sábado, 3 de março de 2012

José Afonso e as Cruzadas do Escriba Eurico



“Só para recordar”: “José Afonso era um defensor da luta armada, da ditadura do proletariado e dos princípios perigosamente lunáticos da esquerda mais radical, glorificando a acção política violenta em várias das suas canções, nas quais propunha, por exemplo, “atirar aos fascistas de rajada” […] Só para recordar, agora que se assinalam os 25 da sua morte e muita gente vai associar a palavra “liberdade” ao nome de José Afonso”.
Post de Eurico de Barros no blog “Forte Apache” (22-2-2012)
Senhor Eurico de Barros,
No Diário Notícias de 26-2-2012, ao passar os olhos por um artigo de um cronista semanal, dei conta de uma referência ao seu “post” aviltante para o músico e cantor José Afonso, no ano em que se comemoram os 25 anos da sua morte, embora a sua voz e perfil de cidadania o preservem do esquecimento, que é como se sabe a segunda morte dos mortos. Foi por isso com curiosidade que fui visitar o blog "Forte Apache" para analisar o estilo do seu grito de guerra. De imediato a sua prosa rasteira pareceu-me digna da indiferença, mas, posteriormente, reflectindo melhor, dei  conta que o seu “post” se integrava cabalmente no paradigma de uma certa direita caceteira cuja matriz longínqua está no “miguelismo” oitocentista, embora no seu caso disfarçada com roupagens liberais, por isso merecedora de algum esforço analítico. O seu caso só me interessa pois enquanto expressão de uma categoria mental do nosso imaginário colectivo. Ora aqui vai a minha prosa em jeito de desabafo e como modesto contributo para a memória do cantor que sabiamente articulou a arte musical com uma intervenção político-cultural direccionada para as camadas populares.
O José Afonso não cabe nesse quadro grotesco em que o inseriu, nem os que com prazer o evocam pela sua arte e pela coerência do seu trajecto de vida. Tem todo o direito de não gostar da música do autor, nem da sua personalidade ou da sua prática político-cultural, mas os contornos da imagem “contramítica” que dele produziu, com estereótipos convenientemente manipulados do chamado PREC (1974-75), libertam um bolor salazarento, uma nostalgia dos inquisitoriais tempos que queimavam os corpos e os olhos da alma. Só faltou chamar-lhe “estalinista”, a ele que sempre preservou a liberdade do gesto e, num anarquismo muito peculiar, sempre lutou contra as prepotências deste mundo.
A sua cruzada para “heroicamente” desmontar a mitologia de esquerda, consoante a sua “posta” sobre o cantor, tem aliás curiosos antecedentes, conforme vim a descobrir posteriormente na Wikipédia, onde o senhor é biografado, para além de crítico de cinema e jornalista do DN, como negacionista do Holocausto (“É também conhecido como negacionista do Holocausto”). Esta talvez  tenha sido a sua batalha nuclear em nome da liberdade de expressão. Com efeito a sua militante postura face àquilo que considera outra ficção da História (“E. B. não acredita que o Holocausto tenha feito 6 milhões de mortos” 1) ajuda-nos a entender a formatação ideológica da sua homilia contra o cantor: o Holocausto praticado pelo nazismo, durante a 2ª Guerra Mundial, alinhando parcialmente com o “negacionista” David Irving, um historiador britânico simpatizante do anti-semitismo nazi e teórico do revisionismo histórico da epopeia hitleriana, condenado, em 2006, a três anos de prisão, na Áustria, pena que viria a ser reduzida para 13 meses, com o qual o Sr. Eurico teria trocado correio electrónico, não teria, portanto, passado de uma reles efabulação de  judeus e historiadores preconceituosamente anti-nazis. Claro que o senhor é um confesso não-nazi e um amante da liberdade, por isso um implacável perseguidor das mentiras convencionais que muitos mal-intencionados fabricaram sobre os confrontos políticos e militares da contemporaneidade. No plano internacional, eis o Eurico, não o presbítero, cavaleiro andante em busca do Graal da História ou da sua dama (a Verdade Verdadeira), arauto da sagrada liberdade de investigação, sobretudo de temas que são considerados “tabus religiosos”. Ora o Holocausto, segundo D. Irving, terá sido mais uma pérfida