segunda-feira, 14 de novembro de 2011

O Pecado da Gula, a Expiação e a Redenção

 
Pieter Bruegel, O Velho (c. 1525-1569), "O País da Abundância", 1567



 Depois de 48 anos de rigoroso ascetismo ditatorial, o povo português, com o 25 de Abril de 1974, libertou-se de tal “dieta”, e lá foi reivindicando o direito a satisfazer a fome dos seus desejos. Houve depois o PREC e com ele modos diversos ou antagónicos de entender o conteúdo e os rumos da jovem democracia. Houve confrontos, um pouco de sangue a escorrer nas ruas, e finalmente a “pacificação” do 25 de Novembro. No entanto, o percurso posterior estaria muito aquém dos sonhos acalentados durante a árdua travessia de meio século de “dias cinzentos”. Pelo menos para muitos portugueses. O estado caótico em que nos encontramos hoje, aqui e no Ocidente, parece dar alguma razão aos que idealizaram outras vias para a nossa democracia. A História não é um fatalismo, mas, em cada momento, a escolha, embora condicionada por múltiplos factores político-económicos e socioculturais, de mundos possíveis alternativos. A não ser que entendamos a crise actual, não enquanto mero fenómeno conjuntural, mas como um sinal da definitiva decadência do Ocidente. Mas não choremos pelo leite derramado. Continuemos então com a breve leitura da nossa história recente, na visão de um viúvo de ilusões.
A democracia portuguesa caminharia então, depois de alguns sobressaltos, na década de oitenta, para uma plena integração na Comunidade Económica Europeia. A euforia um tanto provinciana era tal que nos faria dizer paradoxalmente “Finalmente estamos na Europa!”, onde sempre estivemos, ainda que de um modo singular, ao sabor das conjunturas, tanto cultural como economicamente, ou, na versão mítica de Fernando Pessoa, como “o rosto” da Europa: “Fita, com olhar esfíngico e fatal, / O Ocidente, futuro do passado. // O rosto com que fita é Portugal.”
Um novo-riquismo deslumbrado com as remessas doiradas da Europa rica começou então a dominar as elites políticas e propagou-se à “plebe”, com desprezo para actividades como a agricultura, as pescas, a marinha mercante, a indústria têxtil ou a do calçado. Muitos subsídios no sector primário vinham intencionalmente para pagar a nossa improdutividade. Assim consumíamos os excedentes alimentares da Europa rica. Convertemo-nos  então em delirantes consumistas de betão, de automóveis, de telemóveis, e de ilusões promovidas pelas novas Catedrais do Consumo. Uma camada de parasitas foi crescendo a sugar as delícias do Estado adiposo ou dos Fundos Sociais Europeus, numa promíscua relação entre o sector público e o privado. O Estado foi coutada para os partidos do poder (PS e PSD) que aí achavam poiso para os seus apaniguados, para mais tarde os seus líderes virem com a cantilena elegíaca do Estado anafado, omitindo que se inventaram lugares, ao longo dos anos, para as suas clientelas. A Europa rica aplaudia tal consumismo, pois permitia-lhe ter mais um espaço, embora restrito, para escoar os seus produtos. O desequilíbrio entre o que produzíamos e o que importávamos foi crescendo desmesuradamente. O Estado endividava-se e as famílias também, engodadas pela facilidade do crédito e empurradas para a compra de casa própria, a pagar como tributo da posse até aos últimos tempos das suas vidas. De servos da gleba passámos a servos do consumo. O desemprego disparou.
Bruegel - Dulle Griet (1562)

