domingo, 20 de fevereiro de 2011

Os Cegos, a Fome e o Pote

Deixai-os: são cegos a conduzir outros cegos!
Ora, se um cego guiar outro cego, ambos cairão na cova.

 S. Mateus


Depois de décadas de dislates da nossa elite política, eis-nos à beira do abismo. Sócrates, com a sua máscara de convicto optimismo, olha para o lado, pisca o olho matreiro, e sorri para as câmaras. Já não é capaz de olhar em frente. Olhar é uma maneira de dizer, pois certamente contaminado pelo Ensaio sobre a Cegueira de Saramago, numa escuta - não muito atenta, diga-se em abono da verdade - da leitura de um seu assessor, perito em matérias literárias, finge que vê, pois na realidade vê apenas com a cegueira do olhar, porque à frente, meu bom povo, está o bíblico barranco.
Pintura de Bruegel
O povo, já quase cego como o líder, pressente apesar de tudo, com a sabedoria dos cegos, que estamos a avançar para o abismo. Porém, já não vê o que quer, mas o que o deixam ver. Contudo, em democracia, há sempre vozes discordantes: "Sr. Primeiro-Ministro, o problema português é simultaneamente estrutural e conjuntural. Não há tecnologia de vanguarda (nem mesmo o seu afamado milagre Magalhães) que, por si mesma, nos liberte de décadas de analfabetismo ou, numa versão moderna, de iliteracia. A cultura é, em Portugal, a determinante em última instância" - vê-se que o arguente foi leitor de Marx, apenas trocou a economia pela cultura. E continua: "Um analfabeto com um computador ou uma esferográfica será sempre um analfabeto. Os instrumentos apenas ajudam, como é de bom-senso, a resolver os problemas de base: saber ler e escrever decentemente, aprender a matemática básica e ter uma razoável cultura geral. Fomentar hábitos de produção e consumo culturais, eis a solução a médio prazo". "E no intervalo, morre-se de fome?" - interrompe um desempregado de longa duração.
Sócrates riposta: "Fiz o que pude, senhores oposicionistas de má índole, chamei a mim as crianças e disse-lhes «Computai!». Construí auto-estradas e ordenei «Circulai!» Aí está o futuro" - fala como um vidente. "E no intervalo, morre-se de fome?", insiste o desempregado. "Além disso, aí temos - toda a gente honesta o sabe - o capital internacional, esse especulador sem escrúpulos, a apertar-nos o gargalo"- justifica-se Sócrates.
Um outro cidadão aproveita a deixa e interpela o governante: "E os gastos de ostentação?". País pobre com vícios de rico - esta já é antiga. "Por exemplo, os estádios de futebol do Euro, na época do nosso deslumbramento, o do Algarve, o de Leiria e o de Aveiro, condenados ao abandono e ruína, porque nem os clubes ou câmaras têm capacidade financeira ou interesse desportivo para os manter. E tanta auto-estrada para Deus ver. Nisso somos vanguarda na Europa e no mundo. Tanto betão a acontecer para nosso padecer!" (voz de aprendiz de poeta). "E os bons carros pelas ruas do país, a fazer inveja aos países ricos da Europa?".  Voz de um coro de invejosos: "Tudo tem uma explicação. Economia paralela, tráfico de droga e de seres humanos, nepotismo e corrupção, e centenas de gestores de empresas públicas com ordenados de fazer espanto por esse mundo fora."
E outro diz: "Agricultura e pescas (tanta terra a ver o mar) quase desapareceram. Milhões de fundos europeus, ora para cultivar beterraba e amendoins, ora para destruir vinhas e vinhedos ou barcos de pesca artesanais, ou para arrancar amendoins e beterraba. Pior que os planos quinquenais da antiga URSS. Da indústria, que nunca foi famosa, pouco ficou - dizem que os culpados foram os chineses, os indianos, os tailandeses, e as multinacionais que exploram a mão-de-obra infantil nos ditos países do subdesenvolvimento".
Mas temos dos maiores centros comerciais do mundo, quanto à ilusão consumista estamos ditos. Foi uma "barataria" que começou a fraquejar.
Depois os partidos do "centrão" têm muitos apetites - centenas de militantes com fome de promoção -, mas o bolo está quase todo roído, foram os ratos do porão com o navio a afundar-se.