manobra de judeus para se vitimarem. E assim se diabolizou o Hitler (“o maior amigo dos judeus na Alemanha desde o início da guerra”, segundo D. I.) e seus capangas, pois além do mais a História é sempre escrita pelos vencedores. Mas para repor a verdade aí estão os Euricos para libertarem o nosso mundo dos falsificadores da História. Nem sei se alguma vez leu Mein Kampf (1924) de Hitler, onde o preclaro futuro estadista declarava: ”Eméritos conhecedores das possibilidades do emprego da mentira e da calúnia foram em todos os tempos os judeus. Começam eles a mentir ao tentarem provar ao mundo que a questão judaica é uma questão religiosa, quando, na realidade, se trata apenas de um problema de raça…e que raça! Um dos maiores espíritos da humanidade [Schopenhauer] estigmatizou esse povo com uma frase, que ficará eternamente justa, quando os designou como “os maiores mestres da mentira”. Quem não reconhecer essa verdade ou não quiser reconhecê-la, não poderá nunca concorrer para a vitória da verdade “.
Pois é a verdade, sempre a verdade. Se não leu, o que duvido, estará de acordo que parece ser um fragmento inspirador da demanda negacionista neste mundo de trapaceiros da História. Mas regressemos a casa, pois desconheço outras gloriosas batalhas desta sua odisseia pela Verdade, e à actualidade, onde uma nova gesta se anuncia a fim de libertar as mentes nubladas por um mito esquerdizante: “Só para recordar, agora que se assinalam os 25 da sua morte e muita gente vai associar a palavra “liberdade” ao nome de José Afonso”. Deveras preocupante! E que recorda o Sr. Eurico? Da vida do cantor a sua acção político-cultural, convenientemente destorcida conforme convém, no conturbado período sequente ao 25 de Abril, de 1974 ao 25 de Novembro de 1975. A luta do poeta-cantor, no período da ditadura, onde sofreu perseguições e mesmo a prisão em Caxias, foi simplesmente omitida. Então no seu labor de desconstrução deste mito “esquerdista”, mais uma cruzada em nome da verdade, eis o cavaleiro Eurico a anatematizar o cantor, por ter sido apologista da violência revolucionária, dos princípios da esquerda “perigosamente lunática”, militante das campanhas de dinamização cultural do MFA (um escândalo num mundo rural dominado pelo analfabetismo),  apoiante do 11 de Março e das arbitrariedades da Reforma Agrária etc. etc. etc. E teria chegado mesmo a enunciar a crueldade de “atirar aos fascistas de rajada”, frase que o Sr. Eurico adulterou e descontextualizou a partir de um verso  de uma canção de Zeca Afonso. O Sr. Eurico, que tão preocupado está com a saúde da nossa memória e do nosso imaginário colectivos, esquece que tal período foi de confronto agudizado entre duas visões da democracia portuguesa, tendo aliás a visão que viria a vencer alianças pontuais e espúrias com a extrema-direita (cf. a acção terrorista do ELP).  Para simplificar diria que de um lado da barricada estava a força da utopia, do outro a força do pragmatismo, mas que paradoxalmente, como os caminhos da História são sinuosos, nos acabaria por conduzir à trágico-cómica situação actual, falidos e infinitamente enredados nas teias do capitalismo financeiro. Dos dois lados da barricada houve excessos, embora convenhamos que a dita Revolução de Abril, para o bem e para o mal, foi ardendo e ardeu nos lusos brandos costumes ou num clima português-suave. Houve algumas vítimas, mas curiosamente mais à esquerda do que à direita. Quase quatro décadas depois seria desejável o proliferar de análises lúcidas sobre o PREC, embora saibamos que não há enunciadores libertos das suas convicções ideológicas. Ora o discurso do Sr. Eurico não só não acrescenta nada ao já dito pela direita lusitana, mas também pelo seu tom radical e provocatório vem contribuir para incendiar os ânimos. Tem porém um atributo: revelar uma conflitualidade violenta não resolvida porque razoavelmente recalcada (veja-se o tom dos comentários dos seus prosélitos no referido blog), o que não é uma originalidade portuguesa, basta ver, guardadas as devidas distâncias, o que está a acontecer na vizinha Espanha com o reacender das disputas em torno das memórias da guerra civil (1936-39).



