segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

A Paisagem, o Provincianismo e a Barragem do Tua



“E os socalcos do Douro construíram-se para guardar a terra criada pelos homens, e na terra que os homens criaram e conservam, arrecada-se a vida de infinitas gerações.”
Alves Redol

Um povo que não se reconheça no espírito da sua paisagem tem um complexo défice identitário. Vítimas nas últimas décadas do esforço “progressista” dos nossos líderes em prol do betão e do cimento, não há lugar que resista, mesmo os de beleza singular, a esta vocação destrutiva. Mas o mais paradoxal é que este épico labor, em nome do “progresso”, nos conduziu ao fracassado estado económico-social em que nos encontramos, ainda por cima penalizados pelos custos paisagísticos e ambientais de tais projectos marcadamente provincianos (categoria mental associada a um falso cosmopolitismo). Ou seja, de Cavaco a Sócrates, foi um fartar vilanagem de auto-estradas, algumas sem utentes à vista, a retalhar a paisagem, sem atender às necessidades das já escassas populações do interior massaradas por rodovias que, em muitos casos, serviram fundamentalmente e de modo redundante os grandes pólos urbanos de Lisboa e do Porto, acentuando a dissimetria entre o litoral e o interior (“A orientação actual das auto-estradas e das principais vias de comunicação, polarizada pelas maiores cidades, e sobretudo por Lisboa, só vem agravar as dificuldades de estruturação à escala da província. Para quem tenha de utilizar os transportes públicos e não possa percorrer as vias transversais de automóvel, é geralmente mais difícil comunicar entre regiões relativamente próximas do que chegar a Lisboa”, José Mattoso, Suzanne Daveau, Duarte Belo, Portugal – O Sabor da Terra, 2010, p. 339).
 Entretanto foi-se deixando degradar a via ferroviária, encerrando-se linhas consideradas deficitárias, mas principal modo de circulação das gentes do interior e não só. Tudo isto revela a ausência de um plano consistente no que concerne às redes de comunicação à escala nacional, tanto a nível económico-social como ambiental, mesmo ao olhar de um leigo como eu nestas matérias. Concomitantemente proliferaram barragens onde corrente de água houvesse, para não falar no excessivo peso da construção civil na nossa actividade económica (nos anos doirados, ocupava 10º da população activa e 18% do PIB, sendo o consumo de cimento per capita o dobro da média europeia), actualmente em profunda crise, por falta de compradores (há 10% de casas a mais) e de crédito. Mas esta fúria construtora teria efeitos devastadores, pois contribuiu para a desertificação do centro das cidades e perda de moradores, como aconteceu com Lisboa, nas últimas décadas, e para um consequente crescimento, desmedido e caótico, dos subúrbios, sem qualquer qualidade de vida, tal o caso do concelho de Sintra. Para não falar nos gastos opulentos da Expo 98 ou dos estádios de futebol do Euro 2004, com alguns (Leiria e Algarve) com bancadas de betão ao desgaste do tempo e da impossível gestão. Também os nossos autarcas não quiseram ficar atrás e ei-los de rotunda em rotunda até à vitória final. O cimento tornara-se definitivamente o nosso Eldorado.
Os governantes não estiveram longe da mentalidade dos nossos emigrantes que construíram “maisons”, como manifestação de um capital simbólico emergente, pelas aldeias deste país, desfigurando-as, para anos depois, deixarem os inóspitos e incómodos (para os moradores e para os olhos dos que passam) casarões ao abandono, ora inacabados ora em ruína, pois os descendentes acabariam por se integrar nos países de emigração e não regressar à pátria. Mas obviamente àqueles, enquanto elementos de uma elite política, pedir-se-ão outras responsabilidades. Duas décadas e meia após a nossa integração na CEE (a actual União Europeia), continuamos tão desfasados economicamente dos países ricos da Europa como no início, apesar dos fundos estruturais e de coesão que recebemos tão euforicamente como D. João V recebera, no século XVIII, o ouro do Brasil. Com a agravante de estarmos hoje completamente falidos, sujeitos à gula desmedida dos credores internacionais, e só formalmente ainda independentes. Destruímos o aparelho produtivo em função dos interesses dos nossos “benfeitores” e a árvore das patacas como se veio a provar tinha curta duração e muitas e ardilosas contrapartidas. O modelo de “desenvolvimento” das últimas duas décadas foi, pois, um profundo fracasso. E, embora com significativos avanços, mesmo os nossos níveis de escolaridade estão ainda bem distantes da média europeia. Enfim! Se à partida éramos periféricos ou semi-periféricos em relação às sociedades mais desenvolvidas da Europa, neste canto do cisne da União Europeia, periféricos continuamos, e com índices de desigualdade social que nos colocam como um dos países da Europa onde o fosso entre ricos e pobres é alarmante.


