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Jacob Burk (1904-1982), The Lord Provides, litografia,1934 |
Nasci em 1943 (11/12) e vivi até aos 30 anos sob o domínio
da ditadura “fascista” de Salazar e do seu sucessor, na fase crepuscular do
regime, Marcelo Caetano (1968-1974). Em 1958, com a farsa eleitoral que opôs o
General Humberto Delgado ao totalitarismo da direita reinante, tive o primeiro
sobressalto na minha consciência política. Para lá do reconhecimento abstracto
do terrorismo oficial, um familiar fora preso e enviado para Caxias, pelo único
pecado de ter colaborado na candidatura do General.
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George Grosz - Sem título (1920) |
Os dias cinzentos, na
magnífica expressão de Mário Dionísio, toldavam-nos o olhar e
enclausuravam-nos o corpo, por isso a luta contra o absurdo da mais longa
ditadura europeia - que sobreviveu, contra muitas expectativas, à derrota
nazi-fascista na 2ª Guerra Mundial e pôde até integrar-se com a cumplicidade
das potências ocidentais democráticas na NATO, em 1949, em função da nova
conjuntura (a chamada Guerra Fria) – foi um processo complexo, no quadro de uma
repressão política e sociocultural com projecções em todos os actos
quotidianos. Só, na década de 60, com a eclosão da guerra colonial, na qual a
minha geração foi forçada a dar o corpo ao manifesto, o regime começou a ser
isolado internacionalmente. O fantasma de Salazar, que morreu em 27 de Julho de
1970, acompanhou-nos pelo menos até ao 25 de Abril de 1974.
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George Grosz - Os Pilares da Sociedade (1926) |
Mas o exorcismo
desencadeado pela Revolução de 25 de Abril, com toda a euforia colectiva, sobretudo nos meios
urbanos, não impediria, para espanto dos que sofreram no corpo e na alma os malefícios
desses anos de chumbo, que a sombra do ditador abandonasse definitivamente a
cena do nosso imaginário colectivo e pudesse ressurgir mais ou menos
santificado, em momentos de crise do nosso sistema democrático, tal como
acontece com a actual conjuntura.
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Júlio Pomar - Gadanheiro (1945) |
A festa revolucionária foi intensa mas de
curta duração, a democracia paralisou-se no gesto pragmático de “meter o
socialismo no bolso”, depois veio o Eldorado da CEE, fundos e fundos a sumirem-se
nas areias de Portugal, mas pagos com a destruição do nosso já débil aparelho
produtivo, ou nesse delirante mar de betão onde nos afundámos. O poder político
e a Banca empenharam-se e empenharam-nos, durante esse período glorioso, na
ilusória felicidade do “consumismo”.
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Hanson Duane - Senhora do Supermercado (1969) |
Basta ver que entre os mais ricos de
Portugal contam-se os proprietários das novas catedrais de consumo. Mas com a
crise financeira internacional, espoletada pelos bem embrulhados “produtos
tóxicos”, o reinado das ilusões desabou subitamente. Somos hoje o país da EU
com mais desigualdade social e mais de um milhão de desempregados. Durante a
ditadura, de 1960 a 1974, um milhão e meio de portugueses, rurais e analfabetos
na sua maioria, partiram “a salto” para França. Hoje é o benemérito governo que
aconselha os portugueses a emigrarem. A casa está em ruínas!
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Frank Holl - Partida de Emigrantes (1877) |
Numa recente sondagem, mais de metade dos inquiridos admite mesmo que a
economia (56,7%) e a justiça (49,1%) funcionavam melhor antes do 25 de Abril. Claro que nunca
ouviram falar dos Tribunais Plenários, onde os opositores ao regime eram
expostos às arbitrariedades do poder, em julgamentos que eram verdadeiras
farsas-trágicas, para não falar da prorrogabilidade das medidas de segurança
por períodos indefinidos que permitiam ao poder manter na prisão os
“subversivos” muito para além do tempo das penas atribuídas em tribunal. Não
ouviram falar ou trata-se de um caso de amnésia colectiva.
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Álvaro Cunhal - Projecto 4 |
Quanto à economia,
Salazar ficou famoso por ter sido capaz de restaurar o nosso equilíbrio
financeiro, mas à custa de um povo brutalmente empobrecido e controlado
policialmente nas suas reivindicações. A imagem dos “pobretes mas alegretes”
tinha muita força. Apenas um exemplo: em 1974, éramos a sociedade ocidental com
o índice mais elevado de mortalidade infantil (em 1960, em cada 1000 habitantes,
77,5; em 1975, 38,9). Hoje, temos uma das mais baixas taxas no mundo desse
flagelo social. Nem tudo correu mal nas 3 últimas décadas no que concerne à
estruturação do Estado Social - aliás, um conceito de formulação duvidosa, pois
se o Estado hipoteticamente não estivesse ao serviço do bem-estar dos cidadãos,
para que serviria? Para reprimir os recalcitrantes, cobrar impostos e garantir
os lucros fáceis do poder económico-financeiro?
