domingo, 13 de fevereiro de 2011

Amanhã é o Dia dos Namorados

o teu nome é como perfume derramado

                               Cânticos dos Cânticos

 

Pintura de Marc Chagall
Convenções são convenções. O calendário ordena e a gente respeita. E o marketing agradece a benção cronológica. Amanhã é o Dia dos Namorados e, como em todas as celebrações, um dia devia ser o tempo de um ano, muitos anos ou de uma vida. O santo patrono (S. Valentim) até foi um mártir pois, contra as ordens do imperador de Roma, casou muitos cristãos e pagou a afronta ao poder com a própria vida (14/2/271). Há ainda uma outra lenda segundo a qual o mártir, encarcerado por ordem do imperador, se viria a apaixonar pela filha do carcereiro.Versão muito mais pitoresca. Segundo parece, a celebração começou nos países anglo-saxónicos e propagou-se a outros países do ocidente. Namoro (ou enamoramento) e martírio, conjugação da festa dos corpos e da dor é um paradoxo. Mas já como Camões dizia, com o seu jeito peculiar, o amor é "um contentamento descontente". Para uns mera ilusão, tal o caso de Schopenhauer (o individual submetido à lógica reprodutora da espécie), para outros uma festa da vida. Paradoxos à parte, namorar é bom até na velhice.
Com a mudança dos tempos, mudam os modos de namorar - a cada tempo a sua narrativa. Há-as doces, melodramáticas e trágicas. Almeida Garrett que, nestas coisas de enamoramento era perito, preferia o anglicismo «flirtar» a namorar (verbo um pouco pelintra): «To flirt é um verbo inocente que se conjuga ali [Inglaterra] entre os dois sexos, e não significa namorar - palavra grossa e absurda que eu [Carlos das Viagens] detesto [...] Eu flartava, nós flartávamos, elas flartavam». Seria sincero ao pôr tal palavra na boca de Carlos? Ou seria um mero registo de cosmopolitismo tão ao gosto do nosso nacionalista romântico? Mas deixemo-nos de cogitações linguísticas e vamos ao assunto - aliás, na língua portuguesa o verbo namorar tem já mais de 4 séculos.
Há namoros que têm o tempo da saison (os amores de praia ou de montanha, de preferência com muita neve), há outros que duram tanto (cada vez mais raros neste consumismo de corpos e desejos) que resistem mesmo ao bolor e às cãs. Hoje há rituais para todos os gostos. Até para aqueles que descobrem, nesse mesmo dia de celebração, que sempre foram ou se tornaram irremediavelmente estranhos, um equívoco a esquecer para a posteridade. Eu sou tu, tu és eu. Nunca dei por isso. Tu já?
Há os que passam o dia a fazer amor, há os que em vez de um beijo dão mil, tão alheados das outras necessidades do corpo que até esquecem a vontade de comer. Outros, pelo contrário, gostam de namorar com o estômago bem cheio de iguarias e bons vinhos. Namoros de peso.
Há também os órfãos do enamoramento, os excluídos, que gastam o dia a invejar os pássaros acasalados nos bancos dos jardins, à beira-mar, nas discotecas, ou em casa ao abrigo do borralho da lareira. Há os loucos que amam tão loucamente que se chegam a matar de amor - esta é para os mais românticos. Há os narcisistas que fazem sempre amor consigo próprios. Há quem se masturbe toda a vida para nunca ser atraiçoado. Há os castradores que gostam sobretudo de chatear os outros. Há os que namoram ídolos (estrelas do firmamento aureoladas pela fama, mesmo que efémera: actores, modelos, futebolistas, ases dos «reality shows»), na TV, na internet, ou nas páginas de uma revista para matar tédios sem esforço.
Há os namoros da 3ª idade (imagens de ternura), agora assim chamados, em lares da antevéspera da sepultura. Há também os que namoram com ninguém, sempre em busca do absoluto de si mesmos. Cada um escolhe as ilusões que pode nestes reinos de liberdade.
Hoje já ninguém namora de janela, como em tempos de antigas censuras. As janelas, quando muito, enquadram cenas de filmes pornográficos. A janela de Joaninha há muito se decompôs. Há ainda quem nunca tenha tempo para namorar - «time is money» -, o sucesso assim o exige, e gaste o pouco tempo que lhe resta em meras relações mercantis com mulheres de ocasião.
Pintura de Marc Chagall
Há quem namore paisagens: o mar, os campos, as ruelas da cidade, ou até auto-estradas. São os contemplativos. Há ainda as amizades coloridas, umas vezes a preto e branco, outras de cromatismos variados. Fazem do namoro um acto de libertinagem, amorosos sem compromissos ou apenas um gosto por eufemismos. Há os que namoram em grupo, numa promiscuidade «amoral». Mas nestas coisas de rituais o importante é cada um saber no que se mete ou onde mete ou é metido.  Há os que namoram a heroína, a própria ou a da telenovela. Há os que preferem uma praia deserta ou os fundos do mar (beijos entre sereias e tubarões). Há os que escolhem o deserto, e dizem que é a máxima plenitude orgástica. Chegam a provocar tempestades de areia. Cuidemo-nos desses excessos, pois um pequeno sopro de areia pode causar cataclismos imprevisíveis (o efeito borboleta).
Há os «voyeurs» que namoram às escondidas os outros a namorar - gozam e não se comprometem. Há ainda o namoro «gay», outrora submerso nos tempos sombrios dos interditos. Agora já podem pôr o corpo ao léu, mesmo nas fileiras dos exércitos da nossa segurança. Há também os nudistas, uma forma natural de amar, dizem, tenha-se em conta no entanto os condicionalismos do entusiasmo viril. Dá muito nas vistas.
Dantes davam-se rosas, mas estas duram o tempo efémero do prazer, por isso o que está mesmo a dar é a oferta de «lingerie sexy» pois, segundo a publicidade do ramo, «Dura mais e garante horas de prazer muito depois das pétalas das rosas já terem murchado».
Mas não estraguemos a solenidade com patacoadas de dúbio gosto: vamos todos namorar até ao Dia do Juízo Final, que é, aliás, um dia sem juízo nenhum, como de resto deve ser o acto de namorar.

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