domingo, 10 de abril de 2011

A Poesia, o Amor e o Humor

Emile Bernard - Madeleine au Bois d´Amour (1888)
Nestes tempos de depressão colectiva, em que me proíbi de cronicar sobre a vida política nacional (sobre o carnaval eleiçoeiro e o FMI nada há para já a acrescentar), vou dar de novo a voz à poesia de temática amorosa. Começo com duas histórias bem humoradas de amor, de Augusto Gil e de Carlos Drummond de Andrade, sem «fim feliz», antes feitas de desencontros na arquitectura falível dos desejos face aos imperativos códigos sociais.


Augusto Gil (1873-1929) foi um poeta populista, pela artesania das suas quadras de recorte popular. Nos seus versos sobressaem também uma musicalidade escutada nos simbolistas e um pendor realista, pelo tom coloquial e muitas vezes satírico com que capta os instantes do quotidiano. Alguns dos seus poemas merecem hoje ser evocados, pois para lá da celebérrima «Balada da Neve», de leitura obrigatória na escola do meu tempo, poucos são os actuais leitores da sua obra.


ART. 1056.º DO CÓDIGO CIVIL

Oiça, vizinha: o melhor
É combinarmos o modo
De acabar com este amor
Que me toma o tempo todo.

Passo os meus dias a vê-la
Vermeer - A Rendeira (1669-70)
Bordar ao pé da sacada.
Não me tiro da janela
Não leio, não faço nada...

O seu trabalho é mais brando,
Não lhe prende o pensamento,
Vai conversando, bordando,
E acirrando o meu tormento...

O meu não: abro um artigo
De lei, mas nunca o acabo,
Pois dou de cara consigo
E mando as leis ao diabo.

Ao diabo mando as leis
Com excepção dum artigo:
O mil e cinquenta e seis...
Quer conhecê-lo? Eu lho digo:

«Casamento é um contrato
Perpétuo». Este adjectivo
Transmuda o mais lindo pacto
No assunto mais repulsivo.

«Perpétuo!» Repare bem
Que artigo cheio de puas.
Ainda se não fosse além
Duma semana, ou de duas...

Olhe: tivesse eu mandato
De legislar e poria:
Casamento é um contrato
Duma hora - até um dia...

Mas não tenho. É pois melhor
Combinarmos algum modo
De acabar com este amor
Que me toma o tempo todo.

Versos (1898)

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)
Este poeta modernista brasileiro, no poema «Quadrilha», instala-nos no labirinto dos desencontros, dos desejos indesejados, onde um tal J. Pinto Fernandes, um Deus ex machina da narrativa, acabaria por dar um desenlace «burguês» a esta história que, de outro modo, se perderia verbalmente nas rotas do infinito. Note-se o trânsito entre a reiteração dos imperfeitos do indicativo (o tempo inacabado) e os pretéritos perfeitos (o tempo acabado).

Magritte - Os Amantes (1928)


QUADRILHA

João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi pra os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.


65 Anos de Poesia (2ª ed., 1989)

3 comentários:

  1. Parabéns! Viva a poesia e o humor! Assim, conseguimos libertar a nossa cabeça, por breves momentos, de toda a confusão deste país!

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  2. E as imagens foram muito bem escolhidas!

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  3. " Madeleine au Bois d'Amour" sonhando na bonomia,/enquanto gentes se abatem na usura destes dias,/ pois, se esqueça uma lei qualquer, feita por bonifrate bronco;/ que o Zé, rendeiro, já não quer, está o país todo louco,/resta separar a " Quadrilha" que de amor não tem nada, empatar-lhe a cartilha, da verborreia encartada;/ não querer mais um qualquer:" Fernandes", "João" ou " Silva",/ isto agora só lá vai com nova flor cantiga.

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