segunda-feira, 16 de maio de 2011

Do Declínio à Reinvenção de uma Nova Ruralidade (3)

Estátua de Bandarra, em Trancoso
Em regiões como Trancoso, sobretudo na chamada zona quente (compreendendo uma franja meridional que se estende entre Aldeia Nova e Maçal da Ribeira, e outra, a nascente, entre esta última localidade e Cogula-Cótimos), há que reactivar a cultura do olival, da vinha, da fruticultura, da horticultura e reflorestar com sobreiros, medronheiros e eventualmente com pinheiro-manso (para a produção de pinhão). Enquanto, na zona fria, que abrange a restante área municipal, poder-se-ia continuar a investir nos soutos, na pecuária em manadio extensivo e na florestação com folhosas como o carvalho-negral e o carvalho-roble (ou carvalho-alvarinho). Ainda do ponto de vista florestal, o concelho podia, a médio-longo prazo, especializar-se na produção de madeiras nobres (carvalho, etc.), de cortiça e na produção de desperdícios lenhosos para as centrais de biomassa. Que me perdoem os especialistas estas sugestões de um diletante na matéria em causa!
É de ressalvar também a importância da promoção da actividade cinegética, no quadro de um turismo da natureza. Neste âmbito, seria também pertinente a definição de roteiros pedestres na área rural do concelho, atraindo turistas que optam pelo prazer de percorrer os campos, através do contacto físico com a terra e a sua fauna e flora – os chamados caminheiros, também associados ao turismo sénior.
Solar dos Brasis - Torre do Terrenho, Trancoso (séc. XVIII) 
 No que diz respeito ao turismo cultural, Trancoso com o seu imponente castelo e muralhas medievais, urbe da tradicional ”raia seca”, respira História em cada uma das suas pedras. É terra de míticos heróis como o Magriço evocado por Camões, de um sapateiro-profeta, Bandarra de seu nome, que é simultaneamente matriz premonitória do sebastianismo e do Vº Império do Padre António Vieira, e está associada a essa figura miraculosa da Rainha Santa Isabel que tinha a inspiração divina de transformar as rosas em pão. Desde a Reconquista, passando pela guerra da sucessão com Castela (1383-85) ou pelas vivências atormentadas dos judeus perseguidos pela Santa Inquisição que deixaram nas suas judiarias sinais crípticos da sua presença, até às invasões francesas, quantos roteiros históricos se podem escrever como modo também de revelar a alma da urbe. Neste aspecto, é de relevar a investigação da historiadora Carla Santos no domínio da identificação do património judaico de Trancoso ou a elaboração de um roteiro das marcas judaicas na cidade e a criação de um Centro de Interpretação da Cultura Judaica, promovidos pelo município. É de evocar também, no âmbito cultural, o escritor Gonçalo Fernandes Trancoso (séc. XVI), o primeiro contista português, no cruzamento dos novelistas italianos e da nossa tradição oral, hoje bastante esquecido, sendo por isso pertinente organizar colóquios sobre a sua figura e obra.
E haverá ainda verbas municipais para recuperar algumas casas típicas beirãs das aldeias em redor, com as suas varandas em madeira, como as representadas em alguns quadros da Célia? E quanto ao turismo termal, não poderia a Câmara de Celorico dinamizar a reactivação da estância termal de Santo António de águas sulfúrico-sódicas, por exemplo em colaboração com a Universidade da Beira-Interior? Ou ainda, no âmbito da Escola Profissional de Trancoso, não se poderiam criar cursos mais orientados para o estudo do património da cidade, do turismo cultural e de natureza ou das actividades agrárias?
Célia Pena Alves - Indecisa
Tem, pois, Trancoso virtualidades que podem activar um turismo cultural, associado ao seu património monumental e natural – um verdadeiro lugar de reflexão e contemplação. Aqui “temos tempo” – para usar a expressão que intitula o atelier da escultora e pintora Maria Lino, no Feital, uma filha da terra que, depois da sua longa aventura urbana, regressou à aldeia natal, onde mantém a sua actividade criativa individual e em colaboração com outros animadores fundou a Luzlinar – nome de poema que lhe foi dedicado pelo poeta Alexandre O´Neill. Esta Associação é um bom exemplo, no plano cultural, da capacidade de ao mesmo tempo fixar e dar a conhecer antigas tradições locais e polarizar com Simpósios Internacionais uma interacção entre a acção estética visual e o espírito do lugar, bem expresso nestas palavras de Sant´Anna Dionísio, no Guia de Portugal: “A meia distância, vista de qualquer lado, Trancoso surge como uma verdadeira e imprevista praça de armas da Idade Média que tivesse sido deixada num descampado, por esquecimento do tempo. Quem se dispuser a procurar com vagar os perfis dos seus muros e a respirar a sua estranha atmosfera planáltica, bem preencherá um dia”.
Teja - Trancoso
 A contemplação é o olhar sobre o outro sem o sentimento da posse. É uma quase fusão mística entre o sujeito e a paisagem.
Num mundo globalizado, cada vez mais uniformizado, é muito importante relevar o que de mais original cada região pode conter. E Portugal, apesar da pequenez do seu território, possui uma diversidade regional notável, tanto no plano paisagístico como nos gestos da tradição. Com vontade e imaginação, é possível dinamizar um turismo vocacionado para as magníficas paisagens do Interior com a sua fauna e flora específicas, para o seu património monumental e sua História, para as suas tradições gastronómicas e artesanais ou para o seu genuíno folclore.
Houve obviamente factores que, no plano do imaginário colectivo, têm contribuído para uma diluição dessa diversidade, tal o caso da televisão que, durante décadas, vem difundido um paradigma urbano de moral e de modos de vida, dando do mundo rural ora uma imagem miserabilista ora grotesca. Algo que felizmente vem lentamente mudando, com a relativa reabilitação do mundo rural, sobretudo em função de alguns documentários que narram a opção de urbanos que procuram no refúgio da natureza um novo modo de vida. Também as telenovelas de grande consumo popular, de um modo geral, contribuíram para a disseminação de hábitos urbanos, um ethos facilmente universalizável, mas implicando normalmente uma distorção das realidades urbana e rural. Caricaturalmente, na novela Laços de Sangue, actualmente em exibição, uma jovem rural alentejana escapa para Lisboa, em busca do mundo povoado de Centros Comerciais e pretende mesmo libertar-se do seu sotaque alentejano. Mas a contra-corrente desta tendência, segundo noticiam as revistas da especialidade, uma conhecida actriz de novelas decidiu deixar a agitação da capital e instalar-se em Nelas com a família, onde admite vir a criar uma escola de teatro para crianças. São obviamente sinais ténues de uma mudança de atitude relativamente à rejeição do chamado Interior.
É portanto urgente requalificar esse património, não deixar morrer as nossas aldeias quase desertificadas e relativamente àquelas que estão em ruínas reconstruí-las para o turismo rural ou outras finalidades, envolvendo, por exemplo, actividades no domínio da agricultura biológica ou do agroturismo. (cont.)


Célia Pena Alves - Vindima


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