quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

O Pesadelo do Político – Fragmentos de um Diário



Bosch - O Inferno, detalhe do tríptico O Jardim das Delícias  (c. 1500)

Sempre dormi em sossego nas asas aveludadas de Morfeu, pacificado pela benéfica cruzada patriótica de tornar os pobres mais pobres e os ricos mais ricos, em prol da Renascença Nacional, e seguindo à letra as ordens da finança internacional. Mas esta noite tive um atroz pesadelo. Estava no Inferno, rodeado de pobres que me arrancavam pedaços de carne.



Mestre Desconhecido, Escola Portuguesa 1ª metade do séc. XVI - O Inferno


Neste delírio antropofágico, queria falar mas não era capaz. Falar é uma maneira de dizer, era mais um estéril gritar que apelasse para o bom senso destes parasitas. Como se no Inferno tal fosse possível!



Bouguereau - Dante e Virgílio no Inferno (1850)


Bem lhes tentava dizer que estavam equivocados, eu não era um pedaço de vaca, era o Primeiro, o Eleito, uma versão laica do cordeiro pascal. Deviam respeitar as hierarquias, o poder supremo que o meu corpo legitimamente representava, mas apenas alguns sons esparsos se soltavam da minha garganta ou do que restava dela.



Bruegel -  Dulle Griet (c. 1562)

Era aterrorizado que via um meu braço ou uma perna a escaparem-se nas mandíbulas dessas formas híbridas predadoras. O meu fígado era sofregamente devorado por uma águia-humanóide, embora inutilmente a advertisse, é uma forma de falar, que me estava a confundir com Prometeu, esse antecessor dos perversos esquerdismos. Outros espetavam-me sadicamente garfos do tamanho de forquilhas nas coxas, no peito, nas barrigas das pernas, no coração, pois o meu corpo ora se desagregava em pedaços, ora voltava à sua forma primeira. Era cíclica e eterna a tortura como é próprio do Inferno.



Bruegel  - O Triunfo da Morte (c. 1562)

E piores que os machos eram as Fúrias, esses endemoninhados génios femininos importados do antigo imaginário greco-latino, nascidos das gotas de sangue de Úrano, que selvaticamente me ceifavam os testículos, para meu proveito e exemplo, conforme vociferavam essas megeras.



Bouguereau - Orestes perseguido pelas Fúrias (1862)





Ticiano - O castigo de Mársias (1570-76)


Eram milhões de desempregados, de sem-abrigo, de jovens emigrantes, de esfomeados, de velhos reformados e outros sem reforma, um exército indisciplinado de esqueletos gordurosos, onde não faltavam mesmo aqueles que entretanto se suicidaram de desespero, segundo as malignas vozes da Oposição. No seu estandarte pude tresler a palavra Indignação. Mas indignado estava eu com tais afrontas! Não será isto o mundo às avessas? No Inferno tudo é possível, mesmo o impossível. Aliás de ingratidões está o Inferno cheio!



Antonio Berni - Desempregados (1934)




Hubert von Herkomer - Em greve (1891)


Apesar do caos, lembrei-me, em última instância, de recorrer às Forças Armadas, ao aparelho do Relvas, aos meus amigos banqueiros, à elite dos empreendedores, aos números trocados do Gaspar, à Ângela e seus comparsas (talvez as Valquírias me salvassem, passe o paradoxo da fusão entre anjos e deusas da chacina). Sem êxito. Não tinham autorização, segredaram-me, para atravessar as portas do Inferno ou viajar na barca de Caronte. Proibição ou cobardia? Ou muitos já estariam como eu a sofrer aqui estas tropelias dos indigentes. De facto embora o fumo atenuasse a minha já flébil visão, ainda pude enxergar nebulosamente alguns Ulriches e Oliveiras que como eu padeciam às mãos-garras da turbamulta.




Orozco - Combate (1927)


Cogitei então com o que restava do meu cérebro, combalido com as investidas de Cérbero, o cão do Hades, mais serpente do que cão: se ao menos tivesse os dons de Orfeu, talvez a minha suposta flauta sossegasse estes omnívoros, cujo fito da vida parece ser unicamente comer, deglutir, devorar, manducar, digerir.



