segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Os Amigos e as Redes Sociais

«Amigo» é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
«Amigo» vai ser, é já uma grande festa!

                                              Alexandre O´Neill


Renoir - Le Déjeuner des Canotiers

No Facebook há muitos amigos. Amigos de amanhã, hoje, ontem e anteontem. Há os amigos da onça e os de sempre (no que de contingente tem esta palavra no tempo de uma vida). Uns de nome, outros de pele, outros de coração. Há-os para todos os gostos e feitios. Se a vida não fosse um ciclo de mortes e renascimentos, vizinhanças e distâncias, talvez não fosse necessária tanta circulação de nomes de «amigos» nas ondas da internet. Mas é o mundo que temos, com os seus modos peculiares de comunicar, por isso podemos instalar-nos o mais sabiamente possível nesta plurivocalidade tecnológica. Há ainda quem prefira o silêncio neste caos palavroso. Mas destes não falará esta história.
Há quem tenha fome de amigos na iniciação, na baixa ou alta depressão ou na aposentação. Há quem procure corpos na solidão. E há até fotos idílicas a suavizar e a enternecer a contemplação. Mas há também quem já tenha tantos amigos (milhares, milhões, a alongar afectos perdidos na distância), que recusa novos amigos, mesmo os de antigamente. Amigos de corpos a extinguirem-se nas névoas do tempo.
Palavras sopradas pelo vento da memória: Hipólito, Zebedeu, Leda, Insólito, António e Antonieta... Redes sociais a ocupar ou a mascarar a solidão. Ou então apenas um modo simples de dizer "Estou vivo! Como vais?".
Um nome é um nome e tantos nomes reunidos não serão apenas uma nomenclatura? Há nomes sem rostos e rostos sem nome. Mas não sejamos pessimistas! Que cada um traga o seu nome para fazer a conjunção infinita da nossa salvação ou da nossa feliz perdição. Perdoem-me a recorrência dos ditongos em «ão». Os meus amigos me entenderão.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Cafés, Tertúlias e Memórias


