terça-feira, 22 de maio de 2012

Palavras e Paisagens


Gustave Courbet - O mar em Palavas (1854)

O mar      

De onde vem o fascínio do mar
o sussurrar dessas maresias de ternura e medo
íntimas vozes no deserto do ar

A poesia é a tensa escuta
desse rumor da nossa orfandade
o terso silabar de um búzio




Júlio Pomar - Mulheres na Praia (1950)


Paisagens

rostos hirtos     areia
braços que espreitam
por entre gretas e medos

casas ósseas    peixe magro
redes mergulhadas
nas carnes
como veias
vultos embebidos na mesma morte
cabeças cavalgando o meu sangue




Pierre Puvis de Chavannes - Jovens à beira-mar (1879)


Jovens à beira-mar
  
Flutuantes e tristes
Corpos de fronteira
Perdidas na solidão das falésias
Esquecidas
Entre flores marinhas
Como se voassem
Por dentro
Sereias amputadas
Entre a terra, o céu e o mar

Que espera e meditação as ocupa
Na desnudada paisagem dos seus corpos?

Donzelas
Estátuas volantes do desejo
Na clausura dos interditos
Uma tacteando os longos cabelos
Confrontando o mar
Outra de costas
Num desespero de quietude
Outra
Numa aparente indiferença do olhar
Ocupam na lassitude dos corpos
O pesadelo das paixões sem objecto
Figuras no território das definitivas esperas





Turner -  Pôr-do-sol


Poente

Sente-se um hálito roxo no entardecer
Objectos esparsos a nascer
Sobre a terra
Corpos ociosos
Dançam nas dunas
Como se celebrassem
Os silêncios do acontecer
Nem uma folha a morder o cio do ar
Nem o múrmur dos ossos
Nas areias da paisagem
Nem vermelhos solsticiais
A derramarem-se nas meninas do olhar
Apenas sons longínquos de remos a ciar
Rumores perdidos a navegar




Caspar David Friedrich - Nascer da lua no mar (1822)

quarta-feira, 9 de maio de 2012

A metamorfose: do dia dos trabalhadores ao dia dos acossados


Goya - Saturno (1820-23)


“O espantoso não foi os portugueses terem acorrido em massa ao Pingo Doce – 50% de desconto é muito e estamos muito pobres. O extraordinário […] é não terem acorrido em massa às manifestações ou cercado o parlamento. […]. Essa resiliência nacional é histórica. Foi esse atavismo que nos permitiu aguentar 48 anos de ditadura sem que a oposição organizada fosse substancial. […].Portugal continua a ser o país do retrato de Alexandre O’Neill: uma feira cabisbaixa, questão que temos connosco mesmos, remorso.”

Ana Sá Lopes, jornal  i, 3-5-2012



Bruegel - O País da Abundância (1567)

Em vagas sucessivas, carros a empurrar carros de mão com toda a gana do assalto aos arraiais do amigo/inimigo (as prateleiras dos supermercados Pingo Doce, repletas de manjares dos deuses a derreter os olhos do povo, por cada dois pagas um, pechinchas a acalorar os estômagos vazios, ou em vias disso, dos consumidores), lá iam famílias inteiras e inteiriças, pais, pais dos pais, avós e avôs, infantes e infantarias, varões e varoas assinalados em busca da nova Taprobana: o país da Cocanha, esse utópico reino da Abundância, tal como Bruegel tão exemplarmente a pintou em 1567, tornado pela benfeitoria miraculosa do Rei Ubu da Distribuição Lusitana realidade por um dia, até ver: o 1º de Maio de 2012. Assim se faz a nova História – o celebrado dia do trabalhador viraria aos olhos estupefactos do mundo dia dos consumidores consumidos pela astúcia voraz de um luso mercador, para ilustração moral do mundo do trabalho. No rio de Lete ficarão para sempre esses corajosos trabalhadores de Chicago que, em 1886, se manifestaram pela reivindicação das 8 horas diárias de trabalho e viriam a consagrar tal data como o seu dia. Mas a partir do passado dia 1 de Maio tudo mudou no mundo: um novo ciclo se abriu ou não fôssemos nós os pioneiros da globalização. Claro que nem tudo correu bem, o que daria azo às críticas sempre maléficas da esquerda.