Vem todo este arrazoado a propósito da polémica construção da barragem na Foz do Tua, na Região do Alto Douro Vinhateiro, promovida pela UNESCO, há dez anos, a Património da Humanidade (Paisagem Cultural, Evolutiva e Viva), da responsabilidade da monopolista EDP, e abençoada pela gestão do “betoneiro” engenheiro Sócrates. As suas palavras, no acto de inauguração da construção da dita barragem, em mais uma nefasta parceria público-privada, dirigidas ao poderoso tecnocrata Mexia, olhando com um desdém patético e alarve para aquela paisagem virgem e sacral, “Agora só falta aqui é…cimento!”, são bem uma caricatura da mentalidade provinciana que nos desgovernou nas últimas décadas. Paisagem sem cimento é como um deserto, diriam eles. Mas deserta era a alma do nosso ex-primeiro e do seu séquito, como a de outros que o antecederam.
Desta feita, porém, a UNESCO ameaça retirar o estatuto de Património da Humanidade àquela região de singular beleza. As hostes como bonecreiros agitam-se: a EDP diz que vai atenuar os estragos na paisagem, convidando para compor o cenário o reconhecido arquitecto Souto Moura; a super-ministra Cristas diz que o país não tem cheta para indemnizar a concessionária, caso suspendesse o projecto; os autarcas da zona, que sempre associaram ilusoriamente a instalação de barragens a mais progresso para os seus domínios, titubeiam. Entretanto foram arrasados milhares de sobreiros e azinheiras, um paredão de 100 metros de altura foi erguido, para memória futura dos dislates governamentais, e o vale do Tua e a sua linha férrea serão submersos com as águas da barragem. Mas afinal qual é o contributo desta barragem para a nossa produção energética? Segundo as expectativas de apenas 0,67%.
 Ora, segundo os responsáveis do turismo do Alto Douro, de Janeiro a Agosto do corrente ano, 110.000 turistas visitaram a região, pelo que a retirada de tal galardão pela UNESCO seria um rude golpe para a economia daquela zona. Por outro lado, em qualquer país que se preze uma linha férrea como a do Tua, um desfilar de imagens soberbas e únicas, seria reabilitada e promovida no plano de uma desejável gestão turística, para lá obviamente de ser um importante meio de transporte para as populações locais. Só um economicismo de vistas curtas, como é aquele que nos tem dominado, não sabe articular a preservação da paisagem e o bem-estar das populações locais com os interesses económicos. É preciso acentuar que o turismo português não se pode limitar ao mediático bronze algarvio. Portugal, na sua diversidade geográfica, apesar dos muitos disparates ambientais, ainda tem alguns rostos de paisagem com uma identidade peculiar a colocar ao olhar do mundo. Economia e gestão ambiental não são necessariamente antagónicas e, além disso, se não preservarmos o génio dos nossos lugares idiossincráticos perderemos de todo a nossa identidade. E, para isso, seria também necessário dinamizar uma consciencialização cultural das populações, de molde a defenderem a singularidade única desses espaços de eleição que lhes coube em sorte, e não a rumarem nas ilusões do falso progresso.
 É preciso reinventar Portugal, articulando tradição e modernidade, respeito pela alma da paisagem e desenvolvimento, criatividade e planificação. E salvar a foz do Tua, pois como afirmou José Pacheco Pereira, “combater a barragem que destruirá o vale do Tua transformou-se numa luta de último recurso, uma última oportunidade para termos outra paisagem que não seja eucaliptal, albufeiras artificiais, praias sobrelotadas, montanhas esventradas por pedreiras, na maioria dos casos ilegais, mas a trabalhar diante dos olhos de todos há décadas, num Portugal já demasiado estragado” (Público, 10-12-2011, p.40). De qualquer modo, saliente-se o facto de ser necessária a voz censória da UNESCO, para que a reacção de alguma opinião pública portuguesa se faça ouvir, com excepção dos militantes ambientalistas que desde logo nos alertaram para mais um crime contra o Património. Resta saber se ainda vamos a tempo de preservar esta paisagem que nos ilumina os olhos da alma: ”O que temos no vale do Tua, o rio, o vale, a linha ferroviária, o equilíbrio da terra, da água, das escarpas, da vegetação, do vento, da solidão agreste, é hoje único em Portugal. Ou seja, não há mais. […] Estamos diligentemente a acabar com outro destes vales, o do Sabor, pelo que sobra apenas o Tua” (J. P. Pereira, ibidem). Ou será que o poeta Byron tinha razão quando nos remeteu para os limbos do miserabilismo, ao exaltar em contraponto a beleza edénica de Sintra: “Escravos torpes e vis, bem que nascidos nas pompas da criação! – Porque desbarataste, ó natureza, as tuas maravilhas com semelhante gente? Eis que em vário labirinto de montes e vales surge o glorioso Éden de Sintra”(Peregrinação de Childe Harold, 1812).
Urge reaprender a apreciar a beleza do silêncio ou dos murmúrios da terra e da água, ou a sentir com plenitude os odores das plantas silvestres, com a humildade de efémeros hóspedes deste mundo mágico, que temos o dever ético e estético de preservar.

