domingo, 15 de abril de 2012

Ler Hoje o Neo-Realismo (1)


Júlio Pomar - Gadanheiro (1945)

De todos os movimentos estéticos portugueses do século XX, o Neo-Realismo é aquele que mais tem sido objecto de interpretações equívocas e redutoras. Ora é desvalorizado pelo seu carácter panfletário e partidário, ora associado a uma retórica populista do miserabilismo económico-social, propensa a uma cenografia maniqueísta de angelização do proletariado e de diabolização da burguesia. É frequente, nos nossos dias, em análises de produtos culturais, ler-se, como paradigma de mau-gosto, que tal obra é demasiado neo-realista. Haveria assim, no século XX, gerações de criatividade estética assinalável, como a do Orpheu, a da Presença ou a surrealista, enquanto a neo-realista destacar-se-ia pela sua esterilidade semântica. Como em geral tais analistas desconhecem as obras neo-realistas, torna-se fácil perpetuar estereótipos sobre o movimento (1). É óbvio que, como nas outras tendências acima referidas, há obras que não resistiram ao trabalho do tempo, sendo sobretudo documentos históricos do imaginário da resistência à ditadura salazarista, outras há no entanto que continuam a merecer leitura atenta. Depois há que ter em conta os modismos culturais em cada época. Hoje, há uma predilecção para o consumo de obras de ficção de centração intimista ou de evasão exotista (veja-se o êxito internacional das “bestas céleres” do actual ciclo vampiresco americano ou do esoterismo de pacotilha), algo que, de resto, não é novo na história da modernidade literária. Houve, desde o Romantismo, conjunturas dominadas pelo aprofundamento do “eu-individual” ou de apego exotista e pitoresco, outras marcadas pelo registo do “eu-social”, seja como denúncia, seja como apelo à luta sociopolítica. Em cada conjuntura, as condições de recepção das obras estéticas mudam em função dos horizontes de expectativa dos virtuais leitores. Mas o que está na moda, não esqueçamos, é o que frequentemente morre mais depressa.
         Por isso convém contextualizar, no plano histórico-social, as obras literárias, de molde a entender a sua génese, o seu modo de circulação e de recepção. Aliás, embora num clima bem diferente da repressão ditatorial que nos coube em sorte, ou melhor em desgraça, desde a década de 30 a 1974, as tensões sociais hodiernas apelam de novo a uma arte que cristalize a dinâmica social no seio da comunidade. Não se trata de retornar aos modelos estéticos neo-realistas da década de 40 até aos anos sessenta do século XX, mas descobrir neles veios inspiradores para uma arte que possa fundir os problemas individuais com os da comunidade. Convém por isso ler ou reler os livros de Alves Redol, Soeiro Pereira Gomes, Manuel da Fonseca, Fernando Namora, Carlos de Oliveira, Faure da Rosa, entre outros, não apenas como documentos do imaginário colectivo arquivados para sempre no Museu do Neo-Realismo, mas também como linguagem narrativa ou poética comprometida com a transformação do mundo, o que pressupõe simultaneamente o modo idiossincrático como cada um dos autores se implicou, tanto no plano ideológico como no da escrita, nessa prática de dizer universos alternativos aos dias cinzentos do nosso fascismo.

Para mudar hoje este mundo iníquo, dominado por forças financeiras não sufragadas, urge mudar o olhar do mundo, tendo aí a arte uma função exemplar, como virtual contrapoder relativamente à visão dominante promovida pela manipulação mediática dos poderes que reificam os homens ao sabor das suas estratégias. Contra os fatalismos da História e as sequentes acomodações individuais e colectivas, se escreveram, embora com registos diferentes, as obras dos neo-realistas ou as dos surrealistas, ambas poéticas da emancipação e da libertação, numa articulação entre o individual e o colectivo, no primeiro caso, ou, numa matriz mais individual e num imaginário rebelde ao controle racional, no caso do segundo. A prática literária é sempre um jogo com as palavras, mas também um trabalho sobre a linguagem com óbvias projecções sociopolíticas, distintas consoante a mundividência dos indivíduos ou dos grupos em que se inscrevem. Um labor solitário/solidário com as palavras da comunidade.