Portugal é um deserto de ideias, ou melhor, de boas ideias, pois cabeças há muitas; há-as de eleição, boas para entrevistas televisivas e o para os prós e contras da drª Campos Ferreira, mas a arengada é sempre a mesma: no fundo, no fundo, com uma «ditadura» moderna (palavra interdita mas presente no subconsciente "economês"), ou melhor, pós-moderna, tudo se resolvia. Senão aí vem o FMI, o papão de serviço a dar bengaladas na parasitagem lusitana. Há sempre um virtual polícia à nossa espera.
Os desempregados são mais de 600 mil. "Solução: pô-los a soprar 24 horas por dia, para aumentar a produção eólica. Não seria a salvação? Deixávamos de importar petróleo e tornávamo-nos o primeiro exportador de vento". Esta é a proposta de um visionário consultor governamental, perito simultaneamente em problemas de desemprego e energias alternativas: "Serão os novos filhos do Céu e da Terra, mulheres e homens desaforados, com asas, eles barbudos e elas de longos cabelos. Superiores às divindades ventosas do Olimpo, Bóreas (vento norte), Noto (sul), Zéfiro (oeste) e Euro (leste) e mesmo ao seu comandante e pai Éolo (o veloz). Uma voz colectiva como a dos deuses a anunciar Eos (a deusa da aurora) da Pátria. Falta apenas a ordem de Zeus (Sócrates na versão actual)".
Pintura de Morandi
Mas sejamos justos, os nossos dirigentes políticos até nem ficam mal ao lado dos berlusconis, sarkozis e outros mais. São todos produtos do marketing mediático, todos filhos da mesma mãe, salvo seja. Os chineses é que são diferentes, põem-nos os olhos em bico.
Não seria o momento de os responsáveis pela imagem dos nossos políticos pensarem no assunto? Dar-lhes um toque mais achinesado, mais moderno. Mesmo que não vissem melhor, criavam-nos a ilusão de ver ao longe, ou seja, em direcção ao oriente.
Quanto à provável sucessão de Sócrates - uma fusão de heróico resistente e pícaro -, temos o dr. Passos Coelho, o produto de uma formatação de líderes «made in» JSD, que, na sua última entrevista a Judite de Sousa, manifestou, para decepção dos «roedores» do partido, "ainda não ter fome para ir ao pote". Frase que certamente ficará nos anais da História. Pote, na sua configuração simbólica, remete para útero ou matriz. Então, para salvar Portugal, a solução estaria - será assim, dr. Passos Coelho? - em regressarmos ao útero materno, quando a sua fome chegar, e, aí acomodados, adormecermos até ao dia da ressurreição.
Estávamos perdidos, vieram as especiarias do Oriente; de novo perdidos, o ouro do Brasil; perdidos de novo, o império colonial africano; de novo perdidos, as remessas dos emigrantes; perdidos ainda, os milhões da Comunidade Europeia. Há sempre um milagre à espera em cada ressurreição nacional.
"Mas alternativas político-económicas ao governo PS, dr. Passos Coelho?", insiste Judite de Sousa. "Já lhe disse, ainda não tenho fome, depois se verá."- responde já agreste Passos Coelho. "Mas tenho eu!"- intromissão de um desempregado de longa duração.
Mas cuidado, Dr., o pote pode estar quase vazio, ou então ser mesmo uma caixa de Pandora. Também há outra hipótese: ser o vaso do Graal ou mesmo o Velo d´Oiro. Neste caso, saía-lhe a sorte grande.
E aqui vamos nós de derrota em derrota, a caminho do barranco final. A não ser que o Mourinho rompa com Castela, regresse e salve Portugal. Sempre fomos, a nível do inconsciente colectivo, expectantes «sebastianistas». Cegos mas quanto a delírios ninguém nos bate. O mundo que se cuide!

2 comentários:

  1. O Vitor na sua melhor forma. Sou até capaz de o ver com os braços e mãos no ar a sublinhar as ideias e a entusiasmar-se com elas.
    Caustico,corrosivo(passe a redundância),mas clarividente. Acho que, às vezes, era bem melhor não se ser capaz de ver tanto.
    "...e aí acomodados, adormecermos até ao dia da ressurreição." E não se chama a isto tranquilidade?

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  2. ". . . até nem fiquem mal ao lado dos berlusconis, sarkozis" e dos von und zu guttenbergs. Um "doutoramento" plagiado de a - z obrigou este "jóvem e dinâmico" ministro da defesa, sem vergonha, a demitir-se nestes dias.

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