Até que um dia a bolha das ilusões rebentou (2008). Aí veio a inesperada crise internacional. Os bancos americanos e europeus vendiam gato por lebre. Muitos bancos na Europa e nos EUA foram então intervencionados pelos Estados, com o dinheiro dos contribuintes. Em Portugal, o BPN e o BPP, verdadeiros casos de polícia, colocaram-nos na onda. O tempo era afável para os especuladores financeiros, não para o crescimento económico. Algumas das chamadas potências emergentes subiram até ao patamar superior, tal o caso da China que, com argúcia e custos de produção ínfimos, graças a uma mão-de-obra submissa, se tornava hegemónica em muitas áreas industriais. O capitalismo financeiro tornou-se o poder supremo, sobrepondo-se ao poder político legitimado “democraticamente”. A União Europeia mais formal do que real entrou em declive entrópico, e os governantes dos países ricos acenaram em desespero de causa aos países pobres com a bandeira negra da austeridade. Estavam fartos de alimentar a ociosidade dos países do sul, diriam velada e cinicamente. Primeiro a Grécia, depois a Irlanda que, não sendo do Sul, também tinha alguns vícios sobretudo bancários impróprios para a sua grandeza, e Portugal, perfilando-se no horizonte imediato a Espanha e a Itália. Até ver!
Mas nem tudo foi negro nestes 37 anos de democracia. A criação de um sistema de Segurança Social e do Serviço Nacional de Saúde, ainda que com muitas carências, agravadas com as medidas de austeridade em curso; a institucionalização dos direitos dos trabalhadores, porém cada vez mais ameaçados pela cegueira dum “neo-liberalismo” que vê no trabalho precário e na eliminação dos elementares direitos de quem trabalha, não doados mas conquistados ao longo de décadas pelas forças laborais, a panaceia para o desemprego; a democratização tendencial do ensino, embora com lastros óbvios de ineficácia, pois aos tradicionais analfabetos sucederam, muitas vezes, formandos com níveis alarmantes de iliteracia; a consagração da liberdade de expressão, com efeitos na dinâmica de uma prolífera actividade cultural, embora o medo de falar (de dialogar) ainda persista em determinadas faixas populacionais, são alguns dos factos a relevar.
Entretanto, como alguém bem-humorado disse, após os indícios funéreos de “bancarrota”, passámos do longínquo Processo Revolucionário em Curso (1974-1975) para o Processo de Empobrecimento em Curso (O PREC 2). Mas nesta ebulição imposta pelas “ditaduras” das troikas deste mundo ocidental, com o apoio dos seus serventuários locais, aí temos o nosso governo mais papista que o papa, onde se realça a figura autista do monetarista Ministro das Finanças, a acenar ao povo com intensos sacrifícios a curto, a médio e a longo prazo. Claro que esta gestão sacrificial não é equitativa, serão os mesmos de sempre a ir à degola. Depois há ainda os paraísos fiscais, para quem sabe e pode. Todavia, como frisou o insuspeito Pacheco Pereira (“Quadratura do Círculo” na SIC, 10-11-2011), que horizontes de expectativa pode ter uma população a quem o próprio governo afirma não poder garantir que o seu trajecto sacrificial venha a ter um fim feliz? Sabendo nós que a receita para a falência é a mesma que a praticada na Grécia, daqui a dois anos estaremos mais pobres e com uma recessão de 3%. Sem crescimento, como iremos então pagar os juros leoninos da dívida dita soberana, se esta União Europeia, hegemonicamente orientada pela suprema vontade da Sr.ª Merkel, nos tirar o tapete e a almofada ou se afundar? Não há folga que resista!
  Entretanto, vamos privatizar as últimas “jóias da coroa”, para júbilo ideológico dos nossos “neo-liberais”, mesmo em sectores estratégicos para a nação, sabendo-se contudo que, neste contexto, os preços serão de saldo. E, além disso, há privatizações que nada têm ver com o acordo com a Troika. São meras opções políticas governamentais, tal o caso da RTP, embora esta bem precisasse de uma profunda reestruturação a fim de cumprir plenamente a sua função de serviço público democrático, nos planos informativo e lúdico. Conforme, por outro lado, salientou Pacheco Pereira (idem), o modelo escolhido para a privatização da EDP é desde logo um mau indício de tal processo em fase inicial, pois as regras, a selecção dos candidatos e a decisão final são feitas no segredo dos deuses, ou seja, ao sabor da vontade dos governantes sem qualquer controle dos cidadãos. É bizarro que tal aviso venha de um insigne político “social-democrata”, depois não se admirem se alguém vier a cheirar eventuais fumos de corrupção, e mais uma vez, nestes enredados negócios de milhões, nos depararmos com a habitual impotência da Justiça chegar à verdade, sobretudo quando toca a esfera dos poderes políticos ou financeiros. “Portugal país de pobres, mas com vícios de ricos” é uma máxima antiga que o nosso Primeiro bem interiorizou para legitimação do castigo. Vamos então eliminar tais vícios: acabou o açúcar, chegou a hora do chicote. Venda-se a carne, fiquem os ossos. Mas, como diria com sageza Mário Soares, em contraponto, não se esqueçam que os empréstimos não são uma dádiva dos credores, pois muitos irão enriquecer com tais juros.
Este texto caótico, como a nossa situação, é, ou pretende ser, mero acto de cidadania, já que de economia e finanças, tal como o Jesus Cristo de Fernando Pessoa, nada entendemos. Mas temos de confessar que é já um enfado ou um fado ouvir, na rádio ou na televisão, os nossos “especialistas” (quase sempre os mesmos avençados) nas matérias acima referidas, com as suas asserções requentadas, a pouco acrescentarem para lá das bíblias económico-financeiras da moda, embora alguns comecem já a tartamudear. Corpo afeito às carências materiais, resta-nos o espírito da tradicional arte de navegar. A não ser que o empobrecimento nos torne também pobres de espírito…Para sempre!
Ao pecado da gula colectiva (a queda) segue-se assim a longa expiação; quanto à redenção fica suspensa nos horizontes esfumados do futuro, sujeita aos rumos dos estranhos desígnios dos deuses do mercado e dos seus fiéis servidores.


Bruegel - Os Mendigos (1568)

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