sábado, 28 de abril de 2012

Soror Mariana: a escrita da paixão

Chagall - O Aniversário (1915)
Começas com o vocativo “meu amor” na 1ª carta dirigida au teu amante francês, Cavaleiro de Chamilly, antropónimo não nomeado conforme as conveniências, expondo pela palavra a plenitude do teu ser em contraste com o vazio da tua clausura conventual. Mas terá ele existido ou tudo terá sido obra do teu engenho amoroso? Paixão, a narrativa em forma de cartas com que deste sentido à tua vida ditada até então pela vontade de teus pais, já que excluída de dote para poderes casar e dar o teu corpo ao repouso do guerreiro como era de convenção. Após a partida do teu amante foste tecendo a teia da totalidade sem exterior, pois nada existia para lá desse círculo inexpugnável de desejo. Isso fecundaria o óvulo vazio da tua existência, fazendo desse nado-morto o sentido de uma vida. Acto de desmesura, loucura em linguagem comum, ou cegueira para tudo o que estava para lá do teu círculo mágico. Da tua inexorável solidão inventaste a íntima relação solidária com um cavaleiro que não te merecia mas que tu criaste com a força do teu desejo, um corpo a abrir-se à tempestade da paixão. O caos magnífico no lugar da ordem anquilosada. Tu eras eu, eu eras tu, sem fronteiras e necessárias pontes. O outro de ti fez crescer o absoluto em ti, o dizível indizível feito de palavras de nostalgia (a dor do impossível regresso) e simuladas vinganças (o suicídio como punição de amor). O espelho partiu para sempre mas não se fragmentou dentro de ti. Ou melhor, com os fragmentos dispersos, os estilhaços dos afectos, foste reconstruindo pela palavra a unidade perdida: o paraíso reencontrado com o sangue das palavras – o único sentido da tua vida. Diria contigo.
 Amo, continuo a amar-te no meu delírio de frases a flutuarem das entranhas do teu/meu corpo. Amo, logo existo. Deixei de ser a morte em forma de vida contra os códigos castradores. Escrever-te é o meu exercício da paixão, continuar a inventar-te como o elo que faltava para fundar a minha vida, para além da clausura imposta pelos fantasmas sociais. Dizer-te o meu corpo liberto na fúria dos afagos e dos beijos. O meu corpo aberto aos ritmos das tuas mãos e do teu pénis, faca terna a ferir-me na festa do prazer. Afirmação do meu corpo, do nosso corpo. Meu amante idealizado, como pudeste partir, partir-me, deslocar-me das raízes do meu sonho. És simultaneamente o adjuvante e o oponente, quando as tuas cartas escassas me iam destruindo a ilusão da tua paixão. Cheguei a dizer-te  subjugada e humilde, ao menos a compaixão, como forma de te sentir ainda ligado a mim, mais não fosse pela piedade, pela ternura última do grande amor. Mas já estavas longe, demasiado longe, distância lida na cada vez maior brancura das tuas cartas tão escandalosamente formais.
Foi todavia, Mariana, essa lonjura que seria a tua pulsão apaixonada da escrita da paixão. Escrever foi a tua catarse, foi o teu modo de te reinventares na ficção da paixão. Foi o teu modo de morrer de amor e ressuscitar pelo verbo: ocupar uma ausência – um lugar vazio. Dupla clausura a do teu corpo: a cela conventual e o insulamento definitivo. Mas escreveres foi o teu modo de reinventar o desejo, o teu e o dele. Amar é diferenciar, desamar é indiferenciar. Escrever o ardor do corpo amante, olhar o seu retrato, olhar-se como se fosse ele, até ao limite da perdição, da desordem (o caos interior), do dizer-se “eu não sou eu”, desapossada de ti pelo ser da paixão. Até ao limite de confessares  “eu escrevo mais para mim do que para ti” – círculo encerrado para sempre nos ardores do teu narcisismo. Da criação do absoluto. Fizeste então da paixão um exercício de estilo, a palavra do corpo para sempre liberto dos cilícios sociais. Daí a distância do ele da 5ª e última carta – a alteridade confirmada a desmerecer-te. Eros e Thanatos. Mas não morreste de amor, porque, das cinzas do que te tomou como mulher-objecto, renasceste no negro a tingir as folhas brancas da tua vida morta. Palavras – teu corpo liberto. Escrever é tornar possível o desejo do impossível – a eternização do instante.
PS - À maneira de glosa das Cartas Portuguesas de Soror Mariana Alcoforado (freira no Convento de Nossa Senhora da Conceição, em Beja (1640-1723), traduzidas para francês e publicadas em Paris, em 1669, como sendo de autor anónimo.

Schiele - O Abraço (1917)

8 comentários:

  1. Para mim, habituada a ler-te/viver-te em estudos, análises, ensaios,...é uma surpresa muito agradável sentir a tua, também grande, capacidade de escrita literária! Gosto muito!

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  2. Uma carta muito bela! Como uma análise literária se transforma em escrita poética. Como um tu/receptor se transforma em tu/eu sujeito poético. Gostei muito!

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  3. Querido! obrigado pela bela postagem...gostei muito!!
    Somos Um e Somos todos
    Os Sentidos escondem os sonhos
    Aqueles que revelam a essência do Ser
    Suaves eternamente como beija-flores.

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  4. Adorei a crónica e as ilustrações soberbas de duas das minhas pinturas favoritas. Muito bom gosto. Já tive oportunidade de ler As Cartas Portuguesas na minha adolescência e mexeram imenso comigo na altura, pela paixão carnal iluminada e quase não-matéria como todas as paixões perfeitas porque só existem na chama interior de cada um, sendo todo o Amor imperfeito porque a concretização humana dessa paixão.

    http://fashionheroines.blogspot.com

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  5. A campina! Imensa! Ao longo a mancha da serra de Alcaria Ruiva. Mariana tem a hora costumeira de subir à grade da janela que dá sobre a " Porta de Mértola". O Conde de Saint- Léger, senhor de Chamilly, aproxima-se. Lê a carta que ele lhe envia pela criada de fora. Bastiana, a escrava mulata, vela, de sentinela à porta. Amor tão profundo que faz esquecer os santos. « Chamilly...A ele foram escritas essas formosas cartas portuguesas» Saint-Simon
    OBRIGADO, VÍTOR !... POR TÃO BELA CARTA EVOCATIVA DE TÃO GRANDE AMOR

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  6. No futuro a crítica literária será sobretudo a vivência literária, estética do leitor da obra, mais do que a análise a partir da linguística, história, etc. Parabéns por este texto que para mim é autêntica recepção da obra, genuína e humana, sem complicações teóricas. O estatuto do leitor é, só pode ser, também o de um criador.

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  7. ... parecem já não haver amores, sentires e sentidos assim...

    Parabéns pelo blog! Excelente post! Vou continuar o 'passeio' pelos anteriores...

    um sorriso :)
    mariam

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