Goya  - Saturno (1820-23)


Foi por isso que a nação foi à falência. Se os deixássemos à solta ainda comeriam a Terra e outros planetas da órbita solar. Não sei como pude pensar tudo isto e ao mesmo tempo suportar as investidas destes mortos-vivos. Eu, o messiânico Salvador da Pátria, ver-me assim nestes assados simbólicos e literais. E quando os energúmenos se preparavam para me lançar ou o que de mim restava no caldeirão de óleo a ferver, acordei afogado em suor e alívio. Mas não seria o pesadelo um desses sábios avisos divinos? Pensei com os meus botões já derretidos com as altas temperaturas.




André Fougeron - Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse (1937)


Contra os meus hábitos, fui à varanda em pijama para respirar profundamente o ar terapêutico da realidade, depois de uma noite de chamas e enxofre, mas eis que atónito ao longe começo a avistar um bando de trogloditas com bandeiras negras e vermelhas e gritos de revolta. Pareciam os mesmos do pesadelo. Confundiam-se, na minha cabeça, os mortos-vivos com os vivos-mortos, certamente ainda atordoada com os efeitos da trágica noite. Estaria a perder a lucidez que foi sempre a chama, salvo seja, da minha caminhada política? A irrealidade estava a tornar-se realidade? Como seria possível tal transgressão?




Jules Adler - A greve em Creusot (1899)


Teriam estes miseráveis atravessado a pé as portas do Inferno ou teriam vindo à boleia na barca de Caronte, que  resolvera inverter a tradicional viagem, persuadido pelas falsas causas desta populaça? Seriam tão ardilosos que conseguiram o que até a Eurídice os deuses negaram? 




Carracci - O comedor de feijões (1580-90)




Picasso - Os pobres à beira do mar (1903)





Foi então que admiti pôr-me na alheta, isto é, viajar para um desses paraísos tropicais, ou melhor fiscais, antes que o pesadelo se torne definitivamente realidade neste outrora jardim de brandos costumes plantados à beira-mar. De facto eles não me mereciam!




Rivera - O guerreiro índio (1931)


O sol bronzeador dos trópicos seria certamente um bálsamo para quem fez esta travessia das labaredas do Inferno, ou seja, das iras desses corpos sujos, o chamado povo, que nasceram para ser escravos, mas não entendem nunca a sua natureza e destino.



Rivera - O levantamento (1931)


A vozearia na rua, cada vez mais horripilante (nesta aflição nem sei como me surgiu tal adjectivo),  intensificava-se e, então, em sussurro ordenei aos meus seguranças que me arranjassem rapidamente umas barbas de milho e um colorante ruivo para o cabelo para assim me disfarçar e passar incólume entre a canalha vermelha.




Antonio Berni -  Manifestação (1934)


PS - Esta página de pseudo-diário esvoaçou, por mistérios insondáveis, até este blogue, talvez soprada pela tempestade que durante uma semana assolou a capital deste reino malfadado. As barbas de milho, segundo notícias da TV, entretanto começaram a arder. Mas quero relevar, após leitura atenta, o invulgar conhecimento mitológico do nosso Primeiro, algo desconhecido pelo vulgo. Ou seria apenas o pesadelo a falar? 




Ansel Adams - Agitada pelo vento (1940)




Bosch - O Inferno, painel do tríptico O Jardim das Delícias  (c. 1500)

4 comentários:

  1. Parabéns, Vitor! Que texto tão surrealista a condizer com os quadros escolhidos!!! Uma maravilha! Partilhei directamente no Face!
    Olha, tens que começar a fazer tertúlias com o que escreves! Dá-te a conhecer! Beijinhos. Fátima

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  2. Brilhante lição. Obrigado por partilhar.

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  3. ...traigo
    ecos
    de
    la
    tarde
    callada
    en
    la
    mano
    y
    una
    vela
    de
    mi
    corazón
    para
    invitarte
    y
    darte
    este
    alma
    que
    viene
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    bello
    blog
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    ramillete
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    oro
    y
    claveles
    dentro...


    desde mis
    HORAS ROTAS
    Y AULA DE PAZ


    COMPARTIENDO ILUSION
    VICTOR

    CON saludos de la luna al
    reflejarse en el mar de la
    poesía...




    ESPERO SEAN DE VUESTRO AGRADO EL POST POETIZADO DE DJANGO, MASTER AND COMMANDER, LEYENDAS DE PASIÓN, BAILANDO CON LOBOS, THE ARTIST, TITANIC…

    José
    Ramón...


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    1. José Rámon,

      Grato pelas tuas palavras ("ecos de la tarde callada").
      Um abraço fraterno!

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