terça-feira, 17 de maio de 2011

Do Declínio à Reinvenção de uma Nova Ruralidade (4)


Célia Pena Alves - Festa da terra
 O regresso ao campo pode ser, por enquanto, uma aventura de minorias, como mostra o excelente documentário televisivo (2009) com tal título, de Paulo Silva Costa. Mas até as novas tecnologias podem hoje possibilitar que certas actividades, através do teletrabalho, se possam exercer no distante mundo rural, mantendo-se o vínculo com uma empresa sediada na capital.
Gostaria de evocar, como arquétipo de fuga ao mundo urbano, o historiador Alexandre Herculano que, cansado das intrigas políticas da capital onde sempre viveu, se refugiou em Vale de Lobos, em 1867, e aí passou a produzir um excelente azeite. É um modelo para todos aqueles que, cansados da vida citadina, procuram reencontrar-se em sintonia com os ritmos da natureza. A renovação do mundo rural passa pelos jeitos, gostos e sonhos de cada um, dos que ficaram, dos que regressaram e dos que o experimentam pela primeira vez.
Talvez o meu despretencioso comentário seja idílico ou nada acrescente de novo, mas confesso, enquanto lisboeta, criado no burburinho das Avenidas Novas, que o que de mais belo ficou no imaginário da minha infância se deve às longas férias de Verão em casa do meu avô João Pena, em Vila Franca das Naves, onde me podia libertar da prisão do meu andar da Duque d´Ávila e, em correrias tontas, sentir o rumor da terra ou a vermelhidão do céu crepuscular ou os odores inesquecíveis da aldeia dos meus antepassados.
Célia Pena Alves - Queimada
Vamos todos fazer um esforço para reerguer Portugal e, sobretudo, não deixemos que se repitam casos como o da linha do Tua, deixada progressivamente ao abandono e em breve alagada pela futura barragem que produzirá apenas mais 0,07 da energia eléctrica que consumimos. Para além do desrespeito pelas populações do Nordeste transmontano, que bela e lucrativa rede ferroviária se perdeu, bastava apenas melhorá-la e promovê-la turisticamente, como se faria em qualquer país da Europa, preocupado com conservação do seu património histórico, que é também um pólo de atracção turística.
Num outro plano, calcula-se que existam mais de 2 milhões de hectares de terras abandonadas com aptidão agrícola, com situações aberrantes apoiadas pelo poder municipal, tal é o caso da zona rural do concelho de Sintra, onde a Media Capital vai construir uma hollywoodesca Cidade da Imagem, numa área de 200 hectares inseridos na Reserva Ecológica e Agrícola. Nada me move contra esta megalómena cidade do cinema e das telenovelas, mas não haveria outro local para a implantar?
Há outros maus exemplos de reactivação do mundo provinciano, tal é o caso da dita praia marítima de Mangualde, como se o Interior não tivesse valores próprios e tivesse necessidade para se promover de macaquear o litoral. Também em Ferreira do Alentejo, na Quinta de S. Vicente, um olival premiado internacionalmente por produzir o melhor azeite do mundo, será cortado ao meio pela A26 (Sines-Beja), indo perder 6000 oliveiras. Note-se, aliás, como é possível que, num país que precisa urgentemente de exportar, tal traçado rodoviário venha prejudicar uma empresa que vende 90% da sua produção ao estrangeiro.
Célia Pena Alves - Memórias
 Há, por outro lado, iniciativas exemplares, seja de pequena ou média dimensão, de norte a sul do país. Citemos apenas algumas: na aldeia de João Bragal de Baixo, a Manuela e o Eugénio, ambos licenciados, deixaram o Porto, onde trabalhavam, e abriram as Casas do Bragal, um excelente restaurante com cozinha regional criativa. Este projecto que durou uma década, infelizmente, não correspondeu totalmente às expectativas do casal e entretanto foi abandonado. Em Sara Mora (Miranda do Douro), um pequeno grupo de veterinários revitalizou a criação de burros à beira da extinção em Miranda, e com isso deram nova vida à aldeia que no último ano recebeu milhares de visitantes. Um artesão de Dominguiso (Fundão), depois de uma experiência lisboeta frustrada, regressou à aldeia, onde desenvolve um trabalho de restauro e fabrico de móveis em castanho (velho e novo), sendo ao mesmo tempo um santeiro de qualidade. Em Foz Côa, o museu recebeu no último ano cerca de 30.000 visitantes, confirmando as expectativas em torno do valor patrimonial das gravuras rupestres. Mértola renasceu com a actividade museológica, onde se cruzam diversos objectos e espaços civilizacionais, e é bom lembrar que o seu impulsionador foi um beirão chamado Cláudio Torres.
 Em S. Teotónio (Alentejo), um produtor francês implantou o maior bambuzal da Europa, exportando para todo o mundo. Em Idanha-a-Nova, na busca de novas centralidades, desenvolvem-se projectos de ecoturismo, de agricultura biológica, de pecuária e lacticínios, com a colaboração de instituições do Ensino Superior. No Alto Alentejo, a Fertiprado, única empresa da Península especializada em prados e sementes, com a cultura de pastagens biodiversas, ganhou o prémio BES Biodiversidade.
Célia Pena Alves - Sobrevivente
Conforme defende, aliás, Gonçalo Ribeiro Telles, não há plano de desenvolvimento sustentável sem a agricultura, pelo que querer reduzir os activos agrícolas a 3%, é simultaneamente um erro económico e paisagístico. A paisagem é também uma construção humana, por isso não deve haver uma fronteira rígida entre o mundo rural e o urbano. O turismo no mundo rural será uma componente importante da renovação do Interior, mas sem um novo ordenamento florestal que coabite com a polivalência das actividades agrícolas e a pastorícia não há paisagem mas terra queimada, algo pouco motivador para turistas.
Mesmo nas áreas urbanas, há também indícios de mudança de mentalidade relativamente às actividades agrícolas, sejam as hortas sociais urbanas, sejam as experiências das hortas pedagógicas. São sintomas da necessidade de uma nova relação de amor com a terra. Em tempo de crise, como a actual, começa a ser consensual, embora tardiamente, entre as nossas elites políticas, a necessidade urgente de revitalizar as actividades agrícolas. Para além do paradigma económico-político, urge mudar o paradigma cultural dominante.
Como Almeida Garrett afirmaria significativamente, “Quanto mais nacional, mais estreme e puramente nacional é uma obra, mais agrada aos próprios estrangeiros, mais segura está de se generalizar e ser conhecida […]. O que não tem cor nacional, o que pode ser para todos, é o de que todos fazem menos caso” (Romanceiro, 1843-51).
Um mundo globalizado pode paradoxalmente conviver com a riqueza específica de cada região e a perda da diversidade cultural tornará certamente o mundo mais pobre. E ter uma terra, ter um chão, é ter uma identidade. E em contraste com o ruído da grande cidade, saibamos apreciar a beleza do silêncio.