Ensor - A Raia (1892)

As massas são controláveis como se pôde observar nas disciplinadas manifestações convocadas pelas duas centrais sindicais, apesar da austera austeridade da Troika e dos seus lacaios, mas uma multidão em fúria consumista não. Os últimos a chegar deparavam com o horror do vazio, por isso as hordas em movimento precipitavam-se em fúria para o seu destino, num atropelo desvairado de desvairadas gentes (arraia-miúda, arraia-média e arraia-miudinha). Muitos destroços iam ficando pelo trajecto entre a entrada, depois de longas horas em impacientes filas sob o olhar atento dos seguranças, e o lugar das Delícias: crianças, ceguinhos, coxos, velhinhos, mulheres obesas ou escanzeladas; chinelos, bengalas, chupetas, saquetas de rebuçados, óleos derramados, sangues dos arranhões da luta pela sobrevivência ou menstruais; um carneiro vivo perdido no vaivém das imperiosas passadas; arroz, muitas bagas de arroz como réstias de festas casamenteiras; alhos pisados como em almofariz e cebolas a lacrimejar dos olhos; ananases e anonas a dar um odor tropical; rins com litíase de vaca e porco; seguranças inseguros e funcionários, amargurados com o infernal feriado, espezinhados; fígados de raia e raias desfiadas, petingas amarfanhadas; amálgamas de cabidela, águas de Colónia e aguardentes; bolas de naftalina; bacalhaus de rabo na boca a saber ainda a maresia; sacos rotos de farinha a empoeirar os rostos carnavalescos, e até um enorme leão de plástico a fingir de verdadeiro. Todo um magma em movimento sôfrego, como a fúria de um vulcão ou de um tsunami. Primeiro de Maio, ex-dia dos trabalhadores, agora dos mercadores, sábios e astuciosos no lograr das massas ditas consumidoras. Massas, farinhas ou multidões tanto faz. Carcaças pelo chão. E nem faltaram os abutres a esvoaçar junto ao tecto, na mira dos despojos da batalha. O caos em movimento – uma multidão de desejos de dentes arreganhados, máscaras de terror das fantasias grotescas de Goya ou Ensor.

Goya - Cabeça e quartos de carneiro (1808-12)

No altar, o Rei Ubu gargalha prazenteiro e sorrateiramente vai dando alfinetadas nestes servos alvoroçados deste reino sem rumo. Com uma luneta avista eufórico, lá ao longe, as manifestações ordeiras dos obreiros, seja na Alameda seja na Avenida da Liberdade, com os líderes sindicais a apregoar  slogans rituais para os cem mil do costume: estandartes, cartazes, bandeiras vermelhas e negras, caricaturas das Troikas, palavras de ordem (não da desordem), passo certo como exército proletário que se preza. E Ubu escuta-os cinicamente risonho: “Exploram-nos, façamos-lhe a vida negra com as bandeiras da fome!”; “Abaixo O Bezerro de Oiro e seus serventuários!”; “Abaixo os que secam os Sonhos colectivos!” “Abaixo os vampiros que voam cada vez mais raso!”. E assisadamente o nosso Ubu murmura sarcástico: “ Paroles, paroles …! Quem vos dá o pão sou eu, e não esses retóricos palradores da fome dos outros. Sou o Rei Ubu das mercadorias, se eu fechar a loja e me puser na alheta para a Holanda, morrem de fome. Num mundo de loucos só um louco Rei como eu vos pode governar. Vinde a mim políticos, meus serventuários, lá vos tenho que atirar com mais uns ossos de luxo para vos enredar no meu rebanho!”. E o meio milhão que, num corrupio frenético, invadiu por esse país as Catedrais do Agridoce - uns de saca cheia, outros com ela a meio, e outros, os fracos perdedores da corrida, dela vazia, ou melhor, das ilusões de tal bondade mercantil - não pode ver nem entender essa outra multidão (aqui para nós bem menor) que sabe que as astúcias mercantis dos reis Ubus deste mundo só dão o que podem tirar com lucros abusivos a estes acossados pelas miragens do dito consumismo. Dividir para bem reinar. E em tempos de crise, as migalhas são miragens de suculentas iguarias. Mas ao menos, diria eu, poupem-nos a este deprimente espectáculo. Pois é, pão e circo, mas quando o pão escasseia pode o circo afundar-se nas suas ruínas. Claro os cavalos em pânico e extenuados no fim da corrida também se abatem. Talvez um dia todas as pessoas se lembrem que, antes de consumidores logrados pela “merdre” dos ubus, são pessoas com inerentes direitos à dignidade. Mas enquanto o estômago aperta lá estarão de braços abertos os Ubus deste mundo e do outro. A fome tem muita força!

PS: Pedi emprestado ao dramaturgo Alfred Jarry (1873-1907) o nome da personagem burlesca, absurda e tirânica do Ubu roi, mas qualquer coincidência com a realidade deste meu texto é um mero produto do acaso, com excepção do “merdre”, provocação ubusiana ao público com a qual se iniciava o seu espectáculo de 1896.


Ensor - Esqueletos lutando pela posse de um enforcado (1891)