domingo, 22 de janeiro de 2012

O Carnaval Negro

Ensor - A Morte e as Máscaras (1897)



"Tudo somado [todas as reformas] quase
de certeza que não vai chegar para pagar as minhas despesas"

Cavaco Silva

Nesta conjuntura trágico-cómica a irrisão talvez seja o único modo catártico de encenar o nosso mal-estar. Por isso o nosso douto Presidente teve a sensatez de brincar aos pobrezinhos como a infortunada Rainha Maria Antonieta fizera, em Versailles, no crepúsculo do “ancien régime”, onde num cenário bucólico se comprazia em mascarar-se de moleirinha no seu “Petit Trianon” para gáudio enfarinhado dos seus cortesãos.
Desta feita como a humildade rural já não está na moda, o nosso Cavaco mascarou-se de urbano sem-abrigo, antecipando umas semanas o período do ritual carnavalesco. Num país de pobres cada vez mais pobres como um fado colectivo, o Presidente só podia ser também um pobre, e, embora com  140.000 euros anuais mais as mordomias presentes e futuras  inerentes ao cargo, foi tão longe a sua identificação com o povo que quis sentir na pele postiça o sofrimento dos dois milhões de pobres mais os milhões que estão a vir não tarda. "Ah, ser como vós um espoliado da sorte não o sendo, no meu conforto real de ultra privilegiado". Que bela pedagogia! Assim os pobres de verdade quando se queixam da fome, alimentam-se com as fantasias do ser supremo da nação. Se até ele sofre com as carências, como poderemos nós humildes cidadãos revoltarmo-nos com a nossa triste condição? E é vê-lo num imaginário corrupio a esticar a corda para pagar a continha, salvo seja, da mercearia e da farmácia. O que lhe vale é o mealheiro da sua Maria, previdente como todas as Marias, mais um gesto exemplar de civismo, pois a palavra de ordem é poupar, poupar, até ao tutano, como bem dizia o nosso saudoso Salazar. Contrariamente aos maldosos críticos de tal postura presidencial, eu humilde escriba deste reino do absurdo, te compreendo e apoio. E vou mais longe, porque não uma destas noites abrigares-te com a tua Maria, sempre te aquece os pés, num esconso vão de rua, à beira do teu palácio, cobertos por cartões das tuas garrafeiras, e, num directo televisivo, expores as tuas chagas pelo frio das trevas. Que jeito exemplar de mostrares à troika, às agências de rating, enfim ao mundo (até os chinocas terão pena de ti e por metonímia de todos nós, isto é dos pobres e os em vias de o serem, que dos ricos cada vez mais ricos reza a outra História), até onde vai a capacidade de resgate deste povo. A televisão e a imprensa bem domesticadas, como ajuizadamente defende o teu assessor político, um tal Lima, darão em imagens retóricas o teu gesto magnânimo. O povo ordeiro mergulhado em lágrimas acolherá no seu seio o teu gesto grato e seguirá o teu exemplo: vão-se os anéis, vão-se os dedos, as casas e os arrebiques, todos a dormir na rua que o relento endurece o corpo e a alma. Ou, numa versão neo-realista, são apenas esqueletos e esses não têm frio. E se o apocalipse estiver à porta, podes sempre dizer: “bom povo era apenas uma brincadeira de carnaval; de facto eu vivo num palácio, vocês numa choupana”. E, meu caro Presidente, desculpa-me o atrevimento de te tratar por tu. É carnaval ninguém leva a mal, e tu certamente também não. Um rei sábio o povo fará sábio, mesmo que seja apenas um ritual do entrudo.
P.S. O título foi-me emprestado pelo meu amigo Raul Brandão, que em coisas de farsas trágicas é um perito afamado.



2 comentários:

  1. O homem vem agora numa osmose de colada e ridícula militancia fazer campanha nos apanhados da rica indigência; dizer que é um dos pobrezinhos de maior estatuto, que também ele sofre aquelas agruras dos ditames dos safados da " Troika". Rábula que só a proximidade da época carnavalesca aceita: lembre-se o homem que teve bolsa de " favadas" para alimentar o monstro e pupilagem de anéis brilhantes e banca forra. Seja, por uma vez, criatura de dimensão e deixe a fatiota das meias tintas.

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  2. Não entendo bem, a que propósito vem esta gafe do presidente, eleito e reeleito por plebiscito, supostamente "honoris causa". Que razão tinha ele para descer às baixezas de tal "strip-tease" dos seus recursos financeiros? Será que a opinião pública o tenha constrangido a justificar-se? Talvez nem isso, o que vai dar ao mesmo. Mascarando-se ridiculamente, desvendou-se de caras um Presidente da República, que não está ao nível do cargo.

    Vim intrometer-me neste assunto, porque o presidente de cá, Christian Wulff, para desviar sérias suspeitas de estar metido numa panelinha do "toma lá, dá cá", incorreu na asneira de se "justificar", abrindo assim ao público a sua privacidade, o que levantou ainda mais dúvidas quanto à sua conduta: um lobo com disfarce de ovelha. Já demitiu o seu porta-voz, agora tirou uma folga mais prolongada para queimar tempo; ainda esperneia lá em cima da corda bamba, mas está por um fio.

    Tratando-se de um cargo essencialmente representativo, porque não incumbir, em consensualidade, uma personalidade reconhecida, de fora, de o assumir, em vez de recorrer a políticos teimosos, já gastos e "demasiado sabidos"?

    P.S.
    Os meus respeitosos cumprimentos ao seu amigo R. B.

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