terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Madrugada, de Maria Almira Medina: as iluminações da voz


Maria Almira Medina, Sala da Folha, Colares, Maio de 2015 (fotografia de Emília Reis)


Maria Almira Medina (1920-2016) foi uma mulher que, ao longo da vida, se realçou por uma intensa intervenção cívica e sociocultural multifacetada (poeta, artista plástica, professora e jornalista sintrense). Na hora da sua morte, aqui deixo este texto sobre a sua poesia, publicado, no Outono de 2012, na Revista Selene - Culturas de Sintra. Para lá das palavras de circunstância, este é meu modo de homenagear esta cidadã exemplar.




Madrugada, de Maria Almira Medina: as iluminações da voz

Nas asas a força
E a possibilidade
Dos pássaros.


Embora a 1ª edição do livro de poesia Madrugada, de Maria Almira Medina, tenha a data de 1956, a maioria dos textos nele incluídos (66) foram produzidos entre 1944 e 1947, sendo apenas 10 posteriores a essa data (1948-1955). Tal facto é pertinente, pois remete-nos para um específico contexto sociocultural de enunciação e de recepção estética com implicações na compreensão da sua obra. Entre 1944 e 1947, são raras as obras de poesia de autoria feminina, sendo de salientar como excepções a publicação por Natércia Freire de Rio Infindável (1947) e as estreias poéticas de Sophia de Mello Breyner Andresen (Poesia de 1944 e Dia do Mar de 1947) e de Natália Correia (Rio de Nuvens de 1947). Ora a poesia de Maria Almira Medina insere-se na temática da condição sociocultural da mulher de origem burguesa, numa sociedade padronizada em função do cliché da mulher como “fada do lar”, com raros direitos de cidadania, num mundo subjugado pela ditadura fascizante de Salazar, onde o policiamento dos actos culturais era uma das componentes nucleares do aparelho repressivo do regime e da reprodução ideológica dos valores que sustentavam e davam continuidade a tal sistema político e económico-social. A artista, nesta hierarquia social, era duplamente silenciada, enquanto criadora e mulher, embora o tema da emancipação feminina tenha conhecido anteriormente com a poesia de Florbela Espanca (1894-1930) um momento de elevada exaltação, ou, mais tarde, com a escrita intimista de Irene Lisboa (1892-1958), fundada numa estética do fragmento, onde as fronteiras entre a poesia e a prosa se atenuam, um segundo momento de afirmação dos anseios e contradições da mulher socialmente enclausurada ou da busca e afirmação da sua identidade, num universo de valores dominantemente “machistas” que silenciavam a voz cultural feminina e a condenavam à solidão. É, pois, neste horizonte sociocultural que podemos ler e interpretar a poesia de Maria Almira Medina.
Por outro lado, entre 1944 e 1947, os anos finais da trágica 2ª Guerra Mundial (1939-1945) e do alentar da esperança no pós-guerra de um mundo novo e democrático por parte das forças progressistas e dos seus artistas, após a derrota do nazi-fascismo, geraram por toda a parte uma vocação estética orientada para a intervenção sociopolítica, ainda que essa “arte social” não fosse monolítica quanto ao modo de a exprimir. Entre nós, esse movimento designou-se como Neo-Realismo, e teve, no domínio da poesia, o seu momento fundador com a Colecção do “Novo Cancioneiro”, editada em Coimbra entre 1941 e 1944. Nela participaram vários escritores (Fernando Namora, Mário Dionísio, João José Cochofel, Joaquim Namorado, Manuel da Fonseca, Carlos de Oliveira, Sidónio Muralha, entre outros) que operaram uma ruptura relativamente ao culto da originalidade intimista do movimento da Presença (1927-1940) e das concepções autotélicas no plano estético das suas figuras mais relevantes: José Régio, João Gaspar Simões e Adolfo Casais Monteiro. Para simplificar, poderíamos dizer que ao “eu individual” da Presença, os neo-realistas opunham o “eu social”, ainda que tenhamos de reconhecer, a esta distância temporal, algumas linhas de continuidade entre uns e outros no plano da linguagem poética, como refere Fernando Guimarães, um arguto estudioso dos movimentos poéticos portugueses no século XX.

