sábado, 26 de fevereiro de 2011

Gastronomia, Sangue Fresco e Vampiros

No céu cinzento
Sob o astro mudo
Batendo as asas
Pela noite calada
Vêm em bandos
Com pés de veludo
Chupar o sangue
Fresco da manada

Zeca Afonso, Vampiros


Confesso que sempre gostei de arroz de cabidela (ou de molho pardo, como dizem umas amigas da Gândara). De frango, lampreia ou dos miúdos de leitão (à moda da Bairrada). E também de papas de sarrabulho e de sarapatel. Os sangues da nossa gastronomia. Desde criança habituei-me a degustar as morcelas de Trancoso (Beira Alta), que nos chegavam a Lisboa, em Dezembro, num cesto, misturadas com outras iguarias «bárbaras», depois da matança do porco em casa dos meus avós. Heranças familiares. Depois vieram outros hábitos mais cosmopolitas, de novo o sangue nos bifes do lombo mal passados. O sangue a libertar-se da carne e a misturar-se no molho feito de mostarda e café. Ou da picanha, churrasco recentemente importado do Brasil. Hoje, estou quase a tornar-me semi-vegetariano. Tanto sangue também enjoa.
Pintura de Munch - Vampira
Nunca fui adepto de touradas, mas todos convivemos com elas: o sangue do touro esfarpado ou picado para deleite da nossa crueldade ritualística. E em dias mais trágicos- a tourada é um jogo da vida e da morte- o sangue dos toureiros encornados. O sangue, sempre o sangue, a inundar a cartografia do nosso imaginário.
Há também o vinho ritualístico das missas a converter-se, através da transubstanciação eucarística, em sangue de Cristo. Sangue cristológico, embora eufemístico e simbólico, de tanta iconografia ocidental (desde o gótico ao barroco) a preencher muitos lugares do nosso museu imaginário. Sangue como dádiva da nossa redenção. Nos tempos pagãos o sangue derramado pela terra era um rito de fertilidade: a natureza precisava de sangue para renascer. A cada cultura o seu sangue.
Mas as imagens de sangue mudam consoante as metamorfoses ou as novas cenas ritualísticas. Actualmente esse imaginário já não é redentório nem fecundante. Mas será ainda um exorcismo da nossa violência, embora com conteúdos diversos?
Hoje é raro o filme de acção ou de terror, sobretudo made in Holllywood, que não nos masturbe com o sangue dos estropiados, violentados, baleados, trespassados, com planos cinematográficos que eficazmente nos projectam, num misto de prazer e repulsa, para a evidência da espectacularidade das manchas de sangue, pelos corpos, paredes, chão, em implosões contínuas de vermelhidão.
Mas há também o sangue dos mortos-vivos - estes obviamente sob a suspeição da maldição e da perversão da sua hibridez. Os chamados vampiros. Desde há umas décadas estão de novo na moda, no romance, no cinema e até em vários blogues.
Na literatura o tema do vampirismo popularizou-se na Europa com o romance, de B. Stoker, Drácula (1897), inspirado na figura simultaneamente histórica e lendária do Príncipe da Valáquia Vlad Drakul (século XV), conhecido como «O Empalador» da Transilvânia (Roménia). Um sádico guerreiro tão cruel no modo de tratar os seus inimigos, que tal facto estaria na génese da lenda do seu vampirismo. Porém, o mito do vampirismo é um elemento reconhecido em regiões tão diversas como a Europa Central, a Rússia ou a Malásia, entre outras.
No que concerne ao feminino, o arquétipo é já, contudo, reconhecível na mitologia grega: Lâmias e Éstriges. Demónios femininos alados, com garras semelhantes às aves de rapina, que se alimentavam do sangue e das entranhas de crianças e jovens.
Na caça às bruxas no ocidente cristão (séculos XV a XVII) também se acusavam aquelas de, para lá de outras práticas satânicas, sugarem o sangue das crianças. Na crueldade da tortura, todas estas ficções se tornavam confissão. Como vemos, em épocas misóginas, o vampirismo no imaginário colectivo ultrapassava a fronteira do género masculino.
