sábado, 2 de abril de 2011

Que Fazer?

Grosz - Os Pilares da Sociedade (1926)
«Andai, ganha-pães, andai; reduzi tudo a cifras, todas as considerações deste mundo a equações de interesse corporal, comprai, vendei, agiotai. - No fim de tudo isto, o que o lucrou a espécie humana? Que há mais umas poucas de dúzias de homens ricos. E eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se calcularam o número de indíviduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infâmia, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico?»
Estas palavras foram escritas por Almeida Garrett, na primeira metade da década de 40 do século XIX, não por um marxista (esses viriam alguns anos depois), nem por um discípulo dos «socialistas» Saint-Simon (1760-1825), Owen (1771-1858) e Fourier (1772-1837), mas por um escritor e político liberal monárquico, e o mais espantoso é que têm ainda hoje toda a actualidade. Os verdadeiros pensadores têm felizmente esta capacidade de produzir discursos que ultrapassam, pela sua pertinência, os limites do seu tempo.
De facto, continuamos ainda em busca de uma Economia que esteja ao serviço do homem e não o contrário. As desigualdades sociais profundas no mundo, e Portugal não é uma excepção (é o pais com o índice mais elevado de desigualdade social na UE), são uma ferida na ética sociopolítica da Humanidade. O progresso moral, em determinados niveis, parece não ter acompanhado o progresso tecnológico. A previsibilidade do cenário futuro, a curto e médio prazos, parece mais próximo do antecipado pelos escritores das «anti-utopias», tipo Orwel e o seu romance 1984, do que das utopias «técnico-pastorais».
Rafael Bordalo Pinheiro (1900)
Quanto à agiotagem, nós próprios estamos a ser vítimas da especulação desenfreada dos chamados mercados internacionais, ou melhor, dos especuladores financeiros responsáveis pela crise económica mundial de 2008-2009. É um poder que domina o mundo, sem que haja por parte dos Estados qualquer capacidade para os regular. O cifrão é rei e senhor do universo. Neste estado de coisas qual será a capacidade de sobrevivência das democracias?
A situação é, entre nós, de uma gravidade extrema, tendo em conta a nossa dívida externa e os juros (a tal agiotagem de que falava Garrett), cada vez mais incompatíveis, a que estamos subjugados para que o nosso Estado possa sobreviver financeiramente. Acresce a isto uma elite política que, durante cerca de 30 anos, não soube definir e pôr em prática uma estratégia de desenvolvimento que nos colocasse, pelo menos, num nível médio entre os países da UE. E também, convém dizê-lo, uma classe empresarial, com raras excepções, que foi incapaz, por incultura, de se adaptar aos novos desafios colocados pela actual conjuntura. Adormecemos à sombra da árvore das patacas da UE. Só que a árvore para não secar tem que ser regada e a água é pouca para tantas patacas. Do mesmo modo, as famílias portuguesas foram-se endividando também ao ritmo de uma política de delirante apelo consumista. Além disso, a própria UE é cada vez mais uma fictícia democracia sem rumo, tutelada pela poderosa Alemanha.
A possibilidade de uma bancarrota - situação que já experimentámos em 1891 - é um cenário provável, embora uma intevenção dos mecanismos financeiros internacionais possa atenuar os efeitos catastróficos da crise de 1891: empresas e bancos falidos, suicídios em massa, etc. (leiam, a este propósito, o romance Barranco de Cegos (1962), de Alves Redol).
É urgente mudarmos as políticas que nos conduziram a este desenlace. Isto é um lugar-comum, dito e redito mediaticamente por políticos, economistas, politólogos e outros comentadores de serviço.
É nessário acabar com o supérfluo nos gastos do Estado, o novo-riquismo burocrático, as centenas de assessores, os assesssores dos assessores, os secretários dos secretários, os parlamentares do «Apoiado!» e «Muito bem!», os criados de libré, as frotas oficiais de automóveis de luxo, os institutos e os instituídos, as parcerias público-privadas desajustadas, as empresas municipais, toda uma parasitagem que se foi colando como lapas ao aparelho de Estado. É preciso emagrecer o Estado, mas não como propõem os neo-liberais do PSD, através da privatização da Saúde, da Educação, das Águas de Portugal, da CGD, etc., ou seja, de tudo o que, sendo ainda património do Estado, possa vir a ser lucrativo na mão de entidades privadas. Pelo contrário, é necessário fortalecer o Estado Social que, juntamente com a liberdade, é o que nos resta do projecto «abrilista».
Para quem, como eu, viveu quase metade da vida em ditadura (tinha 30 anos aquando do 25 de Abril), a jovem democracia foi o sonho de criar um Portugal mais justo, livre e desenvolvido. Hoje, vivemos no império das desilusões. De resto, é significativo o facto de cerca de metade da população portuguesa não se reconhecer na prática política dos partidos existentes. É um sintoma da crise profunda da nossa democracia e da inércia da desilusão colectiva.

