terça-feira, 17 de abril de 2012

O Nada Também Acontece

Chirico - O Enigma da Hora (1911)

Hoje queria contar-vos coisas terríveis, absurdas, abomináveis, incómodas ou imprevistas, como aquela cena do cão que mordeu o dono com os dentes da alma que não tem ou a do político que se suicidou com o veneno do vazio das suas causas ou a do homem que implodiu em plena rua com a força da raiva reprimida. Da fome que vai pelo mundo e dos que exploram a fome do mundo, dos estilhaços de bomba dos desesperados da terra, das sopas de letras dos poetas em défice de engenho e arte, das galinhas poedeiras a desgastar as unhas nas pranchas  soletradas pelos burocratas da Desunião Europeia, dos amantes enlouquecidos que brotam ácido sulfúrico no rosto dos amados, da resignação colectiva face aos fados e factos dos grandes poderes financeiros, da pobreza desta nossa democracia a esmolar nas ruas da desdita, dos políticos que dizem que sim mas que não, dos banqueiros que bancam as nossas desgraças, dos desempregados a apodrecer nas praças de fome e solidão. Da Síria ou da Guiné com as suas guerras fratricidas, do Inverno que nos tolhe em plena Primavera, dos fardos de solidões no silêncio dos casarios. Ou mesmo o mais comezinho: a última operação plástica ao rosto nefelibata da Lili, milagre caseiro do eterno rejuvenescimento, ou a medalha de ouro a atribuir ao corredor de fundo Mota Engil, pelos briosos actos cívicos em glória da pátria. Mas hoje não sou capaz. O nada tolhe-me os movimentos, o nada cala em mim os gestos deste mundo sem rumo. Como se nada de importante estivesse a acontecer, como se tudo se resumisse a este vazio interior. Hoje de facto nada aconteceu para mim. Apenas aconteceu o silêncio rumoroso de o dizer.   

3 comentários:

  1. Lindo! Mas aconteceu... este texto lindo!

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  2. Acontece de grandes vivências e da verticalidade do existir " O Nada também Acontece" mas não desmorece o olhar do sentir.

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  3. É do nada que a obra nasce, o nada é sempre o inicio de algo... o absurdo do nada é que o vazio pede para ser cheio e uma mente cheia dificilmente se esvazia. Cada vez menos me interessam os "negócios" da pólis e o «gossip» efémero dos rostos sem rugas nem vida dentro. Acho que o Penedo me está a direccionar cada vez mais para o mundo imperfeito mas belo da criatividade humana. A arte é a minha pátria como para o outro era a língua portuguesa. Adorei o texto. Obrigado.

    http://fashionheroines.blogspot.com

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