Por outro lado, goste-se ou não do perfil humanista e libertário de José Afonso, o quadro grotesco em que o Sr. Eurico o quis inserir é um mero acto calunioso. Quantos cantores, com a sua qualidade, trocariam a carreira por um empenho político-cultural na luta popular por uma democracia socialista. Além disso, em última instância, a arte não é redutível a uma leitura meramente ideológica, ou pior ainda a uma caricatura feita de estereótipos comportamentais tal o caso do texto do Sr. Eurico, ilustre escriba do Diário de Notícias. Mas, em abono da verdade, diga-se também que a sua personagem, digna de perfilar na galeria acaciana de Eça, ignora qualquer apreciação da qualidade específica da arte (canto e composição) de José Afonso. Ele não foi um rudimentar cantor-panfletário, mas um músico que soube aliar a espontaneidade comunicacional a um complexo tratamento da linguagem musical, algo reconhecido por muitos musicólogos não alinhados no seu campo político. No seu “post”, o único objectivo é o de achincalhar o seu perfil de combatente pela liberdade, como forma de desmitificar um “ídolo” da democracia aos olhos de “muita gente”. Mas há desconstrutores de mitos, tal é o seu caso, que, em nome da verdade e da liberdade, deixam escapar o lastro de uma outra mitologia, fundada na intolerância e, portanto, incapaz de reconhecer talento nos que se situam na oposta orla ideológica.
 De qualquer modo convém lembrar, entrando no jogo daqueles que não se identificam com o modo de ver e estar no mundo do Zeca, que, por exemplo, Fernando Pessoa era politicamente um conservador liberal anti-democrático ou, segundo Raúl Morodo, um nacionalista libertário e “sintético”, ou, num outro nível, Amália Rodrigues foi, a contragosto, um símbolo cultural da ditadura, mas, tal como José Afonso, apesar das ideologias, pela sua arte, diversamente praticada, todos eles ficarão na memória colectiva, enquanto o escriba Eurico estará condenado a mergulhar subitamente no rio de Lete. E José Afonso não foi apenas um grande cantor e músico, foi também um excelente poeta, daqueles que fazem dançar as palavras, daí o meu convite à leitura de Textos e Canções, Lisboa, Relógio d’Água, 2000. Mas talvez a “violência” das palavras de Eurico não pretendam apenas denegrir o cantor, mas todos aqueles que assumiram o 25 de Abril como um símbolo de caminhos alternativos à desumanidade reinante neste mundo dos “barões do cifrão”, para parafrasear Almeida Garrett. Ou como cantou José Afonso, ”A bucha é dura/ Mais dura é a razão / Que a sustém / Só nesta rusga / Não há lugar / P’rós filhos da mãe”.
1 Todas as informações sobre a militância “negacionista” de Eurico de Barros foram extraídas da sua biografia na  Wikipédia e do artigo do Correio da Manhã “Preso por negar Holocausto” (21-2-2006). Refira-se ainda que, neste texto, Eurico de Barros surge como um dos portugueses que estão ao lado de Irving. Outros nomes referenciados no campo “negacionista” são os de Silva Resende, Mário Machado (Frente Nacional) e José Pinto Coelho (PRN). Assinale-se finalmente que o Sr. David Irving continua actualmente a sua campanha pela reabilitação de Hitler nos EUA e na Europa.



2 comentários:

  1. Uma boa resposta com um excelente texto!
    Os barões de Garrett assentam que nem luvas e os versos do José Afonso são um bom final para esse senhor!
    Por acaso tinha lido esse artigo. Há gente assim, por "escrever" num pedacinho de jornal, acha-se dono do mundo... mas da ignorância!

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  2. São estes os textos que ainda matêem alguma esperança num futuro mais justo. Vem o senhor Eurico de Barros, numa técnica " Apache" (que de " Forte" nada tem), em roedora e apagada medida, nuns golpes baixos de " percor" tentar tocar a luz excelsa de um grande poeta e cantor que foi José Afonso. É o dito senhor um saudoso da " noite dos cristais quebrados", em que partilha da cruzada negra de um tal David Irving; ambos saudosos dos "candeeiros de pele" de inocentes gentes que alimentaram o tenebroso Holocausto.

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