta patriótica, próximo daquele que se gerou com o Ultimatum Britânico de 10 de Janeiro de 1890, donde surgiria a “Portuguesa”, marcha patriótica de Alfredo Keil e Henrique Lopes Mendonça, mais tarde, com a República (1910), consagrada como hino nacional.
Na época, eram os nossos brios ofendidos pela imposição imperialista anglo-saxónica de abandono imediato de territórios ultramarinos que, segundo o nosso mapa cor-de-rosa (la vie en rose), nos caberiam por direito legítimo. Daí o fervor patriótico e belicista do nosso protesto bem presente na letra e no ritmo da “Portuguesa”: “Às armas! Às armas! (...) Contra os canhões (dos britânicos) marchar, marchar.”
Foi obviamente mais um gesto para acariciar o nosso ego colectivo, do que um apelo efectivo e prático para nos confrontarmos com a mui poderosa máquina militar do Império Britânico, aliás, o nosso mais velho aliado. Os povos têm destas coisas quando a sua auto-estima anda muito por baixo.
Mudaram-se os tempos, mas eis-nos de novo de orgulho colectivo ferido, e ainda por cima de bolsa rota, já não por um Estado Imperial, mas por uma dita Agência de Rating Moody’s, ou seja, por alguns agentes do capitalismo financeiro internacional, cuja tarefa é avaliar o corpo agónico da nossa economia e, se for caso disso, atirá-lo borda fora, mas sem primeiro sorver até ao tutano os ossos da nossa desgraça.
Numa busca breve ao Dicionário, notei que rating (não confundir com ratting, caça aos ratos – não iria tão longe a sua ousadia), significa avaliação; já moody levanta algumas suspeitas, pois leio taciturno, melancólico, carrancudo, rabugento, mal disposto, sorumbático, de temperamento instável. Uma carranca de meter medo mesmo aos santos. Ora a nós que não somos santos, mas pecadores inveterados, atirou-nos para a “lixeira” do capitalismo.
Este gesto, próprio dum “almeida” camarário, levantou uma onda de protestos de norte a sul e ilhas: no facebook, surgem apelos à indignação; o Procurador Geral da República dispõe-se a pôr a dita em tribunal; as autarquias rompem os seus contratos com a dita; publicam-se via internet imagens de  D. Afonso Henriques a atacar briosamente as instalações da dita, clamando “Morte aos ´mouros´ do Norte”; as caixas de bolacha Maria (a lembrar a nossa Maria da Fonte) são ilustradas com símbolos anti-moody; idem para as da sardinha, fósforos e tabaco; fazem-se calendários para 2012, postais, cromos, leques, com inscrições alegóricas visando a dita. De tal modo o movimento é gigantesco que, para espanto dos especialistas, a nossa economia começou subitamente a crescer, a crescer, a crescer, mas no domínio do puro delírio colectivo.
Max Beckmann - A Sociedade Parisiense
Bastante combalido está o nosso 1º de Massamá. Segundo disse “levou da Moody´s um valente murro no estômago”. Compreende-se a sua desilusão, depois das medidas radicais que tomou (o povo é sereno!), mais troikista (não confundir com trotskista) que a Troika, a acenar a Bruxelas e às agências de Belzebú, atirarem-lhe o reino para a lixeira dos indigentes, é algo de pôr um Job de cabelos em pé! Mas no estômago com um soco certeiro, isso não se faz. Já agora, a propósito, na formatação de dirigentes made in PSD não se ensinam técnicas de boxe ou de karaté? Uma falta imperdoável nestes tempos conturbados.
Mas o mais estranho de tudo isto, é ver como os nossos políticos da direita dita neo-liberal, ou os seus comparsas que dominam o comentário televisivo, ainda há bem pouco tempo, defendiam com unhas e dentes que não tinha qualquer sentido beliscar as agências de rating, pois isso só iria prejudicar Portugal e as nossas finanças abolerecidas. Talvez isto sirva de lição aos nossos talentosos neo-liberais, para que no futuro entendam melhor os segredos do negócio. Mas não serve porque a sua devoção ao sacrossanto mercado é inquebrantável. Os crentes têm pouca apetência pela razão das coisas.
Resta-nos então para consumo interno reinventar a “Portuguesa”. Aqui fica uma hipótese desajeitada:

“Heróis do mar, nobre povo,
Nação valente, imortal,
Levantai hoje de novo
O esplendor de Portugal!
Não a lixeira do mal!

Às armas! Às armas!
Pela pátria lutar,
Contra a Moody marchar, marchar.

Mas à falta dum letrista e dum inspirado compositor, terminemos com estas palavras sensatas, anteriores ao anátema do lixo, de Frei Bento Domingues: “O pior da crise actual não são as desgraças que já provocou. Pior é a cegueira de quem não quer ver a falência do capitalismo financeiro e desregulado, de raiz anglo-saxónica com sede em Wall Street e na City de Londres e ramificações nas principais praças financeiras do mundo. Importa fazer objecção de consciência à economia de jogos financeiros e promover uma economia orientada para a construção do bem comum.”(Público-19-6-2011).


Répine - Os Sirgueiros do Volga