Neste aspecto, Madrugada estabelece a ponte entre o intimismo da geração da Presença, ou mesmo da subjectividade labiríntica e dilacerada de um Mário de Sá-Carneiro, e a apetência por um metafórico canto da redenção humanitarista vizinho da poética neo-realista, sobretudo reconhecível a partir dos poemas 51 a 76. Aliás, embora não atribua títulos aos seus poemas e não os insira por ordem cronológica, o modo de sequenciar no livro os textos revela uma intencionalidade de traçar um caminho entre a busca ensimesmada e abissal de uma identidade feminina, no quadro de uma clausura burguesa hiperbolizada, e a revelação de um eu que se complementa pela sua projecção numa voz coral, simultaneamente superadora das contradições intimistas e de uma sociedade iníqua na qual não havia lugar para a fraternidade. O eu participaria então de uma vocação comunitária que passaria a dar um novo sentido à sua existência enquanto mulher e cidadã. Logo no primeiro poema da obra, datado de 1947, projecta-se uma espécie de autobiografia imaginária que tem como interlocutora virtual a mãe e que atravessa diferentes fases da sua vida (a infância, a adolescência, a juventude com a sua rebeldia e o período da maturidade). Há como que um tom confessional depurado, onde sobressai um tempo dominado pela solidão, pela clausura e pela ausência de diálogo com os pais. Ou,então, uma ferida fundadora neste percurso retrospectivo, resultante da incomunicabilidade entre o eu e os outros: os pais, os amantes e o mundo. 
Realçam-se  aqui os interditos e os mitos (a espera do príncipe encantado) a que estava sujeita uma jovem numa sociedade dominada pelos valores masculinos: “Nunca quis ser um homem, / Mas chorava a minha injusta condição de menina bonita que/ pede licença para viver,/ Enquanto o meu irmão entrava na vida sem grades e algemas./ Eu era livre como um pássaro, mãe, e amava a vida!/ Eu queria correr mundo como o ar, ó mãe!” (p. 11) 1. Daí a rebeldia que cresce com a juventude e é um antídoto para a solidão e a activadora da possível e desejável expansão de uma força vitalista que se desenvolve no desejo da aventura ou de mudar o mundo em nome da verdade da vida. Este vitalismo exacerbado não andará longe de alguma poesia de Adolfo Casais Monteiro ou de Manuel da Fonseca. Contra o tédio e a rotina do quotidiano, a viagem surge como a metáfora da libertação do desejo. Aparentemente a síntese entre as razões íntimas e o clamor contra as injustiças sociais parece abrir as portas a uma nova mulher num novo mundo, porém o poema retorna ao desassossego e ao desencontro inicial, sobressaindo o malogro da sua luta ao lado dos pobres de pedir e dos povos humilhados contra o poder das pessoas respeitáveis, ou seja, do mundo burguês.
O tema da clausura da jovem burguesa é, aliás, reiterado ao longo de todos os poemas dominados pela desesperança, tendo na janela da casa, um espaço de fronteira, um símbolo paradigmático. Há como que um muro inexpugnável entre o corpo de desejo e a voz juvenil feminina, pois esta está, ao mesmo tempo, presa à casa e aos seus mitos familiares, em suma, a uma ficção castradora, e fascinada pelo mundo real da rua e dos caminhos do mundo. Daí que a sua voz se extinga na solidão sem destinatário, uma compulsão narcísica entre dois espelhos. Aí a vida torna-se algo de residual perdido no labirinto do tempo interior – um corpo ausente. É um mundo sem pontes entre o eu e os outros, de sonhos ausentes de finalidade e de vozes silenciadas: “Ninguém ouvirá os sinos,/ Ninguém sabe que eu vivi./ Os sinos semeiam estrelas/ Que eu deixei em testamento. / […] Semeiam estrelas os sinos,/ Que ninguém virá colher.” (p. 13). Entre o corpo ausente que recusa a dor de pensar-se e a dissolução do eu ante a aridez do mundo, recortam-se as imagens simbólicas do lago calado (água enclausurada) ou da entediante janela, “o estúpido quadrilátero”, da chuva e da noite, ou, num grau mais hiperbolizado, do imaginário do abismo. A opositividade entre a noite e o dia banaliza-se e só o clima mágico das histórias infantis (o dragão, a bruxa, o príncipe encantado) de pasmar parecem atenuar o cansaço ou a dor de ser. Daí o pairar da pulsão de morte ou do sono, uma sua imagem gémea.
