sábado, 20 de fevereiro de 2016

Repovoar os espaços perdidos (a propósito duma fotografia de Ana Maria Pinto)





Ana Maria Pinto, Porto, 2015




Repovoar os espaços perdidos (a propósito duma fotografia de Ana Maria Pinto)


 Repovoar, através do olhar, os espaços perdidos é um acto de afecto e um apelo a uma viagem imaginária através das fissuras do tempo. Na quase obscuridade da sala, emergem, por entre os actuais destroços, antigos sussurros e  gestos dos seus habitantes:  débeis sulcos de pés de crianças em volteios lúdicos; passadas lentas e pesadas de velhos enclausurados nas suas memórias; uma rapariga à janela na expectativa de um aceno do amante clandestino; a irmã mais velha a tricotar com disfarçado enfado; a porta, agora de um azul esmaecido, a abrir-se à chegada de um visitante inesperado; rituais festivos ao ritmo do tempo; amores nascentes e jazentes; juras e traições; nascimentos e mortes.
 Todo um cenário onde perpassa a tensão entre o efémero e o eterno, como é próprio duma poética das ruínas. A luz triangular simula essa fronteira entre o visível e o invisível, entre o real e o virtual. O bolor do tempo (manchas e detritos) corrói a madeira do tecto, o soalho ou as paredes, mas coexiste com as formas perenes, porque a câmara as fixa para sempre.  E o tom róseo-cinza dominante, como convém, remete para o crepuscular, pois a imagem fotográfica tem a capacidade de nos situar na fronteira entre as trevas e a luz. Entre o interior em decomposição e a luz exterior filtrada pelas janelas rectangulares estabelece-se um singular pacto de silêncio sacral. O sublime desta imagem está na arte de o saber ritualizar.






Ana Maria Pinto, Porto, 2015

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Os corpos da minha paisagem (1) - A propósito do pintor Edward Hopper


Edward Hopper (EUA, 1882-1967),  "Eleven A. M.", 1926


 Atraem-me os rostos do silêncio, habitantes urbanos de espaços fechados, na vã procura de um sinal que uma  janela virtualmente pode propiciar, embora esta mulher de Edward Hopper pressinta no seu íntimo que a fronteira é inexpugnável. O seu corpo nu parece aqui acentuar a vulnerabilidade daqueles que se sabem sulcados pela morte do desejo, por isso funciona como uma metáfora da desolação. O rosto está colocado de molde a esconder-se ao nosso olhar e os longos cabelos escuros, a contrastar com o marmóreo da pele, prolongam este indizível sentimento de ausência e clausura. O corpo torna-se então um objecto que faz a transição entre a escuridade dos móveis e a ilusória luz exterior. A postura é de expectativa, mas sem convicção, legível na pose das mãos. Os pés paradoxalmente calçados deixam pressentir uma eventual saída futura, mas em frente o seu olhar depara-se com as paredes dos prédios fronteiros, num significante bloqueamento. Nesta pintura o nu feminino perde qualquer dimensão erótica, pois o corpo coisifica-se nesta espera absurda. Quem poderá esperar? O amante infiel que a esqueceu definitivamente? O inviável anjo libertador? De qualquer modo, tanto a janela como o quadro suspenso na parede são meros simulacros de abertura ao exterior: a solidão é irreversível neste "Eleven A. M.".


Edward Hopper (1882-1967), "Sol numa sala vazia", 1963