4 comentários:

  1. Não querem estas mentes governantes senão a embriaguez do mando e o almejo do coluio voraz das suas clientelas corporativas. Retalham terras e montanhas, suprimem a paisagem a seu belo prazer; privam gentes humildes de utilizar o seu transporte ferroviário, ostracizam o turismo ( veja-se a vizinha Espanha com a linha turistica Cantábrica/ Galiza, com paisagens semelhantes e de grande beleza. Preferem vender carris aos mercenários da sua equipagem de segredos telefónicos. E fica toda a nossa gente pendente deste bando de trapaceiros que figurariam em novo livro, com maior medida do que " Júlio Gonçalves, o Tubarão, o homem mais cruel, safardana e danoso que alguém deitara ao mundo " - figura que salta das páginas de " Avieiros" e da pena de Alves Redol; personagem ( personagens), cada vez mais actuais na vivência dos dias que correm.

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  2. Verão de 1955,
    férias numa quinta vinhateira de uma família amiga, na Quinta da Lavandeira, freguesia de Castanheiro do Norte, adjacente ao vale do rio Tua, num trecho em que as respetivas escarpas são mais acentuadas, a poucos quilómetros da confluência com o Douro. Quando o calor apertava íamos nós, um grupo de gente nova, de passeio por aí fora, a pé e a pique lá para baixo, onde se escondia uma prainha que nos convidava a tomar banho.
    Ao imaginar agora que este reduto balnear ficará submerso, para sempre, pelas águas dessa barragem, fico com pena.

    50 anos mais tarde, verão de 2005,
    voltei ao rio Tua, desta vez mais a norte, a uns 10 quilómetros de Mirandela, Frechas, onde um amigo meu cuida de uma casa mandada construir pelo avô, quando este viera a ser médico geral para todo o pessoal empregue na construção da via férrea, aí por volta de 1880-90. Prometi voltar lá, e o meu amigo prometeu-me: então iremos de comboio, mais precisamente no novo metro, até ao Castanheiro, à quinta dos primos.
    Agora que esta promessa nunca mais poderá ser cumprida e imaginando que os carris virão a sofrer de corrosão terminal, lá no fundo das águas ou no entulho da sucata, fico com pena.

    Novembro de 2011,
    céu limpo, de 8.000 metros de altitude avisto, do meu lugar à janela do avião, a vasta região do Douro e da Beira Alta. À primeira vista uma paisagem deslumbrante. Mas, que vem a ser aquilo, ali, montanhas esventradas sem dó nem piedade? E, acolá, aquela serpentina interminável a devorar tudo que encontra pela frente?
    Vejo que é só tirar terra a troco de betão; fico com pena.

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  3. Caro amigo Pedro, estamos condenados à nostalgia dos lugares para sempre perdidos, por acção e cegueira dos tecnocratas das ilusões do "progresso". Assim se vai destruindo a alma da paisagem e com ela a nossa identidade colectiva.

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  4. Vamos ver se consigo!!! O texto está muito bom - informativo e literário! Beijinho

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