sexta-feira, 29 de abril de 2011

25 de Abril - da Nostalgia à Reinvenção da Democracia

Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo

Sophia de Mello Breyner Andresen



Giuseppe Pellizza Da Volpedo - O Quarto Estado (1901)
Algumas décadas depois voltei a desfilar na manifestação do 25 de Abril. Durante anos não o fiz, porque as comemorações cada vez mais se foram assemelhando às do 5 de Outubro: uma marcha de rituais da memória colectiva e nostalgias e pouco mais. Coisas para romeiros da saudade. Cada vez mais formais e menos habitadas pela substância do tempo hodierno. Gestos que as convenções sociais exigem como modo de manterem no imaginário a identidade colectiva. As comemorações políticas nacionais tendem contra as rugas do tempo a tornar-se dias santos laicos. Para uns, aliás, talvez as duas revoluções (o 5 de Outubro e o 25 de Abril) tenham algo em comum. Ambas seriam revoluções falhadas quanto aos seus objectivos mais profundos. Para outros, pelo contrário, o espírito do 25 de Abril ter-se-ia cumprido: democratizar, descolonizar e desenvolver (os célebres 3 ds). Depois do tempo inteiro das utopias, viera o tempo pragmático da democracia possível. Claro, houve sempre também os nostálgicos do salazarismo, mas estes já sem força política efectiva, embora, não sendo as revoluções rupturas absolutas, algo desse tempo cinzento tenha persistido na mentalidade colectiva ou mesmo em algumas práticas socio-políticas.
Desta vez, o que resta da minha cidadania activa tirou-me da inércia  e lá fui até à Avenida da Liberdade, em Lisboa, que dista 35 quilómetros da aldeia saloia em plena serra de Sintra onde habito. Desta vez quer dizer: a quase perda iminente da soberania nacional; a democracia cada vez mais fantasmática em que nos estamos a tornar sob o domínio teocrático do capital financeiro e especulativo.
Porém, nunca podemos regressar aos lugares onde in illo tempore fomos felizes, mesmo no plano simbólico. Reencontrei alguns amigos que já não via há meses, há anos, há décadas. Jovens de barba e cabelos brancos como eu, como se fôssemos 37 anos depois simultaneamente os mesmos e outros. Uns abraços, umas palavras de memórias, um querer saber o que fizeste e onde estás. Isto está uma merda de país, pois é! E lá vamos na marcha que nos coube em sorte, a dizer com o corpo em movimento, aqui estamos ainda presentes.
A manifestação foi de certa forma uma desilusão. Apesar dos milhares de participantes e do esforço “heróico” dos animadores com palavras de ordem -  expressão equívoca, pois nós precisamos sobretudo é de desordem cívica – anti-FMI e os habituais slogans “25 de Abril sempre, fascismo nunca mais!”.
As pessoas lá desfilavam ordeiramente, como quem cumpre uma missão, sem grande convicção combativa. Terá sido assim, ou será o meu olhar anti-nostálgico a construir tal imagem? Abaixo o FMI e o sacral mercado vestindo Armani da cabeça aos pés, ao bom estilo neo-liberal. Abaixo a mediocridade monetária que hegemoniza o mundo e lixa cada vez mais os pobres, esses países do sul que lhe alimentam a gula. Mas há sempre várias versões, por isso eles ripostam: “Pobres e mal agradecidos, de mão estendida e com réstias fanadas de orgulho!”. Mas quem são eles? Têm rosto? “São uma emanação diabólica!” – acrescenta um anacoreta do deserto dos nossos desejos.
"Abaixo a Troika e quem a trouxe!" Mas, sob a película invisível dos protestos, talvez a atmosfera colectiva fosse um sintoma não-dito de derrota latente. Aliás, veja-se como os nossos media sobrelevaram os discursos da cerimónia oficial do dito evento, a retórica do Cavaco, do Eanes, do Soares, do Sampaio, em prol de uma espécie de governo de “salvação nacional”, tendo como cena de fundo a imprópria cena de boxe entre o Sócrates e o Passos. Como quem diz, tenham juízo que com a Troika não se brinca nem mesmo a votos. Quanto à tão prezada sociedade civil e à sua manifestação, as televisões limitaram-se a uns apontamentos mais ou menos folclóricos e pouco mais, não fossem os actores do FMI porem-se na alheta, irritados com tal falta de respeito e de humildade.
Será preciso um pouco de violência das massas para apimentar o repasto televisivo?
Dürer - Os 4 Cavaleiros do Apocalipse (1498)
Segundo os pessimistas, Portugal, tal como a Grécia  e a Irlanda, ou outros ditos periféricos que virão a seguir, estão à beira de uma ruptura democrática. Teremos ainda alguma liberdade para protestar, mas os nossos votos eleitorais serão de pouca valia. Quem ditará as regras não seremos nós, mas quem nos comprou o futuro a preços de saldo.
E quando as trombetas do Apocalipse soarem em Portugal sopradas pela Troika, a dita classe média verá desencantada o seu delírio consumista de 2 décadas, convenientemente estimulado pelos nossos governantes desgovernados, presente no Dia do Juízo Final. O sonho europeísta começa a transformar-se num pesadelo, algo já há algum tempo vivido pelos 2 milhões de pobres e pelos 600.000 desempregados
Quanto à União Europeia e os seus patetocratas bem podem, no seu esplendor crepuscular, começar a encomendar a última versão, por exemplo a de Teodor Currentzis, do Requiem de Mozart.
Sem uma refundação das democracias não será possível recolocar a economia ao serviço dos povos. Mas esta questão não requer uma mera solução a nível regional ou nacional. E venha a utopia: só um movimento global, pelo menos a nível europeu, poderá alterar  radicalmente o modelo político dominante de cariz neo-liberal, que assenta na sagrada convicção de que o mercado liberto dos constrangimentos estatais, ou seja da política democraticamente legitimada, gera em si mesmo uma ética – a dos capitalistas especulativos, como é bom de ver. Internacionalismo, obviamente já não apenas proletário, o tempo de Marx já lá vai, embora a sua leitura do mundo ainda tenha alguma pertinência, mas de todos aqueles que recusam o domínio do ter sobre o ser.
Bem pregava Frei Bento Domingues: “Em Portugal, e não só, todas as notícias da Quaresma foram motivadas pelos efeitos do capitalismo selvagem, especulativo, sem regras, abrigado nos paraísos fiscais, mergulhando os pobres no desespero. Perante o império do dinheiro, da corrupção e da imprevidência que semeiam a morte, a mensagem da Páscoa, deste ano, deve servir para convocar a energia de toda a gente de boa vontade para que não haja indigentes entre nós. Esta seria uma Santa Páscoa!”(Público, 24 de Abril de 2011, p. 28 ).
Já não poderemos regressar ao "dia inicial inteiro e limpo" de Sophia, mas, com a criatividade colectiva e a liberdade possível, poderemos talvez abalar o hegemonismo do Deus-Milhão e ensaiar mundos alternativos. E voltarmos, livres, "a habitar a substância do tempo".


