segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

A Última Carta

Velhos a apodrecer,
meses, anos, nas casas da solidão.

Minha Filha,

Munch - O Grito
Acabei de matar a tua mãe. Depois de 62 anos de casamento, nada nesta vida tinha já sentido. A medicina e a saúde pública dão-nos anos, mais anos, mas não anos de verdadeira vida. Há uma falha irremediável neste mundo. Valia mais deixarem-nos morrer com a memória intacta dos nossos afectos. A tua mãe já estava morta, antes de morrer sufocada pelas minhas mãos. Já nem sequer circulava, como há uns tempos, sem tino pela casa, do quarto à cozinha, da cozinha à casa de banho. Tudo para ela era um espaço homogéneo, sem memórias de serventia. Um trânsito caótico sem fronteiras.Esse corpo dos meus afectos já nem era bem um corpo, era uma coisa sem alma ou de alma represa, invisível aos meus olhos. Um objecto a diluir-se nos outros objectos do nosso quotidiano: aparador, mesa, sofás, cama, retrete, «bilelots», imagens de Nª Srª de Fátima, colchas bordadas e ela. Imagens do nosso silêncio comungado.Um dia, quando tudo se começou a agravar, descobri estupefacto que ela tinha posto no forno do fogão os seus sapatos de camurça de eleição, como se fossem peixes a assar. Sapatos que comprara com tanto esmero com as suas parcas poupanças. Parecia que a casa ia também morrendo lentamente à nossa volta. Uma espécie de progressiva instalação do caos. Até o seu gato vadio, que com tanta ternura havia protegido, morreria de fome pelo seu esquecimento.
Mas o pior era a morte dos afectos, um processo gradual de alheamento. A tua mãe tornara-se uma estranha, mas ainda com uma vida interior, embora um território definitivavamente enclausurado. Não sei se ainda tinha uma réstea de consciência de si, ou do nosso comum sofrimento. As lágrimas eram interiores, para sempre fechadas ao outro que era eu.
Era um objecto (aos meus olhos e coração), mas com necessidades vitais, ainda que nada fizesse para as garantir. Esquecia-se de comer, de evacuar, de existir. Ali estava exposta perante a minha progressiva impotência. Por vezes, em pleno Inverno, circulava nua pela casa, sem frio nem pudor.
Qual é o limite da dignidade da vida? Da dela e da minha. Foi por amor que a matei, que nos matámos, na réstea do orgulho que me ficara.
Peguei num cinto e asfixiei-a. Era um cinto que a tua mãe outrora adorara. Comprei-lho no dia de um seu aniversário. Nesse momento foi como se se apagassem no seu corpo destroçado as minhas próprias memórias. Naquele momento o cinto tornara-se, para mim, apenas um instrumento que iria encerrar para sempre a sua dor, a nossa dor.
Limitei-me talvez (não sem algum remorso) a matar uma coisa aparentemente sem alma, mas que tinha ainda soltos espasmos de vida, que sofria mas para dentro. Mas mais nada.
As minhas mãos com os nódulos de velho tremeram muito quando a apertei, mas não tive já qualquer vestígio de piedade, como se fosse ela a pedi-lo há muito. Piedade, só a das minhas memórias de 62 anos de convívio fraterno e amoroso. Piedade do que fôramos não no presente. Crueldade era continuarmos a viver neste inferno em vida.
Pintura de Kokoschka
Projectei tudo, com a lucidez possível, quase me tornei num engenheiro da morte. Já que nada mais esperava desta vida de solidão a dois, se é que a isto ainda se pudesse chamar vida.
O esquecimento total é a simulação da morte em vida, sobretudo porque mata mesmo a vivência dos instantes mais próximos. O tempo a passar sem deixar vestígios. Aliás, sem memória já nem sequer se pode falar de tempo, passado, presente ou futuro. A mim, como uma condenação, restavam-me os afectos passados - o enamoramento, o casamento, a sua maternidade e a tua, as negociações do convívio doméstico para vencer o tédio do quotidiano. Um tempo morto na minha cabeça ainda a querer, em tentativas infrutíferas, ressuscitar e acender um pouco de vida na tua mãe.
Desisti de lutar - a cobardia dos vivos-mortos. A doença venceu-nos. A tua mãe era um corpo estranho, apenas humanamente visível nos traços indizíveis do seu sofrimento interior. Comer e defecar, defecar e comer - gestos sem sujeito, apenas actos mecânicos suportados pela minha vigilância constante: meter-lhe a colher de sopa na boca, mudar-lhe as fraldas, dar-lhe banho. Enfim, manter-lhe a dignidade possível.
Chorei  lágrimas até me secarem as raízes da alma. Chorei pelo amor que fomos, pelos gestos ternos da vida e até pelas pequenas desavenças do quotidiano. Nada disto poderia voltar.
Chorei de solidão, porque a tua mãe estava simultaneamente presente no meu passado e ausente no meu presente. De menina e moça, de quem me enamorei, à coisa híbrida de vida e morte. Mais do lado da morte do que da vida.
Já tenho a corda preparada para me enforcar. Fiz cálculos exactos para não falhar. Quando receberes esta carta já estarei morto. Perdoa-me este acto de louca lucidez. Mas nunca esqueças: tudo o que fiz, fi-lo por amor.

Adeus

Teu Pai

Notícia da Imprensa (22/02/2011) - «Idoso (83 anos) mata mulher (89 anos) por não aguentar vê-la sofrer com Alzheimer. Depois enforcou-se». Antes deste acto escreveu uma carta final à sua filha. A partir deste evento, ficcionei esta última carta.




1 comentário:

  1. A morte ficcionada, a ficção da morte; dar vida à morte é sempre um tema impressionante e esta trancrição de um "fait divers" para uma carta de despedida leva-nos a reflectir sobre o homicídio, a eutanasia e o suicídio.

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