quinta-feira, 24 de novembro de 2011

A greve geral e o fatalismo luso






Paul-Louis Delance, A greve em Saint-Ouen, 1908




Hoje é dia de greve geral. O adjectivo, embora enquadrável numa mitologia política revolucionária que vem desde finais do século XIX, justifica-se como manifestação de protesto contra a imperativa vontade do actual poder político, servidor abnegado da troika que nos coube em sorte, de nos impor uma frugal austeridade, socialmente injusta porque desigual, e não sufragada. Talvez metade da população apoie, talvez a outra metade esteja contra. Estes dizem que a greve, ainda por cima geral, só vem agravar a nossa situação económico-financeira; os outros acreditam que é uma resposta colectiva aos desmandos das forças financeiras e políticas que, ao cheiro da carne anoitecida, nos vão devorando. A greve geral, com perversos serviços mínimos nos transportes, nada irá mudar a não ser que a consideremos um anúncio de um crescente movimento colectivo que irá bloquear a hegemónica força que nos domina e asfixia. Entretanto vai-se a carne e resta-nos a alma da revolta. A Grécia está aqui tão perto. Sem uma nova ordem internacional, política e económico-financeira, nada feito. O problema tem uma escala global, e assim tem de ser solucionado. Além disso esta Europa está a afundar-se. Os sinais vêm da Alemanha: “O Tesouro Alemão não conseguiu colocar 35% de um empréstimo obrigacionista a dez anos, ampliando os receios de que os países da zona euro fiquem paralisados por falta de financiamento. Os economistas falam de um ponto de viragem na crise” (jornal i, 24-11-2011). Quanto a Portugal, é uma miragem o regresso ao mercado de capitais em 2013. Talvez numa súbita reviravolta a Srª Merkel venha a aceitar os salvíficos eurobonds, dirão os mais crédulos. Mas a tempestade acentua-se e a barca da líder germânica mete água por todos os lados. Os ratos já saltam apavorados, e a nau Europa em desgoverno vai em direcção ao abismo. Tens andado a ler muitos textos apocalípticos, confundes-te, modera-te um pouco! Dirá um leitor carregado de sensatez.
O povo é quem ordena! Pois é. Por isso de votação em votação, os países europeus elegem puros e duros governos de direita salteados de extrema e nos interregnos eleitorais despontam os de transição com vestimentas tecnocráticas, com a política escondida no bolso traseiro, neutrais e objectivos regentes de nações como se fossem empresas. E não são? Sem alma, desalmadas, as comunidades imaginadas de outrora tornaram-se espaços vazios apenas habitadas pelo deve e haver. Claro que há sempre uns que devem mais do que outros: os espoliados do costume. Os voos das aves de rapina, na sua altivez soberana, salvaguardam-nos sempre das crises e até aguçam o seu apetite infindo nestas paisagens de carnagem.
Mas voltemos, mantendo as metáforas de aviário, ao saudoso ninho pátrio. Temos os partidos da área do poder (PSD, PS e CDS) e os reivindicativos (PCP e BE), os contestatários habituais da vaga neo-liberal, na versão lusa, que nos vem governando há décadas. Embora em jeito de utopia, não seria possível refundar a esquerda, passando obviamente pelo que dela resta no PS? E digo esquerda não porque seja canhoto, mas porque é nesse espaço político que se pode ainda imaginar mundos alternativos. Há aliás quem sinalize no mundo a eventual “emergência e proliferação do fascismo social” (Boaventura de Sousa Santos, Portugal-Ensaio contra a Autoflagelação, p.119). O conceito é polémico mas indutor de reflexão e preocupação. Contra o fatalismo tão arreigado no nosso imaginário colectivo, é urgente agir, em nome de uma democracia de cidadãos, contra aqueles que pervertem o sentido e o sentir de tal modelo político. Por isso, sem grandes ilusões, estou com a mítica greve geral, pois os sonhos também habitam o pensamento e a acção. De outro modo, estaremos em vias de nos tornarmos meros “cadáveres ambulantes” ao sabor dos invisíveis mandantes deste mundo.


Jules Adler, A greve em Creusot,1899

1 comentário:

  1. Meu amigo Vítor, mais um lúcido artigo aos dias amargos do nosso quotidiano e aos males que enfermam o nosso , mais do que nunca pobre país, pobre de pedir e de força reivindicativa nas procissões que alguém quer que seja a de " cadáveres ambulantes". Em 75, homens calejados de duro trabalho, vindos da cintura industrial, mantiveram uma Assembleia da República nos assentos do Hemiciclo por várias horas; timorata e cativa de ufanagem resolutiva a seu belo prazer, lutando os trabalhadores um dia e uma noite por leis mais justas para quem trabalha, conseguindo da sua justeza. Hoje esses degraus fronteiros são lugares de repressão e os tutelados pelo grande capital vivem nos feudos dos seus senhores. Até lá é preciso manter o sonho que contrarie os " invisíveis mandantes deste mundo".

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