Célia Pena Alves - Simbolismo


2 comentários:

  1. É preciso avivar e criar essa identidade. Trabalhar a terra, produzir o que esses imensos campos e terras férteis têm para dar. O mito da salvação urbana está ultrapassado; essas grandes migrações internas para as zonas das grandes cidades são hoje a condenação ao propalado " El Dorado" que atraíu e ainda atrai gerações. Mas, terá que ser as gentes a dar o passo inverso e voltar à sua génese. Contrariar os arautos e teóricos de uma política de agricultura europeia desastrosa e penosa para os pequenos países. A inaptidão e o desconforto pseudo-pensante foi ao ponto de pagar para não produzir. Esboreou-se fatidicamente a identidade de milhares de trabalhadores, tudo com um clic de Bruxelas e uma aquiescência subalterna de negociadores impreparados. O desnorte vai ao ponto de propor aos pescadores que vão ao mar pescar plástico ( fora dos 180 dias que têm para mourejar),o que mais se seguirá nesta Europa de burocratas e fazedores de escândalos ?...

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  2. Como eu te entendo, primo!
    A minha infância, vivida em Trancoso, foi o alicerce da minha casinha na Sra da Piedade.

    Desactivaram a linha do Tua, também o Ramal da Lousã...

    Bonito o apelo para reerguer Portugal!...
    Ainda bem que alguns se esforçam e com sucesso.
    Obrigada por tudo o que aprendo contigo.

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