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Gustave Courbet (1819-1877) - Auto-Retrato, O Desesperado (c. 1843-45) |
Depois de
uma longa ausência, por motivos alheios à minha vontade, retomo com
mais rugas da idade e do desalento as despretenciosas crónicas sobre
o espectáculo deste mundo. Não me apetece falar de recalibragens
nem do despudor retórico destes abutres, os daqui e os da estranja,
que nos “governam”, nem da sonolência que parece afectar este e
outros povos igualmente desditosos. Talvez porque está tudo dito e
redito ou talvez porque me faltem as palavras para me reencontrar com
a fúria lúcida necessária nestes dias de cinza. Basta de
trovadores da desgraça, embora este mundo esteja amputado de graça,
basta de lamentações e outros ecos da perdição. Os bonifrates do
poder, numa surdez calculada, repetem os gestos habilmente orientados
pelo grande manipulador, actor coberto pela neblina do anonimato. A
engrenagem funciona e aparentemente nada a pode deter. Os cenários
montados por servis agentes, nos meios de comunicação social,
completam a eficácia do sistema, ou seja, a retórica imaginária do
poder absoluto. Os mercados, esse sujeito sem contornos e sem alma,
um vazio imperativo, ditam o nosso destino. Estamos armadilhados na
teia destes símbolos habilmente forjados para nos submeter. Não é
sequer uma conspiração dos grandes financeiros para dominar o
mundo, pois eles já o dominam. A novidade está nesta estratégia de
imposição de uma única visão do mundo como algo natural ou
decorrente da genética humana, assente na credibilização da
iniquidade através das máscaras da equidade do dito mercado. Chamar
ao lobo cordeiro e ao cordeiro lobo. Ou convencer-nos que em cada
vítima há um coração de carrasco, em cada carrasco um coração
de vítima. A coisificação das relações humanas produz cegueira.
É um mundo sem avesso e por isso naturalmente sem horizontes
alternativos. Estamos condenados a ser os nossos próprios
carcereiros. E aqui está como um cronista bem intencionado, contra
sua vontade, se foi transformando num trovador da desgraça.
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Paula Rego - O Jardim do Interrogador (2000) |
Então eis
que, neste patriótico interregno de silêncio e quase apatia, a
morte dum homem de seu nome Eusébio – originário de um bairro
pobre de negros da então colonial Lourenço Marques e que se
tornaria um fabuloso artista da bola, reconhecido mundialmente e por
isso manipulável, no quadro da cruzada salazarista, em torno do
mítico multirracial ecumenismo lusíada, na década de 60 – vem,
em plena crise, reconfigurar a nossa cenografia mitológica. Como
afirmou solene Luís Filipe Vieira, “Eusébio já tinha ganho em
vida a condição de mito” e a sua morte, digo eu, eleva-o à
condição de super-mito, ou seja, numa identificação
hiperbolizada “Eusébio é Portugal”, como nota José Mourinho. É
então urgente reescrever a Mensagem de Fernando Pessoa,
pois, segundo os escribas de
serviço, este grande artista da bola teria sido a primeira figura do
português global. E o discurso mitológico amplia-se: imortal
símbolo de Portugal; Rei-Ídolo ou King, para dar um tom mais
universal e eternizado.
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Henri Rousseau (1844-1910) - Os jogadores de futebol (1908) |
Realmente,
para além de Ronaldo, próximo
Comendador por iniciativa presidencial,
onde encontrar hoje alguém que pudesse preencher o actual vazio de
heróis lusos? O Barroso, presidente da Comissão Europeia, palavroso
executor dos senhores do nosso destino? O Cavaco destes tempos
tormentosos, actor
menor para os desafios desta
farsa trágica? O Coelho,
salvador da pátria, que
retoricamente identifica a sua missão de destruir o que resta deste
país com o próprio Portugal? O Seguro, o mais inseguro líder
do exército “socialista”?
Certamente
Eusébio, conforme cruzada em
curso, merece a máxima
consagração nacional: o seu corpo deverá vir a ocupar um lugar ao
lado de outros imortais do Panteão Nacional, aliás
bem heterogéneos e tensos,
para não dizer
pior, nessa coexistência
forçada (escritores
liberais e democratas como Almeida Garrett, Guerra Junqueiro, João
de Deus ou Aquilino Ribeiro; políticos da 1ª República como
Teófilo Braga e Manuel de Arriaga; Sidónio Pais, um precursor da
ditadura; Óscar Carmona,um eminente representante do Estado Novo;
Humberto Delgado, um digno
opositor da ditadura e finalmente a popular fadista Amália
Rodrigues).
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Dorothea Lange (1895-1965) - Neto de fazendeiro (1939) |
Claro
que os excessos retóricos
ditirâmbicos, repetidos
à exaustão nas televisões e na Imprensa, correm o risco de se
desgastar prematuramente. Aliás, eles sabem lá o que é um mito ou
um símbolo, e
assim banalizam o que, na sua
óptica, não
devia ser banalizado. Sem
disso ter consciência, estes discursos consumidos e a consumirem-nos
à saciedade tornam-se aceleradamente lugares vazios, a não ser que
uma estranha nostalgia bolorenta
dos tempos imperiais do chamado
Estado Novo os reanimem. De qualquer modo o quase unanimismo
perturba-me e assusta-me. Mas sejamos claros, Eusébio merece ser um
símbolo do nosso futebol, nas suas virtudes e nos seus defeitos, o
problema está em transportarem
o símbolo para o domínio da
nação. Calem-se as Musas que outro feito se alteia, sussurrará
estranhamente Camões nos Campos Elísios. Mas de facto que
importância tem altear a bota e desvalorizar a pena neste mundo de
computadores? Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades!
Porém
convém, no meio da algazarra, sobretudo não esquecer o menino negro
que pôde realizar o sonho de se tornar numa estrela futebolística.
É esse jeito de sonhar que deve ficar como imagem de Eusébio. Os
mitos são as ficções dos
que vão ficando, por
enquanto. Nada mais.