segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Dramatizar ou desdramatizar: eis a questão




Giorgio de Chirico (1888-1978), "O Enigma dum dia", 1914



Dramatizar ou desdramatizar: eis a questão

O que mais me custa na vitória de Marcelo, não é o facto de ter sido apoiado pelos partidos da direita, nem o seu passado político, nem de ser um rentável produto mediático, mas na sua promessa de desdramatizar a vida político-social ("recriar a desdramatização", disse ele, no seu discurso de vitória). Acho que a vida política sem dramas é uma sensaboria, um mundo cinzento forjado por uma hipotética "cultura do  compromisso", um unanimismo fictício que pretende apagar da cena tensões sociais em função das quais resulta uma tendencial oposição entre diversos modos de olhar e avaliar o mundo.
Claro que esta encenação corresponde ao exercício hábil de Marcelo, visando um táctico apagamento conjuntural das ideologias, para impor majestaticamente a sua ideologia, por onde passa o desejo de reconstituir o bloco central, em linguagem vulgar o "centrão", minado com os anos de governação tanto de Sócrates como de Passos Coelho e com o "perverso", porque anti-natural, pacto à esquerda na sequência das últimas eleições parlamentares. Aliás, a principal consequência destas eleições presidenciais reside, aparentemente, no facto de se ter diluído a acentuada bipolarização entre a esquerda e a direita, com um candidato vitorioso que, embora sendo da direita, se mascarou ora de centro-esquerda ora de centro-direita, ou melhor, se assumiu como o único actor político capaz de gerar um diálogo redentor entre antigos parceiros agora desaguisados. Uma espécie de umbigo do mundo.
Simultaneamente, Marcelo pretende criar as condições para um reconstrução da direita, enfraquecida eleitoralmente pela adopção dum "neo-liberalismo" puro e duro, que se materializou numa extremada política de austeridade e de servilismo relativamente ao poder financeiro internacional, e recentrar o Partido Socialista, equivocamente atraído para uma aproximação aos partidos à sua esquerda. E como as eleições presidenciais fragilizaram sobretudo os partidos de esquerda, com relevo para o Partido Comunista, parece cada vez mais previsível o fim a curto prazo do débil acordo que sustenta este governo. Entre os burocratas "neo-liberais" de Bruxelas e os compromissos com a esquerda, António Costa verá  impotente a corda esticar até partir. E então talvez o filho pródigo regresse ao seu espaço natural, com a bênção de Marcelo, para bem da coesão nacional. Embora os dramas sociais, num mundo de desigualdades cada vez maiores, sejam uma mácula neste idílico cenário "personalista" de apaziguamento e de suposto fim das ideologias.





George Tooker (EUA,1920-2011), "Almoço", 1964 

5 comentários:

  1. Não sei, ainda, se subscrevo na íntegra a sua opinião, Professor. Só porque me parece que o actual governo terá um "prazo de validade" mais longo do que aquele a que, aparentemente, está condenado. Espero que o meu optimismo se confirme: é que raramente sou optimista. No resto, tem toda a razão. Se me permitir, gostaria de partilhar o seu texto.

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    1. Caro amigo,
      São apenas cenários possíveis, jogando com a óptica marcelista.

      Um abraço!

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  2. Não sei, ainda, se subscrevo na íntegra a sua opinião, Professor. Só porque me parece que o actual governo terá um "prazo de validade" mais longo do que aquele a que, aparentemente, está condenado. Espero que o meu optimismo se confirme: é que raramente sou optimista. No resto, tem toda a razão. Se me permitir, gostaria de partilhar o seu texto.

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  3. Curiosamente, a minha leitura dos resultados eleitorais confirma a existência de classes, a luta de classes e a tremenda desidentificação entre pertença de classe e consciência de classe já que, se assim não fosse, uma significativa parte dos/as que votaram Marcelo teriam votado num/a seu/sua natural representante (Marisa, Jerónimo, ...). Afinal quem são os 52%? Certamente os DDT lusos (Balsemãos, Salgados, Mellos, Ricciardis, Champallimauds, etc ...) e os seus amigos e famílias, nomeadamente da linha de Cascais, eventualmente os que para eles trabalham (sociedades de advogados) mais boys e girls e simpatizantes dos partidos de direita, membros do Opus Dei, beatos/as e afins e Outros. E quem são os Outros? Provavelmente profissionais - liberais ou não - tais como médicos e advogados, e ainda aposentados/as e reformados/as e pequena burguesia. Ora toda esta gente não chega para explicar 52%. Pergunto-me quantos desempregados, jovens dos call-centers, assalariados precários, etc, terão votado Marcelo, sendo certo e óbvio que o PR eleito vai favorecer tudo o que seja negócios de bancos BES, BANIFs, ..., etc?
    Para concluir, creio que de eleição em eleição, as classes altas ganham terreno contra as outras classes, consolidam poderes, jogam com mais à-vontade e mais depressa e nesta eleição, o Marcelo foi e é o umbigo do mundo dos que tudo possuem. Até um dia...

    Vera Tormenta Santana

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  4. Olá Vítor, só há poucos dias é que descobri que o Caos, afinal, está bem vivo. Intrometo-me, daqui de fora, nesta glosa sua sobre o MRS, imaginando o menino bem e pipi que foi e o comentador de futebol que hoje poderia ser, sempre jovial, juntamente com o Santana Lopes e outra gente simpática. Voltaremos ao assunto, lá no Rodízio ou no Penedo. Abraco

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