Almada Negreiros - Retrato de Fernando Pessoa
 Segundo G. Steiner, "A Europa é feita de cafetarias, de cafés. Estes vão da cafetaria preferida de Pessoa, em Lisboa, aos cafés de Odessa [...]. Vão dos cafés de Copenhaga, onde Kierkegaard passava nos seus passeios concentrados, aos balcões de Palermo. Não há cafés antigos [...] em Moscovo, que é já um subúrbio da Ásia. [...] Nenhuns na América do Norte, para lá do posto avançado galicano de Nova Orleães. Desenhe-se o mapa das cafetarias e obter-se-á um dos marcadores essenciais da «ideia de Europa» (A Ideia de Europa). 
Desde a adolescência fui um frequentador assíduo de cafés. De manhã, mal saía de casa, o café era o meu espaço privilegiado. Muitas vezes uma "bica" dava para uma manhã inteira. O dinheiro não abundava. Lia, reflectia e conversava com os amigos que iam chegando a esse lar aberto a todos os interessados. Foi por ali que aprendi muito do que sou hoje, mais talvez do que na escola ou na universidade. Naquele tempo, esse espaço mágico atravessava e congregava diferentes gerações e até pessoas com diferente estatuto económico-social. Era frequente os jovens terem à mesma mesa gente na casa dos 40 ou mesmo mais. Os meus cafés desse tempo eram sobretudo o Ribamar e o Tamar, em Algés, por circunstâncias de proximidade habitacional. Algés não era, como hoje, um dormitório de Lisboa, mas uma aldeia às portas da capital. Houvera também um outro café, o velho Cristal (se a minha memória não atraiçoa o seu verdadeiro nome), com a estrutura em ferro e uma singela escada em caracol que conduzia ao 1º andar. Porém, este seria destruído, em inícios da década de 60, para dar lugar a um monstro de betão (o Catavento) que ainda funcionou como café e depois como supermercado. Hoje ainda não tive coragem para verificar a sua actual vocação.
Por esses cafés paravam algumas figuras ilustres da nossa cultura. Lembro, por exemplo, Manuel Ferreira e Augusto Abelaira que ora liam ora escreviam fragmentos das suas obras. Também Vasco Graça Moura, então estudante de Direito, se embrenhava nos calhamaços do seu curso - não sei se terá escrito aí alguns poemas dessa época. Havia ainda os conspiradores sempre desconfiados dos ouvidos atentos da mesa ao lado, possíveis pides ou meros informadores. No fundo éramos quase todos conspiradores, uns menos outros mais, naquele tempo ditatorial que ia corroendo os nossos desejos e sonhos juvenis. Mas os nossos projectos eram muitas vezes mais teóricos do que práticos. A queda do regime era mais uma ansiosa espera do que actividade real. Nem em todos obviamente. Nos cafés também se passavam de mão em mão planfletos ou livros clandestinos. Fumava-se muito nos cafés, pois apesar das muitas proibições do regime, contrariamente à actualidade, podia-se fumar em espaços fechados (a saúde pública não era ainda uma prioridade). Havia apenas um inconveniente para aqueles que se arriscavam a trocar os fósforos pelos isqueiros, ao poderem ser surpreendidos pelos fiscais que controlavam as licenças para seu uso. Caso não as tivessem eram multados. Um modo bizarro, dizia-se, de Salazar proteger a indústria fosforeira nacional.
Também se namorava. Às vezes tudo começava com um ligeiro encosto de joelho com joelho sob a mesa, uma involuntária voluntariedade. Claro que os gestos amorosos tinham os seus limites. A moral sexual era muito rígida e serôdia, sobretudo no que dizia respeito à sua exibição pública.
Os proprietários de alguns cafés é que não apreciavam muito estes consumidores de "bica" por uma manhã ou uma tarde. E começaram a afixar uma tabuleta onde se dizia expressamente: "É proibido estudar". Isto num país com tantos analfabetos! Mas negócio é negócio, e eles lá tinham de sobreviver.
Discutia-se filosofia, arte e política. Discutia-se muito. Embora por vezes os diálogos fossem substituídos por monólogos a três ou quatro vozes. Nem todos sabiam o mesmo. Havia gente de leituras várias, outros nem tanto. Mas acabávamos todos por aprender alguma coisa.
O café era um lugar de espera, de meditação e de boatos. Aliás, não se poderá escrever uma história da nossa cultura moderna ou uma sociologia da cultura sem uma geografia dos cafés das principais cidades e vilas do país. Românticos, simbolistas, modernistas, neo-realistas e surrealistas sacralizaram à sua maneira muitos desses lugares. As tertúlias iam surgindo ao sabor dos tempos culturais e políticos, algumas com vida efémera outras com vida mais longa. O café era um espaço de convívio e de confronto de ideias. De preguiça esperançosa, também. E de tédio, quando a espera do tempo novo nos exasperava. E nada se passava.
Almada Negreiros - Auto-retrato num Grupo
Em Algés, durante o dia, escolhíamos sobretudo o Ribamar, pois as suas paredes envidraçadas deixavam passar a luz com abundância, mesmo em dias soturnos, e permitiam-nos prolongar o olhar sobre o rio, numa cumplicidade entre o mundo interior e a paisagem. Mas à noite era o Tamar o nosso preferido. Ou melhor, o seu longo corredor, uma extensão que separava os consumidores da "bica" nocturna e o salão de chá destinado aos "burgueses" mais acomodados. Nesse corredor, mesas de um lado e do outro, misturavam-se estudantes, aprendizes de poetas e funcionários de serviços, todos identificados com a oposição ao regime. Era um mundo simultaneamente aberto e fechado. Um espaço rectangular mais ou menos controlado e reservado a dialogantes contestatários. Depois as longas noites, sobretudo no Verão, dispersavam-nos por tascas, cervejarias (o Relento fechava às 4 da manhã), ou em deambulações sem nexo pela marginal de Algés. Naquele tempo éramos felizes? Talvez não. Por isso havia os que partiam, quando se conseguia passaporte, algo problemático a partir do início da guerra colonial, sobretudo para Paris, a cidade-quimera da nossa geração, onde a liberdade possibilitaria a virtualização dos nossos desejos.Hoje a maioria dos cafés foi desaparecendo ou foram-se transformando em híbridos e bizarros snacks. Alguns sobreviveram; é por isso urgente fazer a sua história e cartografia. Entretanto muita coisa mudou. Os livros sobre as mesas dos cafés vão sendo substituídos por minúsculos computadores. Outras formas de ler e de ser. Os modos de convívio alteraram-se, os escritores fecham-se em casa e os poucos leitores (aliás, em Portugal nunca foram muitos) também.
Será possível reinventar o espírito das tertúlias? Ou será apenas uma esperança de velhos caturras que querem teimosamente reencontrar o seu passado no presente?


segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

A Meia Desfeita das Presidenciais

Que o poema fique. E que ficando se aplique
 a não criar barriga a não usar chinelos.
Manuel Alegre

Cavaco ganhou. Conforme as expectativas de todos, mesmo daqueles que com ele concorreram. Manuel Alegre foi perdendo a força da voz. Ser poeta e presidente da república - uma contradição pela natureza das coisas. Há 5 anos ainda tinha a ilusão de ser uma convicção alternativa. Agora nem isso, pois a actual conjuntura, com a debilitação progressiva do projecto socialista de esquerda, praticamente sem espaço no seu partido de pertença, retirou-lhe fôlego e capacidade de luta.

