domingo, 17 de abril de 2011

O Amor, a Rotina e o Bolor

Magritte - Tentando o Impossível (1928)


No seu romance Bolor (1968), Augusto Abelaira analisa radicalmente o modo como as relações amorosas se confrontam com a erosão do tempo quotidiano. Na intimidade do dia a dia, o casal Humberto e Maria dos Remédios perde progressivamente o desejo de descobrir o outro, de nele se reinventar. O outro é então um território inabitável, simultaneamente distante, no plano erótico-afectivo, e indistinto, pela vizinhança dos gestos e das máscaras. Cada um se vê no outro como num espelho vazio, por isso os papéis são reversíveis, tal como o diário que cada um escreve. Escrevo como se fosses tu, escreves como se fosses eu. Mas é uma identidade perversa, porque sem fronteiras para a alteridade. A incomunicabilidade é a assumpção da morte do desejo, da descoberta do corpo coabitado. É o fim do intervalo entre mim e o outro, pois a máscara que  nos une é aquela que  ao mesmo tempo nos destrói, enquanto individualidades. Daí a estranheza e a coisificação, o peso desconforme que impede a capacidade de renascer, de renascermos. Territórios coincidentes construídos pelo hábito, adversários pela lucidez dos limites que reciprocamente se impõem, só as infidelidades fantasiosas podem ainda constituir um simulacro de desejo recíproco.
O amor é para Abelaira ora uma ficção do fascínio nascente pelo outro – a fase primordial da sedução -, ora uma ilusão que o tempo corruptor acabará por desenredar.
O amor mais do que aquilo que foi sendo, seria sobretudo o que poderia ter sido enquanto virtualidade romanesca. Apenas parece escapar à ruína da erosão temporal  o instante verticalizado da paixão. Em  Os Desertores (1960), Francesca  dirá para Ramiro: “Vivermos um instante que não se repetirá, um instante único e para sempre lembrado como único [...] Quando a felicidade for tão grande que o nosso peito comece a doer, então acabemos tudo para que esse instante e essa felicidade fiquem ao abrigo do convívio que tudo acabaria por destruir.” (pp. 223-225).
O erotismo não resiste no plano institucional, porque não sobrevive ao império do tempo vectorial. Por isso as suas personagens exploram os seus desejos nas imagens fantasmáticas do outro, desfasadas no tempo ou nas vivências quotidianas. O outro enquanto idealização tem então a dimensão do absoluto, superando nos labirintos do imaginário as rugas do tempo.

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