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Cesare Sofianopulo, Máscaras, 1930 |
Cada época tem os seus "heróis" e destaques. O que sabemos hoje do mundo, exceptuando o que nos está na vizinhança do corpo, é construído pelos actores/produtores da comunicação social. O mundo é pois para o cidadão comum um enredado de imagens ao sabor das sábias estratégias dos meios de comunicação de massa. Eles lêem o mundo por nós. Vêem e falam por nós. O universo de valores que rege o mundo é portanto estruturado em função de mais-valias imaginárias com óbvias repercussões financeiras.
A propósito, comparemos a dimensão televisiva ou da imprensa relativamente a dois recentes mortos "ilustres": Vítor Alves e Carlos Castro.
A morte do militar da revolução de Abril foi quase citada como um evento de rotina. Todos os dias alguém morre. E os mais velhos estão naturalmente mais sujeitos à morte depois das chamadas doenças prolongadas. A morte de Vítor Alves foi uma morte "natural". Tinha 76 anos. Mas o que a sua vida representou enquanto um dos actores principais da nossa grande última ruptura histórica não teve quase dimensão comunicacional.
Já Carlos Castro, para além da espectacular brutalidade da sua morte, tinha uma actualidade sociocultural de excepção na perspectiva mediática: ele era o cronista eleito das tricas e contra-tricas do nosso mundo de estrelas efémeras, dos famosos do estilo, do estilo dos famosos e da iluminação mediática. De facto, não será este mundo já de certa forma uma criação do próprio universo dos mass-media? Modelos, estilistas, cronistas mundanos, futebolistas, actores de passerelle, apresentadores televisivos, caneças, jardinas, castelos brancos e outras sombras do nosso jet set não existiriam, independentemente do seu valor, sem a legitimação das chamadas revistas cor-de-rosa e das televisões.
Além disso, a morte de Carlos Castro nada teve de natural. Envolveu castração a saca-rolhas, cabeça violentamente destroçada por um monitor de TV, rasgões no rosto, asfixia, todo um ritual sádico (ou sadomasoquista?) que parece ter durado 2 horas. E tudo isto aconteceu no centro de New York, a capital do império do imaginário ocidental.
Quanto ao provável homicida, o jovem aspirante a modelo Renato Seabra, é exibido recorrentemente pelas televisões com o corpo quase desnudado, relevando-se a sua masculinidade esbelta. Talvez um corpo entontecido pelo desejo da fama súbita, daí a desmesura e a surpresa do seu provável acto ritualístico.
Esta história tem todo o sal da terra, acorda impulsos inconscientes e, além disso, inscreve-se na margem erótica do universo gay. Contém obviamente todos os ingredientes para se tornar uma mais-valia informacional. Parece-nos estar na fronteira entre o real e a ficção.
Vítor Alves e Carlos Castro: duas narrativas que ajudam a entender como se faz a História da nossa contemporaneidade. Esta, para os nossos fazedores de opinião, é cada vez mais o instante efémero do olhar sobre aquilo que pode despertar mais facilmente os obscuros desejos da comunidade.
Vítor Alves nunca existiu - nem o 25 de Abril - é apenas um nome que morre. Carlos Castro, por sua vez, tornou-se num herói do nosso tempo. E Renato Seabra, um paradigma da fama efémera, o Caim da nossa história, tem todas as condições para vir a ser não um anti-herói, mas aquele que teve a coragem, pagando com a própria liberdade, de dar o último retoque na arquitectura de um herói contemporâneo do nosso imaginário colectivo.
Não deixem por isso todas as cinzas de Carlos Castro espalhadas pelas ruas de Nova Iorque (como era, aliás, seu desejo), guardem algumas para as casas daqueles que a sua pena ajudou a tornar famoso. Não se pode pedir mais.