segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

A Meia Desfeita das Presidenciais

Que o poema fique. E que ficando se aplique
 a não criar barriga a não usar chinelos.
Manuel Alegre

Cavaco ganhou. Conforme as expectativas de todos, mesmo daqueles que com ele concorreram. Manuel Alegre foi perdendo a força da voz. Ser poeta e presidente da república - uma contradição pela natureza das coisas. Há 5 anos ainda tinha a ilusão de ser uma convicção alternativa. Agora nem isso, pois a actual conjuntura, com a debilitação progressiva do projecto socialista de esquerda, praticamente sem espaço no seu partido de pertença, retirou-lhe fôlego e capacidade de luta.

Pintura de Júlio Pomar

No tempo da I República, em 1923, houve um caso excepcional: Teixeira Gomes (escritor de crónicas e novelas) foi eleito presidente. Aliás, durou pouco (2 anos), como todos os outros parceiros do regime. Exilou-se depois na Argélia e aí morreu (1941), talvez feliz, esse algarvio com alma de aventureiro. Mandou às urtigas a Pátria. Cansou-se como muitos outros. A voz literária e a do poder dificilmente podem coabitar.
O Cavaco, pelo contrário, certamente avesso a leituras poéticas, pode, com o seu pragmatismo, construir, ao ritmo do rigor dos números, a máscara retórica do estadista fardado de salvador da pátria. Quanto ao resto, para o povo estas eleições foram a legitimação da indiferença (53% de abstenções mais uns votos em branco e nulos). Este arremedo de democracia está em crise, embora não seja caso único nesta Europa à deriva. Confessemos: nunca umas eleições foram tão chatas como estas. Aliás as sondagens já tinham dito tudo. Até os "socráticos" respiraram de alívio: mais uma voz incómoda atirada para o purgatório. Mas, nesta farsa ritualística, nem sequer faltou um anti-herói (o pícaro), vindo da Madeira, de seu nome Coelho. Este foi a paródia castiça e crítica deste festival eleiçoeiro, na boa tradição de Gil Vicente ou do teatro revisteiro. O candidato do PC foi sempre igual a si mesmo, candidato do PC. Mais não era preciso. E o homem da AMI reuniu outros votos de protesto contra o statu quo partidário.
Cidadãos precisam-se nesta Europa desalmada. É urgente recomeçar a reflectir e a agir, e depressa, antes que as aves de rapina, os elegantes mediáticos "neoliberais", devorem o que resta da dignidade sociopolítica e cultural conquistada desde o século XX pelos povos europeus.


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