quinta-feira, 23 de junho de 2011

A Mercearia e as Finanças


Grosz - Eclipse do Sol (1926
Como diria Guerra Junqueiro, se fosse vivo, já que não podemos ter um grande ideal colectivo, ao menos que tenhamos uma "mercearia" bem ordenada. Para a boa contabilidade colectiva, temos os chamados Ministros das Finanças. Na nossa História do século XX, já tivemos um "merceeiro", formado na douta Universidade de Coimbra, que começou a pôr as Finanças em ordem ainda no tempo da ditadura militar (1928). Mas ele mesmo, 4 anos depois, tornar-se-ia a alma da dita ditadura. Durou até Abril de 1974, embora alguns tiques ainda hoje persistam. Tinha as contas em ordem, mas o povo pobre, adoentado, triste, analfabeto e submisso. Como se dizia na época "pobretes mas alegretes". Merceeiro sem escrúpulos, com os seus auxiliares de olho vigilante espalhados pelo Reino, sempre atentos ao mínimo sinal de subversão, lá foi mantendo a paz podre que nos coube em sorte. Não chegou a ver o fim da ditadura, porque foi assassinado por uma cadeira, certamente de tendência revolucionária. Enfim, contas em ordem e corações em desordem. Assim também eu, diria a Ferreira Leite, aquela que proferiu a célebre frase: "Para reformar o Estado seria preciso suspender a democracia durante 6 meses". Com a democracia pós-25 de Abril os "merceeiros" sucederam-se durante 37 anos e enganaram-se nas contas. E, neste mundo de enganos, todos se foram enganando uns aos outros. E o Zé Povinho, com melhor aspecto do que no tempo da ditadura, julgou-se ilusoriamente no paraíso com os fundos e fundilhos da União Europeia.
Hoje os tempos já são outros. Temos democracia mas tutelada por uma Troika, um neologismo que nos foi imposto pelos sacrossantos mercados. A língua é uma realidade dinâmica, ao sabor das conjunturas.
Com este novo governo de direita e neo-liberal, a palavra de ordem é dar todo o poder ao teocrático mercado. Dizem que o novo Ministro das Finanças é jovem, universitário, tecnocrata, estrangeirado, experiente, hábil, bem relacionado com bancos e banqueiros, enfim, uma reencarnação sebástica no domínio das finanças. Eu, que nada sei do deve e haver, não tenho pretensão a contestar tão esperançosa asserção. É um técnico e um "independente": bom para os mercados, para os nossos credores, segundo dizem, não sei se para o povo também.
Grosz - Os Pilares da Sociedade (1926)
Os nossos televisivos jornalistas, um eco indisfarçado do discurso político dominante, dizem que é bom ser de tal condição - técnico e independente. Quem sou eu para duvidar! Mas, estimados politólogos, economeses, canalhólogos e tudólogos televisivos, se, para vós, o mais relevante deste governo são a economia e as finanças, não poderiam admitir, mesmo por instantes, que a economia deveria estar ao serviço do homem e não o contrário? Talvez o mais urgente, isto acrescento eu, seria mudar o "paradigma cultural" dominante, aqui, na Europa e no Mundo. Pois é, eu, que sou um zero em números, atrevo-me a dizer que a cultura é mesmo o mais importante. Mais do que a economia, as finanças e os pepinos da PAC.
Mas como o futuro próximo deste país já não nos pertence, talvez tenham razão: o importante é ter bons gestores para administrar sapientemente os nossos compromissos com a tal Troika. De outro modo, vejam a Grécia, que desgraça!
Tudo é agora uma questão de gestão, de boa gestão: com os estômagos vazios o povo estiola, mas cuidado com as congestões. Sem coração e sem cabeça, que nos resta senão esperar as bondosas benesses dos nossos credores cuja paciência, aliás, não é infinita!
E para inspiração do novo Ministro das Finanças, de quem ignoro o nome, aqui vai este fragmento poético de Armando da Silva Carvalho:

Eu sou
o mais boquiaberto
dos ministros.

Estas finanças
doem
como um calo.

Estas finanças
devem ser um galo
cantando o ouro
que urinam
as crianças.

Estas finanças
devem ser um falo
ubérrimo brasil
de esquálidas
donzelas.

P.S. No meu programa de Revolução Cultural, é óbvio que não proponho um poeta para as Finanças.

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