sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Histórias dum Império Crepuscular – O Fado Tropical

Afonso de Albuquerque (1460-1515)


Comemoraram-se há dias (18-12-2011) os 50 anos da queda do então designado Estado Português da Índia (Goa, Damão e Diu), após invasão ou acção de libertação, consoante as perspectivas, das forças armadas da União Indiana, com a sequente anexação do que restara do império colonial português naquele território. Também em 4 de Fevereiro do mesmo ano (1961), nacionalistas angolanos atacaram, em Luanda, a Casa de Reclusão Militar, o quartel da PSP e a Emissora Oficial de Angola, movimento insurreccional que sinalizou o início da revolta dos povos africanos pela sua emancipação relativamente ao poder colonial português. Enquanto o sequestro do paquete Santa Maria, cerca de um mês antes, por um comando liderado pelo capitão Henrique Galvão, procurava denunciar ao mundo a natureza ditatorial do chamado Estado Novo. Demoraria ainda treze anos a morrer de podre tal regime que fundia, no seu imaginário mitológico, a aldeia (o terrunho idealizado) e o expansionismo imperial (o génio português em errância pelo mundo), tal como fora cenograficamente celebrizado na Exposição do Mundo Português em 1940. O ano de 1961 seria, pois, o da anunciação simbólica do ciclo final desta versão portuguesa do “fascismo”.
 O ditador Salazar, cego, como não podia deixar de ser, ante os sinais premonitórios do fim, puniria exemplarmente os responsáveis pela rendição das forças militares portuguesas na Índia, pois, na óptica do ditador, a  sua quase nula resistência à invasão teria o odor de traição. Quatro mil e quinhentos homens mal armados deveriam pois heroicamente confrontar-se até à morte com os quarenta e cinco mil militares indianos superiormente armados. Salazar precisava, como pão para a boca, desse sangue redentório para promover aos olhos do mundo a imagem mítica duma pátria ferida pelo belicismo indiano. Sequentemente, o último governador do território, o general Vassalo e Silva, passaria, num trocadilho demolidor, a ser designado, nos corredores oficiais da caricatura, como “Vacila e Salva-se”. E apenas viria a ser reabilitado e reintegrado no aparelho militar após a Revolução de 1974. São estas as histórias do canto do cisne do último Império colonial do Ocidente; de traidores porque não souberam ser heróis, de cobardes rendidos porque não souberam ser redentores. Por isso, mesmo os militares sem responsabilidades de comando, ao regressarem à metrópole, seriam recebidos pelo poder, após 5 meses de aprisionamento pelos indianos, com hostilidade. Dos fracos e "traidores" não rezaria a história do fascizante Estado Novo.
Quanto à África, o “orgulhosamente sós” de Salazar, ante uma comunidade internacional ingrata e incapaz de compreender a gesta da ocidental nação lusitana, tornar-se-ia voz de comando de uma acção colectiva punitiva contra os “turras” (“Para Angola, rapidamente e em força”) em defesa das “nossas províncias ultramarinas”, tal como eram designadas pelo discurso oficial, sendo abolida do vocabulário, porque subversiva, a palavra “colónias”. A expressão “guerra colonial”, que efectivamente duraria 13 anos, seria então uma sigla clandestina usada apenas pelos “traidores” à pátria. Veio então o tempo doloroso da partida, em Lisboa, dos navios soturnos com os soldados a acenarem milhares de lenços brancos, como pombas da paz que não teriam, para familiares e amigos, nos cais do nosso crepuscular destino imperial. Embora muitos jovens se recusassem a tal cruzada, partindo também mas clandestinamente na vaga de um milhão e meio de portugueses que procuraram, numa nova fase da nossa tradicional diáspora, entre 1960 e 1974, além-Pirenéus uma vida mais digna. Sacrificaram-se assim em vão gerações de portugueses e africanos por causa de uma visão da História anacrónica, cruel e fantasmática. Mas se dantes emigravam contra a vontade do poder, agora é o poder paradoxalmente que apela aos jovens para emigrarem, nas vozes plastificadas do nosso Primeiro e de um dito Secretário para a Juventude. Será fado português não ter casa para os seus filhos? O outro mandava-os para a guerra, este para a labuta na estranja ou, numa versão mais temperada, nos países lusófonos. Será destino colectivo ou serão jogos do acaso?
