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Ana Maria Pinto, Porto, 2015 |
Repovoar os espaços perdidos (a propósito duma fotografia de Ana Maria Pinto)
Repovoar, através do olhar, os espaços perdidos é um acto de afecto e um apelo a uma viagem imaginária através das fissuras do tempo. Na quase obscuridade da sala, emergem, por entre os actuais destroços, antigos sussurros e gestos dos seus habitantes: débeis sulcos de pés de crianças em volteios lúdicos; passadas lentas e pesadas de velhos enclausurados nas suas memórias; uma rapariga à janela na expectativa de um aceno do amante clandestino; a irmã mais velha a tricotar com disfarçado enfado; a porta, agora de um azul esmaecido, a abrir-se à chegada de um visitante inesperado; rituais festivos ao ritmo do tempo; amores nascentes e jazentes; juras e traições; nascimentos e mortes.
Todo um cenário onde perpassa a tensão entre o efémero e o eterno, como é próprio duma poética das ruínas. A luz triangular simula essa fronteira entre o visível e o invisível, entre o real e o virtual. O bolor do tempo (manchas e detritos) corrói a madeira do tecto, o soalho ou as paredes, mas coexiste com as formas perenes, porque a câmara as fixa para sempre. E o tom róseo-cinza dominante, como convém, remete para o crepuscular, pois a imagem fotográfica tem a capacidade de nos situar na fronteira entre as trevas e a luz. Entre o interior em decomposição e a luz exterior filtrada pelas janelas rectangulares estabelece-se um singular pacto de silêncio sacral. O sublime desta imagem está na arte de o saber ritualizar.
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Ana Maria Pinto, Porto, 2015 |
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