Pintura de Júlio Pomar

No tempo da I República, em 1923, houve um caso excepcional: Teixeira Gomes (escritor de crónicas e novelas) foi eleito presidente. Aliás, durou pouco (2 anos), como todos os outros parceiros do regime. Exilou-se depois na Argélia e aí morreu (1941), talvez feliz, esse algarvio com alma de aventureiro. Mandou às urtigas a Pátria. Cansou-se como muitos outros. A voz literária e a do poder dificilmente podem coabitar.
O Cavaco, pelo contrário, certamente avesso a leituras poéticas, pode, com o seu pragmatismo, construir, ao ritmo do rigor dos números, a máscara retórica do estadista fardado de salvador da pátria. Quanto ao resto, para o povo estas eleições foram a legitimação da indiferença (53% de abstenções mais uns votos em branco e nulos). Este arremedo de democracia está em crise, embora não seja caso único nesta Europa à deriva. Confessemos: nunca umas eleições foram tão chatas como estas. Aliás as sondagens já tinham dito tudo. Até os "socráticos" respiraram de alívio: mais uma voz incómoda atirada para o purgatório. Mas, nesta farsa ritualística, nem sequer faltou um anti-herói (o pícaro), vindo da Madeira, de seu nome Coelho. Este foi a paródia castiça e crítica deste festival eleiçoeiro, na boa tradição de Gil Vicente ou do teatro revisteiro. O candidato do PC foi sempre igual a si mesmo, candidato do PC. Mais não era preciso. E o homem da AMI reuniu outros votos de protesto contra o statu quo partidário.
Cidadãos precisam-se nesta Europa desalmada. É urgente recomeçar a reflectir e a agir, e depressa, antes que as aves de rapina, os elegantes mediáticos "neoliberais", devorem o que resta da dignidade sociopolítica e cultural conquistada desde o século XX pelos povos europeus.


domingo, 23 de janeiro de 2011

Para exorcizar as comoções eleitorais

Alguns poemas de Alexandre O´Neill:


AMIGOS PENSADOS: VATE 65
Pinturas de Miró
                                                                  
Crocodiletante
lacricrimejante
ou vociferante
ao cri-cri da crítica.
                         
Abaixo a política!
                         
Antes a poesia,
que é coisa mais séria.

Seria?



                                         
A HISTÓRIA DA MORAL

Você tem-me cavalgado,
seu safado!
Você tem-me cavalgado,
mas nem por isso me pôs
a pensar como você.

Que uma coisa pensa o cavalo;
outra quem está a montá-lo.




PEDRA-FINAL

Tanta gente,
tantos enredos
até ficarmos para sempre
quedos!

Para sempre? Não!
Que outros (mínimos) seres
já trabalham na nossa remoção.



sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

As Eleições Presidenciais - O Carnaval Negro


Desenho de Rogério Ribeiro


Os portugueses  são uns gastadores e, segundo as estatísticas, produzem pouco. Gastam até ao cerne da própria alma nos festins da efémera abundância. Fundos europeus a diluirem-se na areia sôfrega das nossas praias. Há, claro, os que ficam sempre de fora ou os que se aconchegam com as migalhas. Que remédio!
O reino está falido, nada de novo no tempo histórico cíclico desta terra. Destino ou vocação colectiva? Tanto faz. De lamentações estamos ditos. É um modo colectivo de estar, a não ser nos raros surtos de raiva e revolta. 
Esta campanha presidencial liberta um aroma próprio de um reino à beira-fim. Monólogos apenas com efeitos mediáticos. Sinais óbvios de uma democracia pobre, porque amputada de uma verdadeira cultura da cidadania. Um Carnaval Negro, diria o Raul Brandão se fosse vivo.
Mas há um tempo para lamentar ou enraivar, outro para votar. São estas as regras democráticas. Cumpre-as quem quiser, valha-nos isso. Se valer a pena (o esforço), votarei talvez no artesão das palavras - apesar do equívoco apoio socrático (que o filósofo nos perdoe!) -, pela vizinhança dos gestos criativos. Com ele comungo a sua antiga interrogação poética: "Conspiradores do impossível onde estais?". Repito: onde estais?
O outro é um sofrível tecnocrata dos números, enredado em teias por vezes obscuras. Não um matemático, pois a este caberia o rigor capaz de criar universos alternativos. Vem do povo, segundo diz, mas o povo é na sua retórica mediática um mero artefacto propagandístico. Terá certamente muitos votos no mundo urbano e também no mundo rural, curiosamente para cujo declínio e morte anunciada muito contribuiu, na companhia dos seus pares da elite política que há trinta e tal anos nos governam.
Neste reino de betão rodoviário (talvez num futuro percorrido por veículos fantasmas), corrupção e compadrios, há um vazio de ideias e valores. Enfim, a imagem triste de um país sem rumo, numa Europa subjugada à hegemonia alemã.
 Depois o capitalismo financeiro aí está em força para pagarmos com altos juros os excessos do festim das nossas ilusões europeístas. Foi um fartar breve e talvez já nem alma tenhamos para vender ao diabo. Restar-nos-á o corpo colectivo condenado de novo ao exílio?

  "Nevoeiro"  
                   
Pintura de Rogério Ribeiro
Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer -
Brilho sem luz e sem arder,
Como o que o fogo-fátuo encerra.

Ninguém sabe que coisa quer.
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...

É a Hora!
                           Fernando Pessoa


segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Gerhard Richter - Paisagem marítima (com nuvens)

1969, óleo sobre tela

Gerhard Richter,  pintor alemão nascido em Waltershofen (1932), orientado tanto para o foto-realismo como para a Pop Art


"Se eu fosse pintor passava a minha vida a pintar o pôr do sol à beira-mar. Fazia cem telas todas variadas, com tintas novas e imprevistas. É um espectáculo extraordinário.
Há-os em farfalhos, com largas pinceladas verdes. Há-os trágicos, quando as nuvens tomam todo o horizonte com um ar de ameaça [...].
Um poente desgrenhado, com nuvens negras lá no fundo, e uma luz sinistra. Ventania. Estratos monstruosos correm do norte. Sobre o mar fica um laivo esquecido que bóia nas águas - e não quer morrer..."