Na literatura europeia, com o romantismo (primeiras décadas do século XIX), desenvolve-se o mito do «homem fatal» que, por vezes, ganhava uma configuração vampírica. Na segunda metade do século XIX, e sobretudo com o «fin-de-siècle» e o seu misoginismo hiperbolizado, cabe ao feminino o principal papel de sugadora, com o advento do tema da «mulher fatal», ou seja, vampírica.
O vampirismo tem assim uma outra dimensão «maléfica»: o erotismo. A partir da década de 30 do século XX, as estrelas de Hollywood ganham a designação de «vamps», ou seja, derivação etimológica de vampiras, verdadeiras sugadoras da virilidade masculina. É toda uma evolução que emerge também na pintura (Munch, Burn-Jones, Klimt, entre outros), entre finais do século XIX e o século XX, com as suas representações da mulher-serpente ou vampírica.
A perfídia da beleza feminina, obra obviamente satânica, assume com o vampirismo uma nebulosa imaginária que assombra o subconsciente masculino: complexo de castração com a emergência da imagem literal ou virtual da «vagina dentata».
Pintura de Klimt - As Serpentes de Água II
Hoje, as fronteiras de género diluiram-se, e tanto homens como mulheres podem ser vampiros, agindo ou não em grupo. Todos podem sugar os nossos desejos e vitalidade para virtualizar a sua vontade de eternidade. No cinema há clássicos do género, de Murnau (Nosferatu, O Vampiro, 1922) a Polanski (O Baile dos Vampiros, 1967). Nestas narrativas ora são os vivos que acabam por vencer os vampiros ora são estes que acabam por dominar o mundo. Por isso, as jugulares masculinas e femininas que se cuidem. Houve mesmo o caso de um célebre actor (Bela Lugosi) que, na década de 30 do século XX, se especializou de tal modo na personagem de vampiro, que passou, na vida real, a habitar uma casa em ruínas, povoada de morcegos, e a dormir num caixão. O vampirismo é verdadeiramente contaminante e, por vezes, confunde-se com o mito do lobisomem.
Nas duas últimas décadas, o vampirismo como tema literário e cinematográfico (romances, filmes, telenovelas) tem vindo a reaparecer em força e com muito êxito. A escritora americana Charlaine Harris, cuja recente tradução portuguesa está em todos os escaparates das livrarias, com a sua Saga do Sangue Fresco, já vai no 8º volume: «Laços de Sangue» (não confundir com a telenovela portuguesa com o mesmo título), antecedido de «Dívida de Sangue», «Clube de Sangue», «Sangue Oculto», «Sangue Furtivo», «Traição de Sangue» e «Sangue Felino». Os  títulos são bem significativos das ondas de sangue que percorrem estas «bestas céleres», como alguém disse. Nova Orleães é, nesta saga, um lugar de eleição para uma visita turística a vampiros: clubes de jazz, de strip, sexo ao vivo, cenas lésbicas, etc.: «Sítios secretos e não tão secretos onde alguém poderá ser mordido e ter um orgasmo sem dificuldade», tal como se diz no romance.
Há vampiros e cruzadas anti-vampiros, como a Irmandade do Sul ou o Movimento Voluntário da Extinção de Vampiros. Mas será que a cruzada tem êxito? Será no futuro o mundo um paraíso de vampiros?
Mesmo entre nós, país sem grande tradição vampiresca, corre uma telenovela designada «Lua Vermelha», uma versão «português suave» do vampirismo e dos seus opositores. Parece-me no entanto que os portugueses não têm grande vocação para tal tema.
Na constante luta entre os que sugam e os que são sugados, a questão, para lá das óbvias perversões eróticas, está, na vocação imaginária dos homens e mulheres, o fantasma da morte e os libidinosos desejos de o vencer, mas para isso tem de haver vítimas sacrificiais - objectos nebulosos dos nossos medos ancestrais.
Bem razão tinha o Zeca Afonso para nos alertar para os perigos de tal praga. Mas aqui a história é já outra.

1 comentário:

  1. Confesso: só ando em calçado de couro, gosto de roer uma costeleta de borrego, para mim uma morcela frita é uma delícia. Sou um hipócrata: condeno as touradas, a matança do porco e tosdos os ferimentos rituais nas caras e nos órgãos genitais.
    Enfim: sangue = vida. Que hei-de eu fazer?

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