Rogério Ribeiro - Ilustração para "Até Amanhã, Camaradas" (1975-76)

Claro que a modernidade do Neo-Realismo não se funda na tradição da ruptura vanguardista como aconteceu com a geração do Orpheu, mas na tentativa de, a partir de uma síntese superadora do romantismo social e do realismo, criar uma arte democrática, tanto no plano da linguagem como no plano do destinatário, embora num ciclo longo a influência de outras correntes estéticas seja de assinalar. E se a mundividência marxista foi a sua matriz, não podemos por isso tomar a sua poética como uma mera transposição de tal sistema ideológico, o que justificaria, nesta conjuntura de crise das metanarrativas históricas e dos sistemas de valores (neste reino dito do fim das ideologias), a desvalia do Neo-Realismo. Mas terá algum sentido, por exemplo, avaliar hoje a obra romanesca de Zola em função da datada “infra-estrutura” filosófica positivista que a impulsionou? Do mesmo modo poderíamos reduzir e avaliar a poesia de Fernando Pessoa em função da sua ideologia conservadora liberal e antidemocrática ou, como a formula Raúl Morodo, em função do seu nacionalismo libertário e “sintético”?
Todas as obras literárias são simultaneamente uma inscrição ideológica e a sua superação polissémica, por isso fruitivas pela latência dos seus sentidos, sendo cada leitura uma actualização temporal da sua virtualidade semântica. Um texto redutível a uma estrutura ideológica será neste aspecto, pela sua transparência monossémica, um texto com morte anunciada.
Na década de 40, a fase da “inocência épico-lírica” do Neo-Realismo, a centração implícita numa comunidade de ideias, afectos, valores e imagens, específica desta geração, coexistiu, no entanto, com uma diversidade formal desde a sua génese e que se acentuaria na década seguinte, embora os compromissos com uma arte de intervenção social, em oposição ao autotelismo estético da Presença (1927-1940), fossem consensualmente aceites por todos aqueles que se empenharam na emergência de uma arte que contribuísse, no seu âmbito específico, para uma democratização cultural suportada por uma mitologia da libertação e da predição utópica de um mundo novo sem opressores nem oprimidos.


(1)  Como contributo para uma história da narrativa social, de Ferreira de Castro a José Saramago, no século XX, cf. Vítor Viçoso, A Narrativa no Movimento Neo-Realista – As Vozes Sociais e os Universos da Ficção, Lisboa, Colibri, 2011.




5 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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    1. Gostei da sua prolixa e clara explanação sobre o Neo-Realismo.
      Não conhecia o seu blogue mas, pelo que pude ler, merece que lhe dedique uma maior atenção.
      Coloquei o seu blogue na lista de hiperligações do meu blogue.
      Bem haja!

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  2. Não sabia que tinha um blogue.
    É um gosto vir aqui aprender.
    Sobre Neo Realismo assisti a uma conferência no Museu em Vila Franca.
    Fico sempre surpreendida (e um bocadinho aterrorizada nas minhas escrevinhações) com a forma como se consegue dissecar as obras, os autores, e ir tão longe, na análise...

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  3. o primeiro livro que li a seguir aos livros infantis, devia ter uns 9 anos, foi 'Esteiros' de Soeiro Pereira Gomes e desde aí cultivei uma relação engraçada com os escritores neo-realistas porquanto eles davam voz à minha sede de justiça social o que mais tarde me faria ir para Direito. Todavia, na minha adolescencia 'rebelde' e 'sombria' só lia a geração d'Orpheu, o modernismo e futurismo e tinha como meu herói artistico e literário Almada Negreiros e Mário de Sá Carneiro. Mais tarde percebi que os neo-realistas eram vistos injustamente com um certo estigma e decidi reler alguns, nomeadamente Gaibéus e sobretudo o Novo Cancioneiro. Adorei o seu post. Obrigado.

    Paula Lamares
    http://fashionheroines.blogspot.com

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  4. Obrigado Vítor por mais este contributo formativo;em especial para o despertar dos menos atentos à génese deste movimento. O Neo-Realismo é o movimento literário, que vindo do passado ( séc.XX); mais realidade de forma tem nos dias de hoje, onde já se poderão escrever páginas com a mesma observação factual e referências de sofrimentos sociais. No entanto é preciso, mais do que nunca, ler Redol, Manuel da Fonseca, Carlos de Oliveira e outros autores. Para perceber melhor este ano de 2012.

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