Raul Brandão, Os Pescadores, 2ª ed., 1924





domingo, 16 de janeiro de 2011

Vítor Alves, Carlos Castro, os valores e a comunicação social

Cesare Sofianopulo, Máscaras, 1930



 Cada época tem os seus "heróis" e destaques. O que sabemos hoje do mundo, exceptuando o que nos está na vizinhança do corpo, é construído pelos actores/produtores da comunicação social. O mundo é pois para o cidadão comum um enredado de imagens ao sabor das sábias estratégias dos meios de comunicação de massa. Eles lêem o mundo por nós. Vêem e falam por nós. O universo de valores que rege o mundo é portanto estruturado em função de mais-valias imaginárias com óbvias repercussões financeiras.
A propósito, comparemos a dimensão televisiva ou da imprensa relativamente a dois recentes mortos "ilustres": Vítor Alves e Carlos Castro.
A morte do militar da revolução de Abril foi quase citada como um evento de rotina. Todos os dias alguém morre. E os mais velhos estão naturalmente mais sujeitos à morte depois das chamadas doenças prolongadas. A morte de Vítor Alves foi uma morte "natural". Tinha 76 anos. Mas o que a sua vida representou enquanto um dos actores principais da nossa grande última ruptura histórica não teve quase dimensão comunicacional.
Já Carlos Castro, para além da espectacular brutalidade da sua morte, tinha uma actualidade sociocultural de excepção na perspectiva mediática: ele era o cronista eleito das tricas e contra-tricas do nosso mundo de estrelas efémeras, dos famosos do estilo, do estilo dos famosos e da iluminação mediática. De facto, não será este mundo já de certa forma uma criação do próprio universo dos mass-media? Modelos, estilistas, cronistas mundanos, futebolistas, actores de passerelle, apresentadores televisivos, caneças, jardinas, castelos brancos e outras sombras do nosso jet set não existiriam, independentemente do seu valor, sem a legitimação das chamadas revistas cor-de-rosa e das televisões.
Além disso, a morte de Carlos Castro nada teve de natural. Envolveu castração a saca-rolhas, cabeça violentamente destroçada por um monitor de TV, rasgões no rosto, asfixia, todo um ritual sádico (ou sadomasoquista?) que parece ter durado 2 horas. E tudo isto aconteceu no centro de New York, a capital do império do imaginário ocidental.
Quanto ao provável homicida, o jovem aspirante a modelo Renato Seabra, é exibido recorrentemente pelas televisões com o corpo quase desnudado, relevando-se a sua masculinidade esbelta. Talvez um corpo entontecido pelo desejo da fama súbita, daí a desmesura e a surpresa do seu provável acto ritualístico.
Esta história tem todo o sal da terra, acorda impulsos inconscientes e, além disso, inscreve-se na margem erótica do universo gay. Contém obviamente todos os ingredientes para se tornar uma mais-valia informacional. Parece-nos estar na fronteira entre o real e a ficção.
Vítor Alves e Carlos Castro: duas narrativas que ajudam a entender como se faz a História da nossa contemporaneidade. Esta, para os nossos fazedores de opinião, é cada vez mais o instante efémero do olhar sobre aquilo que pode despertar mais facilmente os obscuros desejos da comunidade.
Vítor Alves nunca existiu - nem o 25 de Abril - é apenas um nome que morre. Carlos Castro, por sua vez, tornou-se num herói do nosso tempo. E Renato Seabra, um paradigma da fama efémera, o Caim da nossa história, tem todas as condições para vir a ser não um anti-herói, mas aquele que teve a coragem, pagando com a própria liberdade, de dar o último retoque na arquitectura de um herói contemporâneo do nosso imaginário colectivo.
Não deixem por isso todas as cinzas de Carlos Castro espalhadas pelas ruas de Nova Iorque (como era, aliás, seu desejo), guardem algumas para as casas daqueles que a sua pena ajudou a tornar famoso. Não se pode pedir mais.

sábado, 15 de janeiro de 2011

Algumas palavras ao sabor do tempo


Renato Guttuso (Itália, 1911-1987), "A morte dum herói", 1953



Pertenço a uma "geração" (um conceito obviamente polémico) cuja cultura se media pela capacidade de utopia que nos coubera em sorte. Mudar a vida. Mudar de vida. Transformar o mundo. Acreditar que a História tinha um sentido único: a libertação final de todos os oprimidos. Toda uma dimensão escatológica. Dos milhões de egoísmos, libertar a génese de uma solidariedade de sentido quase religioso. Mas a condição humana é mais complexa e a sua História também. Esta seria a nossa dolorosa lição do tempo.
Entretanto vieram outros modos de comunicação a introduzir mais vozes no diálogo do mundo. E também mais ruído, muito ruído, capaz de ensurdecer encantatoriamente os cidadãos mais incautos.
Éramos mais felizes in illo tempore? Não sei. Não se pode medir a felicidade, pois ninguém ainda inventou um aparelho capaz de o fazer com exactidão, pese embora as caricaturais pesquisas/estudos no domínio psicossociológico, uma moda pseudo-científica deste tempo.
Hoje não tenho ilusões, ainda que isso não seja uma certeza. Valerá a pena ensaiar modos de comunicação com o mundo? Não será o universo vocal da internet um acumular de monólogos de solidão?
Sem a convicção das respostas a estas questões, enquanto "cidadão do mundo" (passe a ironia), talvez valha a pena ir dizendo nas tertúlias do ciberespaço (caso alguém se motive com o teor da minha voz) o que em mim vai dialogando sobre os eventos desta época. Sabiamente humilde, poder interrogar-me com os outros sobre o modo de nos situarmos, com a liberdade possível, nos concertos e desconcertos do mundo e sobretudo deste Portugal (um destino imposto), numa época de crise e numa cíclica repetição das imagens colectivas da decadência nacional.
No tempo curto dos arruadores eleitorais para a presidência, um rumor efémero, cabe-nos sobretudo reflectir como o sonho de há 30 anos se foi esgotando, sem esquecer contudo que o mundo não se reduz às querelas político-partidárias ou económico-financeiras, à contabilidade do deve e haver. Talvez seja possível encontrar no quotidiano gestos cuja dimensão ética e estética façam de cada instante um simulacro de eternidade.
E mesmo que isso não nos liberte da morte, nem dos tensos mistérios do universo, ou dos problemas imediatos do estômago e do coração, talvez nos dê algum ânimo para continuar a caminhada individual e a colectiva. Os outros que digam o resto.