quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

A Estranha Morte de D. Augusta Martinho

D. Augusta Martinho
Praceta das Amoreiras, nº6-4º dto
Rinchoa- Rio de Mouro


D. Augusta,

Pintura de Alberto Giacometti
O teu caso teve honras noticiosas na imprensa e nas televisões. Se não tivesses apodrecido durante 9 anos na cozinha da tua casa, sem que alguém disso se tivesse apercebido, terias morrido no silêncio mediático como qualquer anónima cidadã de 82 anos. Foi o teu corpo morto (peles ressequidas e ossos) que te deu fama. Não a tua vida, igual a milhares de outras na mesma condição de solidão e isolamento suburbanos. Nada sabemos do teu percurso de vida, quantas alegrias ou lágrimas, quantos tormentos ou alentos. Sabemos apenas que tinhas sobrinhos. Talvez até a solidão tenha sido uma escolha tua. Serias de pequena estatura (certamente para não dares nas vistas), um pouco soberba e de poucas falas, dizem na zona. Por isso, excepção para uma vizinha ainda com algum sentido comunitário, ninguém deu pela tua falta. Mas o esforço daquela foi em vão, as autoridades responsáveis (GNR, Serviços Sociais, etc.) não teriam capacidade para arrombar a tua porta e descobrir o mistério do teu desaparecimento súbito (Agosto de 2002). Só passados 9 anos, tendo a tua casa ido a leilão num processo de penhora, por não teres pago os teus impostos às Finanças, a Lei resolveu finalmente arrombar a porta , para dar acesso a um novo proprietário. As razões do dinheiro movem montanhas, neste caso uma porta da casa de uma humilde velhota. Na tua varanda, o teu solidário cão morto, rodeado também de pássaros mortos, acompanhou-te na fama. Teria sido talvez o teu último elo solidário com a vida.
Claro que a morte é, em última instância, um acto solitário, mesmo no anonimato do espaço hospitalar ou outro. Mas o teu corpo putrefacto ficou, sem tua vontade ou responsabilidade, como um símbolo ou uma sinédoque do abandono a que a grande cidade sujeita milhares de velhos, os eufemisticamente idosos. Mas não só, tu és também um símbolo do horror "urbanístico" que as sucessivas autoridades autárquicas foram permitindo no concelho de Sintra e em todo o país. Estes subúrbios da capital tornaram-se um verdadeiro inferno-dormitório - basta uma viagem de comboio entre Sintra e Lisboa para nos elucidar parcialmente do horror deste caos de betão.
És o dedo apontado, sem o saberes ou quereres, a uma sociedade que substituiu o sentido da comunidade por um dito "individualismo" corruptor dos valores da cidadania, isto é, dos valores inerentes a uma verdadeira cidade. E a tua casa nem sequer estava num ermo. Vivias a 50m da estação de comboios, num prédio de 5 andares, com 3 apartamentos por piso, e na tua praceta até havia um café. De facto, andamos todos muito distraídos com a crise financeira e quando chegamos a casa, já tardiamente, apetece-nos apenas olhar para o ecrã mágico e adormecer. Não temos tempo para os outros. Por isso, nesses blocos de cimento dos subúrbios, cada "vizinho" é um estranho quando não alguém potencialmente hostil. Os outros são o inferno, como diria Sartre. A acrescentar a isto há que assinalar o profundo corte no convívio entre as várias gerações. À convivialidade dos velhos bairros sucedeu este mundo suburbano de alheamentos e isolamentos. O outro é uma entidade inimiga a não ser que seja marchetado a ouro, o antigo bezerro d´oiro. E se não fossem as janelas abertas da tua casa (estávamos no mês quente de Agosto), com a invasão de moscas e sequentes larvas, o que teria acelerado a tua decomposição, julgar-se-ia um milagre o teu corpo não emanar o odor da putrefacção e da morte. Por isso, as pituitárias dos concidadãos não foram minimamente incomodadas. Aparentemente tudo decorria na normalidade do quotidiano suburbano. Se vivesses numa aldeia do cada vez mais desertificado mundo rural, o teu corpo não teria tal destino, pois alguém teria dado de imediato pela tua falta. O teu caso é tão exemplar que, num lugar-comum, poderíamos dizer que a tua realidade ultrapassa de longe a ficção.

Pintura de Arnold Böcklin

Ao menos que o teu caso (um "case study", diriam os americanos) sirva para que os líderes autárquicos, os políticos, os urbanistas, os arquitectos, os sociólogos, com os empresários da construção a reboque, comecem a pensar na urgente humanização da vida urbana. Sei que isto é mais um desejo meu do que uma futura realidade imediatamente concretizável, mas sabe sempre bem dizê-lo. Façam cidades onde a sociabilidade seja possível e contribuam para a criação de estruturas sociais onde a única solidão admissível seja aquela que decorre da própria opção dos cidadãos. E sobretudo não deitem para o lixo os velhos (perdão, os idosos). Reformas decentes, assistência médico-social normalizada e espaços urbanos, onde apeteça estar e conviver, não serão uma panaceia para os dramas do envelhecimento e da morte, mas contribuirão de facto para uma maior dignidade de todos.
Certamente estarás de acordo comigo, D. Augusta.

1 comentário:

  1. Cá temos, outra vez, o tema da morte - cativante! Ando a ler "La carte et le territoire" (prémio Goncourt), do Michel Houellebecq, aqui autoficcionado como personagem do romance, que vem a ser vítima de um assassínio bárbaro. Vale a pena, ainda que para o fim, a meu ver, a história "desiquilibra-se".

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