  Ainda hoje, embora recalcadas, as feridas dessa absurda guerra e da chamada descolonização, após o 25 de Abril, não estão completamente saradas. Também o modo de avaliação do longo ciclo colonial português de 5 séculos não é consensual, ainda que esse confronto ideológico não se assuma pelo diálogo aberto e visível, no espaço público, mas se sustente de não-ditos entre os nostálgicos do Império e os que tentaram desocultar as suas mitologias, reactivadas na segunda metade do século XX, quer em torno de um luso-tropicalismo exemplar  (Gilberto Freyre) ou da atitude de tolerância, específica do nosso colonialismo (Jorge Dias), quer, com diversas variantes, do afamado  padrão cultural da nossa miscigenação com outros povos (reveladora de “uma certa liberdade em relação às fronteiras culturais, uma certa promiscuidade entre o Eu e o Outro, uma certa falta de preconceitos culturais, a ausência do sentimento de superioridade que caracteriza, de modo geral, os povos de cultura ocidental”, como referiu António José Saraiva). Mas tudo isto pode ser interpretado de outra maneira: “No caso de Portugal, a função de intermediação assentou durante cinco séculos no império colonial. Portugal era o centro em relação às suas colónias e a periferia em relação à Inglaterra. Em sentido menos técnico, pode dizer-se que, durante muito tempo foi um país simultaneamente colonizador e colonizado. Em 25 de Abril de 1974, Portugal era o país menos desenvolvido da Europa e, ao mesmo tempo, o detentor único do maior e mais duradouro império cultural europeu” (Boaventura de Sousa Santos). Ou seja, a singular mestiçagem cultural da nossa colonização dever-se-ia então não a uma qualquer idiossincrasia "genética", mas à nossa fragilidade económico-política, militar e demográfica, enquanto potência colonial no quadro da relação de poderes no mundo ocidental. Aliás, sendo um dos factos referidos por António José Saraiva, para sustentar a tese da nossa original miscigenação cultural, a carta de Afonso de Albuquerque (1460-1515), vice-rei da Índia, ao rei de Portugal, “propondo o casamento entre portugueses e indianas como forma de povoar o território”, numa estratégica tentativa de criar uma “raça luso-indiana”, um modo de obviar à nossa escassez demográfica na metrópole (à volta de dois milhões, número curto para tanta expansão); tal capacidade de tolerância na aceitação do outro seria mais tarde totalmente desmentida com a criação do inquisitorial Tribunal do Santo-Ofício de Goa, em 2 de Março de 1560, prática persecutória orientada tanto contra o criptojudaísmo, o cripto-islamismo ou as heresias protestantes, como sobretudo contra o hinduísmo. Note-se, de resto, que Goa foi o único espaço colonial português que teve o “privilégio” de receber tal instrumento de intolerância, o que se prolongaria até 1812. Entre os aculturados indianos, sobretudo afectando as elites, aos valores do catolicismo luso e os outros, há ainda muitas histórias por contar. De violentações, mas também de negociações e cumplicidades.
Não tivemos obviamente o monopólio da intolerância ou da violência no que concerne à odisseia colonial, mas convém não limpar o sangue que nos escorreu das mãos em nome da cruz, de uns míticos brandos costumes ou de uma congénita abertura para o outro, segundo a qual o “mulato” seria uma quase invenção lusa. Claro que não podemos avaliar os eventos históricos descontextualizados dos sistemas de valores dominantes em cada época, mas, neste mundo turbulento e contraditório em que vivemos, olhar crítica e criativamente para a nossa História, o que pressupõe diálogo e não monólogo, pode ajudar-nos a entender o momento de encruzilhada em que nos encontramos, desta feita no quadro do nosso ciclo “europeísta”, onde continuamos tão periféricos como no início (1986) ou na fase do ciclo imperial. Não estaremos, aliás, de novo, numa fase de crise profunda da nossa identidade colectiva?  
Quanto à nossa capacidade de aceitar o outro, conviria, por outro lado, como exercício, fazer o balanço de 30 anos de recepção dos imigrantes sobretudo africanos (situação sociologicamente nova em Portugal), pois talvez encontremos aí algumas respostas pertinentes para o entendimento hodierno das nossas relações culturais com comunidades coexistentes no nosso espaço físico, demasiado “ghetizadas” por ausência de diálogo e vontade de plena integração do outro.
Como remate para estas digressões um pouco caóticas, vêm mesmo a calhar estas palavras do “Fado Tropical” (1971-72) de Chico Buarque da Holanda: “Sabe, no fundo eu sou um sentimental. Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dosagem de lirismo (além da sífilis, é claro). Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar, o meu coração fecha os olhos e sinceramente chora…”.

1 comentário:

  1. O CREPUSCULO E O ESTERTOR DO REGIME VINHA DE HÁ MUITO. Nehru em 1950 propusera a Salazar a abertura de negociações sobre Goa, Damão, Diu, Dadrá e Nagar-Aveli. Logo Salazar respondeu, depois da inevitável ocupação, justificando-se no ninho ultramontano; " Nós não podemos negociar, sem nos negarmos e sem trairmos os nossos". Havia que cumprir a ordem dada três dias antes do 17 de Dezembro de 1961: " apenas pode haver soldados e marinheiros vitoriosos ou mortos". A sanha ia ao ponto de perseguir um radialista, Igrejas Caeiro, que tinha dito que Nehru era um grande estadista. O " Fado Tropical" nos seus acordes mais lamentosos e tristes, o começo do " anus horribilis" para o ditador e as teceduras da sua queda.

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