terça-feira, 25 de outubro de 2011

Indignados



Jan van Eyck,, "A Adoração do Cordeiro Místico (painel central retábulo de Gent)", 1432 




Hoje acordei com o corpo vazio. Talvez a falta do Verão que não tive, ocupado a escrever um livro. Esqueci-me do calor meridional, envolto nas neblinas persistentes da minha aldeia numa colina a ver-o-mar. O calor veio tarde, outoniço a saber a Verão – a desordem das estações ou a nova ordem das estações. Tanto faz!
Na Líbia, mataram o tirano, em jeitos perversos; as imagens dizem tudo. Os seus ex-amigos do Ocidente agradecem, não fosse ele dar com a língua nos dentes e fazer algum sangue a espirrar-lhes o rosto de petróleo. Na Europa, políticos sem jeito não sabem como degolar o cordeiro na Acrópole. Afiam-se as facas dos senhores do mercado. Jovens por todo o ocidente instalam-se nas praças, outros menos jovens também manifestam a sua ira. Mas todos parecem estar sem rumo. Os velhos partidos de esquerda perderam a capacidade de aglutinação. O corpo colectivo em movimento sabe o que não quer, não o que quer. Eu também estou indignado. Com o Verão que não tive, com os meus governantes que aumentam o orçamento das forças de segurança, mas reduzem substancialmente o da saúde ou o da educação ou o da cultura, e sobem delirantemente os impostos. Em nome da sagrada austeridade, do equilíbrio financeiro, do pacto com a troika, lá vamos todos no engodo. Daqui a dois anos, depois desta caça inglória ao já depauperado ”tesoiro popular”, estaremos nas vascas como os helenos.
Mas, para gáudio dos descrentes, a animar a soturna festa, os polícias e os militares também estão indignados com o “bando de incompetentes que nos desgovernam”. Estes e os anteriores que contrariamente, o ciclo era outro, acicatavam os apetites consumistas do povo ou se deslumbravam com os infinitos quilómetros de auto-estradas, algumas apenas percorridas por fantasmas ou pedras rolantes. Assim se retalhou a paisagem e se acelerou o despovoamento do dito interior. Ficaram apenas alguns resistentes sem ferrovias ou transportes alternativos. São velhos, pouco consomem, pouco votam. A ordem era para consumir, numa promíscua relação entre o público e o privado. Vieram as P.P.P., as parcerias público-privadas com contratos leoninos a favor dos empresários que construíram hospitais e auto-estradas a perder de vista. Funcionários ora no governo, ora na administração das empresas de construção ou do negócio da saúde. Foi, é, um fartar vilanagem. O povo é sereno, até ver.

Pieter Bruegel - A Torre de Babel (1564)
Os nossos académicos e neo-liberais  governantes estão agora entre a espada e a parede. Ou dobram o orçamento do aparelho militar e policial, engordando perversamente o Estado, embora haja obviamente gorduras boas e outras não, tudo depende do ponto de vista, ou então arriscam-se a ter passivas forças ante o ímpeto dos famigerados “enragés”. O caos à espreita em cada esquina, a não ser que um messiânico ditador, embora em vestes “democráticas” ou “neo-liberais”, venha impor a velha/nova ordem. Os ventos da História estão, porém, como as estações, indefinidos e im previsíveis. Mais do que de uma nova política, precisamos urgentemente dum novo paradigma cultural, a nível global. Economia ao serviço da humanidade: comida para todos sabiamente repartida; comer menos mas melhor, a bem do equilíbrio dos corpos. Conceder a todos os povos os meios de produção capazes de garantir a sua sobrevivência. Crescer economicamente de acordo com as asas do desejo dos povos e a respiração da terra. Interditar a acção dos secadores de sonhos. Democratizar os saberes para que a humanidade não se deixe engodar com as palavras gordas das mafias do capitalismo internacional. Criar uma nova ordem internacional fundada em valores de solidariedade e não na voracidade infinita dos especuladores financeiros. Em nome da saúde dos povos e do planeta!
Nada de novo, pensará acertadamente o meu leitor mais atento. Mas, como diria o poeta e pintor Almada Negreiros, “Quando eu nasci, as frases que hão-de salvar a humanidade já estavam todas escritas, só faltava uma coisa – salvar a humanidade.”

Isto digo também eu, que acordei com o corpo vazio mas indignado. A ver o mar!




"Convergências",  Praia Grande, 2011


2 comentários:

  1. Um factual retrato deste " Caos declinável" que são os Governos do Mundo e a Alta Finança especulativa que começou por controlar o dinheiro circulante, depois as matérias primas raras, depois os alimentos, para que a fome fosse o domar das populações e o propiciar de mais desigualdades.Um dia haverá em que as gentes acordarão num uníssono pensamento de revolta e no imparável da suas razões mudarão a ordem vigente.

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  2. O tempo corre e é escasso. Há muito tempo que não vinha aqui. Hoje, como em Outubro, continuas certamente e cada vez mais - e eu também - indignado. Um cansaço, um peso,mas...sem querer baixar os braços.
    Gostei muito deste texto.

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