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José Dias Coelho - Morte de Catarina Eufémia (c. 1954) |
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João Abel Manta - Preso Político Ladeado por um Pide e um Guarda
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,1936-1974.jpg) |
Mocidade Portuguesa (1936-1974)
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Mas, actualmente, com o “neo-liberalismo” imposto por este
governo e seus mandantes internacionais, em nome da austeridade, está-se a
destruir o nosso chamado Estado Social. A democracia portuguesa vai-se
desintegrando, pois deixou de corresponder às necessidades vitais da
sobrevivência da nação como estado independente. O povo oscila entre a
resignação e a revolta, o fatalismo e a procura de alternativas que começam a
superar as fronteiras dos partidos que até aqui têm monopolizado a vida
política. Há um divórcio cada vez maior entre os cidadãos e os partidos, tal
como noutros países do sul da Europa. Entre nós, estão então criadas as
condições para o regresso em força dos velhos fantasmas, sobretudo a nível da
população mais despolitizada ou amputada de memória colectiva.
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George Grosz - Desempregado (1934) |
Claro que o actual tecnocrata ministro Gaspar não parece ser
tão bom em números como o fora Salazar, aliás, um precursor da austeridade como
medida salvífica dos povos. Mas no tempo da outra Senhora não havia Estado
Social, apenas um arremedo, nem sindicatos livres, nem oposição legal. Gaspar
é, de resto, um cosmopolita agente do capitalismo financeiro internacional,
disfarçado de ministro das Finanças de um governo à deriva e na situação de
bancarrota.
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Salazar (décadas de 30-40) |
Salazar era, em contrapartida, um austero “provinciano” que, no
entanto, bem serviu os donos tradicionais de Portugal: “O meu isolamento tem
essa vantagem: permite-me estar ao lado de todos os portugueses, permite-me não
viver, aqui ou além, para viver simplesmente em Portugal!” (Entrevistas de António Ferro a Salazar,
1932-38). Estar ao lado de todos os portugueses, isto é, numa versão maligna,
estar sorrateiramente de múltiplos olhos vigilantes como Argos, não fosse a
“besta democrática” fazer das suas. A isso chamou-se primeiro PVDE e depois
PIDE (a polícia política e um exército de informadores, sempre à escuta das
eventuais palavras da subversão). Depois o olhar aterrorizador da Censura lá
estava para completar esta devassa à alma dos portugueses. Silenciados, a
maioria dos portugueses vivia a sua videirinha. Não te metas em trabalhos de
galé, isto é, falar de política, era conselho de pais para filhos. Por isso os
portugueses, na sua maioria, são ainda hoje peritos no monólogo e inábeis no
diálogo. Os gestos mentais são lentos na mudança, demoram gerações. Depois há a
memória mais antiga dos tempos inquisitoriais. É muito peso para um povo dito
semiperiférico. Nunca ninguém se lembrou de fazer uma antropologia do modo de
andar dos portugueses. Um campo semiótico a explorar. Cada corpo transporta
consigo espessas camadas seculares de monólogos, queixumes e sussurros como uma
expiação. Ao menos habituem-se a gritar, se não os salva pelo menos alivia. É
um peso a menos no andar.
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Rogério Ribeiro |
Hoje estão, no entanto, criadas as
condições, com a progressiva decomposição desta democracia, numa União Europeia
sem rumo ou subjugada pelos interesses hegemónicos do especulativo capitalismo
financeiro, para uma beatificação do camponês-doutor de Santa Comba Dão, que
“morreu com as solas rotas”, e viveu gloriosamente para o bem-estar da grei,
como já li em algumas mensagens das redes sociais. Com a novidade de ser
referido o seu longo reinado como a negação do nepotismo e da corrupção. Nesse
Portugal mítico omite-se obviamente que durante a ditadura se hiperbolizou a
“cunha”, essa sagrada instituição nacional. Claro que o espectáculo grotesco,
que a nossa actual classe política vem desenvolvendo, cria as condições ideais
para uma ressurgência de uma mitologia messiânica encarnada num reinventado
Salazar. Quem serão os candidatos à reencarnação?
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Mocidade Portuguesa (1936-74) |
É de facto urgente fazer um balanço destes 39 anos de
democracia, tanto nos seus aspectos positivos como nos negativos (sobretudo a
tortuosa conivência entre o Estado e os poderosos grupos económicos ou a
corrupção de alto coturno tipo BPN), e reinventar a democracia, que não é uma
fórmula fixa, mas o resultado de uma permanente luta colectiva e de uma
capacidade inerente de ser questionada, de nos questionarmos, para lá dos
formatados partidos políticos, em geral pouco inclinados à reflexão. Obviamente
a solução não está em regredir para modelos conservadores, mas investir na
busca de mundos alternativos que devolvam a dignidade aos cidadãos. Como é
possível que na Grécia, em Itália, em Espanha e Portugal haja dezenas de
milhões de desempregados? A situação é explosiva e implosiva. Do caos passemos
então a um novo paradigma democrático. É tempo de acabar com os fantasmas! Quem
diria que, quatro décadas após o 25 de Abril, ainda perco tempo a terçar armas
com os nostálgicos do ditador.
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João Abel Manta - As Idades de Salazar 1 |
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João Abel Manta - As Idades de Salazar 2 |
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João Abel Manta - As Idades de Salazar 3 |
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João Abel Manta - As Idades de Salazar 4
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João Abel Manta - As Idades de Salazar 5
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