Duanson - A Senhora do Supermercado (1969)



2 comentários:

  1. Meu caro Vitor tu Trás dos Montes e eu cá Transatlântico a viver coisas q todos estão a viver nesse planete azul que tentam tingir de cinza-poluido.
    Brasil vive a mesma condição neoliberal de apatia, alienação e descompromisso com causas "mais nobres". Cá me pergunto: o que fazer para levantar os cooptados pela esmola neoliberal de seus berços explêndidos de alienação e descompromisso com o q até os anos 80 chamávamos de "bem comum"???
    Vamos então, continuar a juntar vozes, aqui e acolé, para q em um dado tempo, tempo histórico, isso possa ecoar como um alarido suficiente, e acordar os incautos displicentes, que estão a cavar suas próprias covas e as dos que virão, ajudando essa estirpe de especuladores financeiros a construir seu templo de vampirismo planetário.
    Abraço solidário:

    PINDORAMA
    (pindoramablog@gmail.com)

    PS: embora um ano depois, tua crônica ainda serve para a páscoa de 2012.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Caro amigo

      Estamos condenados a viver sob o jugo de poderes não sufragados, tal o caso da "ditadura" financeira que nos rege? Neste momento, devemos interrogarmo-nos sobre a real capacidade de intervenção do cidadão neste simulacro de democracia. A busca de mundos alternativos é uma tarefa que cabe a todos aqueles que não se reconhecem neste modelo sociocultural. A democracia é uma construção permanente, daí a nossa responsabilidade nesse processo. Obrigado pelo seu incentivo e um abraço.

      Eliminar