No poema 11, o sujeito enunciador apela ao fim dos símbolos de encantamento (jardins, flores, pássaros),  numa convergência entre o fim do objecto que o enfeitiçou, enquanto terapêutica ilusória, e a morte do eu. Mas esta dor narcisicamente indefinida projecta-se numa quase amnésia da identidade que tem na metáfora do Mar Morto ou das almas dos navios naufragados essa saudade de vir a ser aquilo que nunca pôde ser. Daí o desejo pontual de “ser a serenidade inconsciente dum pôr-do-sol”, embora saiba, numa dinâmica imaginária decadentista, que “o poente é uma nevralgia”. A viagem parece ser um acto permanentemente diferido, pois o sujeito é mais objecto da viagem imaginária do mundo do que sujeito da viagem. Esta descida à noite do ser é, no entanto, a condição para a aprendizagem da luz, pois como afirmaria Adolfo Casais Monteiro: “Ah! só quem vem das trevas e das noites escuras/ pode amar assim o imenso mundo do sol!”.2
A libertação desse vitalismo solar passa então pela catarse da descida aos infernos do tempo infanto-juvenil, onde até a terra-berço, o jardim edénico de Byron e do turismo (Sintra), é rejeitada porque associada à metáfora da prisão (família, parentes, amigos), em nome dos símbolos da viagem adiada porque reprimida: “Só amo os voos de ave ou os mastros dos navios a apontar o/ desconhecido./ Só amo a distância e esse mar onde mora tudo o que me rouba-/ram em menina,/ Esse mar que sepultou meus sonhos de perspectivas verdes, infin-/ dáveis, e minhas possibilidades malogradas” (p. 25).Como se a libertação do eu só fosse possível através da desconstrução da própria mitografia juvenil, ou seja, de um absoluto fantasmagórico que fica sempre aquém das suas expectativas, como esse simbólico argonauta em busca do velo de ouro sepultado para sempre por esse amistoso “mar raivoso”. Há então uma reiteração das imagens do malogro do partir ou da perda do sentido de ser (“Perdi-me no alto-mar/ Malogrou-se o meu partir”, p. 27), sendo progressivamente o eu identificado com a própria vertigem do abismo: “Vim dos abismos do mar/ Numa barca à vela/ Sem vela e sem vento./ Vim de madrugada,/ Entre o sol e o luar./ […] Ai, minha boca/ Era o abismo donde vim.” (p. 28). Ou então uma suspensão eternizada num definitivo “porto inabordável”. É o mundo do cansaço e do corpo ausente, embora a figuração de um tu possa ser o leito do esquecimento.
Já o erotismo perpassa sobretudo nos poemas 23, 24 e 25, onde o outro pode acordar os desejos até então interditos (“Vem, meu amor, vem acordar a eternidade no meu corpo”, p. 36) ou mesmo fundir numa mesma unidade a carne e o espírito, superando o dualismo da tradição platónico-cristã, como se pode observar no quiasmo: “A minha carne é toda alma,/ A minh´alma é toda carne!” (p. 38). O corpo erótico parece assim ser uma superação das metáforas do eu perdido no labirinto interior. Embora sem rota, o corpo espraia-se passivamente como objecto apetecido de um tu. O erotismo parece ser um outro modo de esquecimento das turbulências da viagem a haver. Entre a abstracção das quimeras, opta-se pelo corpo do real. Algo que é realçado no poema 30, onde à verdade da ficção (“terra de veludo e estrelas”; “a lua de vidro”; “os génios”; a espera do «Desejado») se opõe o mundo das “coisas reais”.
A partir do poema 32, e sobretudo do poema 45, as imagens nauseantes do mundo burguês dominam, num universo povoado de donzelinhas enclausuradas nos seus quartos, olhando através das janelas um mundo simultaneamente próximo e distante: são os pássaros engaiolados, leitoras de Max du Veuzit (1876-1952) e da Colecção Azul, leitura bem armadilhada para uso e educação das assexuadas jovens burguesas, preparando-as para a espera do Príncipe Encantado à esquina da rua. Para elas vai o apelo do enunciador no sentido de se libertarem dessas ficções alienantes e virem, de coração aberto, para “o livro matizado da vida”. Neste tédio dos dias cinzentos, as meninas burguesas consomem o quotidiano entre os enfadonhos bordados e o tricot ou o piano e ficam num paradoxal gesto de olhos fechados “a ver a rua a passar”. É pois já o seu mundo social criticamente visualizado a partir do exterior. É