Grosz - «Ecce Homo» (1918
Cabe à classe política dirigente uma grande responsabilidade no actual cenário sociopolítico, pois como refere Vasco Pulido Valente, «A complacência indígena para os governantes que levaram Portugal ao desespero e à miséria roça a santidade [..] A política é a profissão no país que goza da mais completa impunidade» (Público, 13-3-2011).
Os partidos do «centrão» tornaram-se colectivos onde a velha «cunha» (nepotismo) tem outros nomes e novos modos de circulação. A política deixou de ser um ideal, uma ética social, para se tornar um mero pragmatismo, visando a rápida mobilidade social dos seus militantes. Sabemos que a luta pelo poder não é um «idílio», mas a erosão ideológica tornou as máquinas partidárias espaços de obediência onde não há debate de ideias, e a norma é seguir irracionalmente o líder do momento.
Não podemos, no entanto, responsanbilizar apenas os dirigentes partidários (PS e PSD) que entre si dividiram o poder nestas décadas. De facto, somos todos, embora em graus diversos, responsáveis pelo estado da nossa democracia. Quantos de nós, por exemplo, se dão ao trabalho de intervir nas Assembleias de Freguesia ou concelhias? A democracia começa em casa ou no lugar que habitamos, na intervenção sindical ou outra a nível profissional, na escola, nos gestos do quotidiano, aparentemente inócuos que envolvem, por exemplo, uma consciência ambiental. Tudo isto faz a democracia e articula cada um de nós com o sentido da comunidade.
Sabemos que fazê-lo (os poucos que o fazem) é remar contra a maré, pois é mais fácil abdicarmos parcialmente dos nossos direitos de cidadania, reduzindo-a ao cíclico voto nas eleições. Aliás, os políticos profissionais não dinamizam aquela intervenção. O povo «democrático» só existe para eles quando precisam do seu voto ou dos seus impostos. Aí vêm então as arruadas e o beijos varinos. Um espectáculo digno de se ver. Sendo assim, o monopólio prepotente dos partidos foi enfraquecendo a sociedade civil e a sua capacidade de intervenção. É uma democracia pobre, a nossa. E é este inactivismo, no plano da cidadania, que facilita a corrupção e o nepotismo. Escutamos ou vemos na TV narrativas de promíscuas relações entre o poder político e o económico, e, por vezes, indignamo-nos, outras vezes, olhamos para o lado, como se uma migalha de responsabilidade não nos coubesse em sorte.
A mudança tem que começar por cada um de nós. É talvez aqui que começa a verdadeira revolução, para que ao lixo em que nos tornámos financeiramente, segundo as agências internacionais, não se junte o lixo da nossa acefalia colectiva. É urgente uma nova ética política. Cabe-nos lutar por ela, nos pequenos e nos grandes gestos do quotidiano. A democracia é uma construção colectiva, não o monopólio de uma «elite» que teatraliza, num registo trágico-cómico, a miséria nacional, como é o caso da cena parlamentar.
Max Beckmann - A Noite (1918-19)
Este é um texto chato, maçudo, indigesto como o quotidiano dos portugueses, excepto o dos ricos e, ontem como hoje, o dos «barões» de Almeida Garrett, isto é, a imagem caricatural dos que se promovem socialmente, com mordomias escandalosas às cavalitas dos partidos do poder. Até às eleições não falarei mais disto. Prometo. A não ser que o dilúvio se antecipe e tenha de escrever a bordo da Arca de Noé, se nela houver vaga para este cronista que não é político nem politólogo e de finanças nada sabe. De outro modo, resta-nos seguir a mensagem de Sérgio Godinho, «Aprende a nadar, companheiro!».

3 comentários:

  1. Exactamente!
    Para a maioria de nós portugas, e após tantos anos de sucessivas desilusões com políticas e politiquices, acredite que vai ser bem mais fácil fazer um curso de natação, numa qualquer piscina perto de casa.

    ResponderEliminar
  2. subscrevo. Tinha menos uns anos do que tu,mas também me enganaram.
    De facto, somos muito poucos a remar contra a maré. Mas não temos outro remédio.

    ResponderEliminar
  3. Que limpidez de visão este " Que Fazer". Diria eu, aprendiz das laudas; que é preciso uma vassourada nos indigentes e oportunistas do » Apoiado!» e do « Muito obrigado!»; uma gentinha impreparada, cujo ofício parlamentar é já um almejo de desfaçatez maior rumo à promiscuidade no negócio favorável e do enriquecimento fácil. Depois, como o povo ainda não pensou " em sacudir as moscas das orelhas"; como disse Guerra Junqueiro. Vai esta desbragada vergonha cirandando pelas gulas caciquistas que induzem sempre ao mesmo;( Como acima se escreve),de um dos nossos princípes das letras lusas, Almeida Garret: - " No fim de tudo isto, o que lucrou a espécie humana? Que há mais umas poucas de dúzias de homens ricos".

    ResponderEliminar