também o mundo fechado dos meninos burgueses que apenas podem brincar ,através do olhar, com os miúdos pés-descalços que compensam a miséria com a capacidade lúdica de transfigurar o espaço da rua. São dias tristes, de uma tristeza reiteradamente assinalada pela sua referencialidade sociocultural, como se, através destes seres entediados e a quem se interditou a aventura, a autora se reconhecesse na distância que a separava deste universo e a conduzisse a uma relação simpática com o outro social. É contra este mundo de interdições que também nos fala o poema 32, onde os verbos “fechar”, “tapar” e “proibir” conotam um mundo de repressão que começa na infância, se prolonga nos interditos da sexualidade feminina e acaba no silenciamento da voz dos poetas. Mas o poema, aliás, acaba com o apelativo a um nós no sentido da acção colectiva transformadora do mundo.
Neste quadro de rebeldia, é de sobrelevar também o poema 46, no qual a ruptura com os rituais católicos é complementada pela assunção de uma fraternidade laica, um contraponto do formalismo ritualístico da missa de domingo. O espaço laico sacraliza-se e o tradicional espaço sagrado laiciza-se: “Hoje é domingo./ Não vou à missa. Não é costume./ […] No espaço livre da rua./ Domingo absoluto!” (p. 59).
Sobretudo a partir do poema 51, no âmbito da crítica rebelde ao universo sociocultural burguês e à iniquidade e à opressão da sociedade vigente, convergindo num conjunto de interditos relativamente à pujança vital dos seres, algo comum à temática da poesia de Manuel da Fonseca, surgem os textos que denunciam a violência do belicismo entre povos, defraudados por ideologias e lideranças políticas contrárias aos seus interesses, num desejo de redenção humanitarista, uma oposição reiterada entre a mácula das ideologias guerreiras e anti-humanistas e a necessidade de purificar a terra, onde cabe também, à maneira anteriana, a sombra de um Cristo traído. No poema 53, o apelo à revolta inclui a provável sacrificialidade do enunciador e de todos aqueles que o vierem a acompanhar na sua luta. Mas todo este cenário de mentira e violência é pela poeta articulado com uma educação quotidiana castradora: “Mães perversas inventaram papões atrás das portas/ E os chefes de família inventaram a moral/ E o silêncio às refeições” (p. 67).
Este redentorismo humanista, talvez mais próximo do expressionismo alemão do que do neo-realismo, não deixa, no entanto, de funcionar como aquilo que Joaquim Namorado designava, relativamente às palavras poéticas, como “máquinas de produzir entusiasmo”. Contra o fatalismo da miséria e da clausura, urge criar cânticos novos que hão-de conduzir ao renascimento da Humanidade. Em alguns poemas, simboliza-se mesmo a situação prisional, como é o caso dos poemas 63, 69 e 71, nos quais, face ao inferno da clausura, a imagem libertária do pássaro roubado se abre num cântico de esperança apesar da violência de todas as torturas. É a ressurreição das asas. Nesta “noite tenebrosa” a voz poética é a inscrição branca simultaneamente da denúncia e da rebeldia e para que surja um mundo novo a libertação inclui também o fim dos interditos relativamente aos mitos do hímen intacto: “Hão-de voltar a ser poetas, as mulheres:/ virgens escravizadas hão-de quebrar correntes e soltar cânticos […]/ às virgens serão rotos os seus hímens, à nascença, sem soleni-/ dade e sem mistério, como se abre/ um botão e desabrocha sem mistério” (p. 79).
No último poema, a voz branda e pura a acender fraternidades é o rasto de luz que ilumina o caminho da utopia, num gesto similar ao das aves e dos ventos: “Mas tua voz não pára, não tem foz:/ Veio de longe, Poeta, irmã das aves e dos ventos,/ E esvoaça, branca, na noite pavorosa,/ Cumprindo sua missão de asa/ Ou luz/ Até ao fim das trevas.” (p. 94).


1 - Maria Almira Medina, Madrugada, 2ª edição, Sintra, Edições da Casa das Cenas, 200

2 - "Desfloramento" ("Sempre e sem fim", 1937), Antologia de poemas de Adolfo Casais Monteiro, (selecção de poemas por João Rui de Sousa), Documenta Poética 1, Lisboa, Assírio & Alvim, 1973. 



Edward Hopper (EUA, 1882-1967), "Room in Brooklin", 1932

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